Miscelânea
O ESPÍRITO DOS MEUS PAIS CONTINUA A SUBIR NA CHUVA
Patricio Pron, Todavia
O romance do argentino Patricio Pron pertence a um conjunto de obras relacionadas à última ditadura militar de seu país, entre 1976 e 1983. Com base em suas experiências e/ou na leitura que fizeram sobre as vivências de seus pais e familiares, escritores construíram ficções com um braço dado à história.
O livro, único do autor publicado no Brasil, apresenta um escritor que retorna à Argentina nos anos 2000, após um problema de saúde do pai, de quem encontra anotações que indicam o desaparecimento de um homem. Ao avançar na pesquisa, depara-se com outro caso: uma jovem que fora sequestrada e assassinada durante a ditadura militar e que era irmã do desaparecido. Começa então uma investigação que o envolve na história de sua família e de seu país.
Na obra, a jornada do filho em busca do pai se une à do filho com o pai, procurando respostas sobre os desaparecimentos, tanto o daquele momento quanto o fruto do terrorismo de Estado na Argentina. Há ainda a jornada de um escritor, argentino, filho de militantes que viveram a ditadura, como ele próprio, recontando o passado, usando elementos da pesquisa histórica, ferramentas literárias e registros de memória. Dessa perspectiva, Pron dialoga com autores que revolveram as feridas abertas pelo horror das ditaduras no continente, como os contemporâneos Julián Fuks e Alejandro Zambra, os clássicos Roberto Bolaño, Mario Benedetti, Ricardo Piglia e Julio Cortázar, e os ainda não publicados no Brasil Fabián Casas e Félix Bruzzone.
Nesse sentido, O espírito dos meus pais continua a subir na chuva constrói uma convergência entre história e literatura, memória e trauma, histórias privadas e a história argentina, contribuindo para a experiência literária e a compreensão de processos históricos. Assim, ao mesmo tempo que rememora e reelabora o passado, reafirma sua potência no presente, como contestação das heranças da ditadura.
[Rafael Cal] Professor de História, dramaturgo e mestrando em História Social (PPGHIS-UFRJ).
ELENA FERRANTE: UMA LONGA EXPERIÊNCIA DE AUSÊNCIA
Fabiane Secches, Claraboia
Há algo na apresentação do livro da crítica literária e psicanalista Fabiane Secches que remete ao conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector. Na apresentação, a autora descreve o encontro com a escritora Elena Ferrante como fruto de um acaso, numa livraria, quando o primeiro volume da célebre tetralogia napolitana foi publicado no Brasil. A autora admite que “toda pesquisa começa com uma primeira leitura” e então acrescenta: “sentei numa poltrona, comecei a ler e não pude mais deixá-lo”.
Partindo desse encontro, Secches modula um justo distanciamento e uma mediação para lançar os fundamentos de um trabalho de crítica e análise de grande fôlego e profundidade. O texto se desenvolve com fluidez ensaística sob um instigante prisma comparativista.
A obra é inovadora ao conjugar uma análise panorâmica das primeiras obras de Ferrante com questões literárias levantadas na saga napolitana, mas também não nos poupa dos intertextos e tangencia um metaquestionamento sobre autoria e literatura contemporânea.
Nenhum elemento escapa ao olhar atento da autora, desde a escolha das capas originais da tetralogia até a chamada “Febre Ferrante”. Esse é um estudo amplo e pioneiro. As ilustrações e a capa da artista Talita Hoffmann fazem do objeto também um livro elegante.
Voltando à felicidade clandestina: no conto de Lispector, há duas garotas que parecem ser amigas, talvez inimigas, mas certamente colegas de classe. Juntas, alimentam polos de atração e de repulsa, inveja e admiração – uma tem o desejo de ler, a outra possui o livro, temática a seu modo presente também na obra de Ferrante. Acompanhamos, afoitos e entregues, as páginas de Clarice, observando com certo voyeurismo essa triangulação entre narradora, amiga e livro, como talvez o tenhamos feito ao ler a tetralogia de Ferrante. Identificamo-nos, enfim, com essa felicidade clandestina que a leitura nos oferece.
O que Fabiane Secches faz em seu meticuloso ensaio é justamente abraçar essa felicidade clandestina da leitura com a mediação e o rigor que um trabalho desse porte requer.
[Francesca Cricelli] Doutora em Línguas Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, tradutora literária e poeta.
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Novas narrativas da web
Sites e projetos que merecem o seu tempo
Projetemos
Um movimento de projeções multimídia tomou conta da cidade de São Paulo durante algumas semanas da quarentena. Fachadas de edifícios, casas e muros serviram de telas para vídeos, imagens, palavras de protestos. Começou como uma “organização de janelas”, entre VJs que queriam seguir se manifestando, mesmo a distância. Para a professora da FAU-USP, artista e pesquisadora Giselle Beiguelman, “ironizando o inacreditável desdém do presidente à gravidade da pandemia do coronavírus, as projeções deixam claro que nossas insatisfações estão literalmente subindo pelas paredes! E mostram que, se não podemos ir às ruas, os prédios falarão por nós”.
<https://www.instagram.com/projetemos/>
Gráficos Covid-19 para você usar
Flourish é uma ferramenta de visualização de dados gratuita, desde que seu projeto seja público. A equipe do site produziu uma coleção de infografias interativas que podem ser usadas em qualquer website e também são feitas para serem vistas em celulares. O conteúdo desses gráficos é todo sobre a evolução do coronavírus pelo mundo, em diversos países. Mapas, tabelas, tudo atualizado em tempo real com bases de dados públicas.
<https://flourish.studio/covid/>
Father’s Lullaby
Um projeto transmídia colaborativo que destaca o papel dos homens na criação dos filhos e sublinha a ausência deles numa sociedade em que o encarceramento em massa de negros tem impacto direto em seus filhos, mulheres e comunidades de baixa renda. O projeto é uma série de instalações públicas interativas, oficinas e um site participativo de localização geográfica. Entrevistas íntimas e canções de ninar oferecem meditações poéticas sobre os espaços de amor e trauma, presença e ausência e o poder das memórias pessoais para interrogar a violência estrutural da política prisional dos Estados Unidos. No Brasil seria diferente?
[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.