Miscelânea
PONTO-FINAL: A GUERRA DE BOLSONARO CONTRA A DEMOCRACIA
Marcos Nobre, Todavia: São Paulo, 2020.
As cenas não poderiam passar despercebidas – e não passam. Em meio ao crescimento vertiginoso das mortes por Covid-19 no Brasil, o comportamento de Jair Bolsonaro parece descolado da realidade. Ora o presidente sai para passear de jet ski, ora esbanja felicidade junto aos seus apoiadores em suas saídas por Brasília; quando questionado por repórteres a respeito de temas sensíveis ao governo, ri sardonicamente, meio de lado, um riso sarcástico e doentio. É difícil relacionar as cenas com as quais Bolsonaro nos bombardeia diariamente com o cargo que ele ocupa, governando um dos países com pior desempenho no combate à pandemia de Covid-19.
Suponho que sejam essas as atitudes de “escárnio presidencial pela vida” às quais Marcos Nobre se refere no último parágrafo de seu ensaio Ponto-final. As atitudes do presidente causam, ainda nas palavras do filósofo, “raiva desmesurada”. É essa raiva, capaz de cegar a ponto de reafirmar a cultura bolsonarista da morte, que Nobre nos convida a deixar de lado em seu livro. Chamar Bolsonaro de burro e louco é “desobrigar a pensar”, defende Nobre. É também conceder uma vitória ao projeto político de Bolsonaro: as atitudes do presidente são, de certa forma, despolitizadas, quando consideradas provenientes de um comportamento desvairado. Afinal, “Bolsonaro conquistou essa hegemonia no debate”, escreve Nobre, “não porque ganhou a eleição, simplesmente. Conseguiu porque passamos a aceitar debater e pensar nos termos dele”.
Ponto-final é, antes de mais nada, uma tentativa de escape, de recusar os termos que Bolsonaro nos impõe. Assim, o que há de mais fascinante nessa empreitada é a existência de um caráter de experimento no livro. Rejeitar a maneira pela qual Bolsonaro organiza o real, resistir à imposição das categorias bolsonaristas de pensamento, é por si só um exercício vertiginoso; uma aposta na necessidade de compreender esse nebuloso projeto autoritário enquanto ele toma forma.
Ponto-final, o livro, é um ensaio, um esforço vertiginoso de compreender eventos avassaladores em meio ao seu transcorrer. Dessa forma, ao pretender escapar da máquina de captura bolsonarista, a pontuação que melhor o descreve são as reticências, a continuidade do debate, no lugar do abrupto encerramento de uma frase. Similarmente ao canhão de luz de um navio à deriva, Ponto-final não propõe exatamente um rumo a ser seguido, e sim situar o lugar em que nos encontramos em meio ao nevoeiro, com a esperança de, um dia, dele podermos sair.
[Fabio Zuker] Jornalista.
PANDEMIA E AGRONEGÓCIO: DOENÇAS INFECCIOSAS, CAPITALISMO E CIÊNCIA
Rob Wallace, Elefante & Igrá Kniga
A pecuária industrial hoje, além atuar sobre o melhoramento genético de espécies de porcos, bois e galinhas, cultiva suas próprias cepas de vírus e bactérias no coração de suas práticas de criação e abate intensivo. De acordo com Rob Wallace, já estaríamos vivendo sob a égide de uma epidemiologia inscrita no sistema capitalista de produção de doenças.
Há mais de duas décadas, o biólogo evolutivo vem construindo um esforço interpretativo complexo e interdisciplinar para investigar as origens dos patógenos de potencial pandêmico na forma como a sociedade organiza suas atividades produtivas. Com base no estudo de diversas epidemias – como a gripe suína (H1N1) em 2009 no México e a gripe aviária (H1N1) em 2003 na China –, Wallace varre a geografia econômica mundial a contrapelo, registrando cuidadosamente um conjunto robusto das causas que as produziram na interface entre a pecuária intensiva e os sistemas agroecológicos locais e regionais.
Nos celeiros de abate de aves e porcos, na calada da noite e por baixo de toda a proteção em biossegurança, a peste não dorme. Passando às costas de cientistas e gestores industriais, todos os anos, cepas de vírus recém-emergentes decifram a biologia de animais criados por meio de monocultivo genético, levando à morte celeiros inteiros.
Visto do ponto de vista da pandemia, a forma como o mundo produz alimentos manifesta sua inscrição em um projeto autodestrutivo, que cultiva epidemias no coração de suas práticas ecológicas e econômicas. A produção de doenças em escala põe em movimento uma epidemiologia própria ao capitalismo, considerada em sua geografia relacional de causas múltiplas interconectadas. Tal perspectiva nos afasta das concepções da medicina colonial, tributárias de uma geografia absoluta que identifica patógenos em práticas isoladas, por vezes consideradas exóticas, seja na produção e consumo de alimentos, seja nas práticas de funeral e sepultamento de mortos dos povos colonizados.
Enfim, resta-nos saber se a epidemiologia capitalista, sob a égide do obscurantismo bolsonarista, será também capaz de cultivar sua própria cepa de vírus no coração de sua catastrófica ecologia.
[Allan Rodrigo de Campos Silva] Mestre e doutor em Geografia Humana pela USP.
Novas narrativas da web
Sites e projetos que merecem seu tempo
Oceano de livros
O Google lançou um site em seu laboratório de experiências culturais que é um mapa literário por afinidades. Cada ilha representa um autor, e cada cidade é um livro. A distância ou proximidade entre autores foi calculada por um algoritmo que analisa a web e as complexas relações de links, por meio de um método matemático de machine learning de aproximação e projeção de pontos. Isso explica por que a maior ilha perto de Freud, por exemplo, é Marx, ou por que, no arquipélago dos clássicos, Shakespeare está perto de Robert Louis Stevenson, Dostoievsky e Charles Dickens. Navegue.
https://artsexperiments.withgoogle.com/ocean-of-books
Fábrica de trolls
Já pensou como são feitas, na prática, as campanhas de desinformação e fake news? Troll Factory foi desenvolvido por um time de especialistas da empresa finlandesa de comunicações Yle. A equipe usa métodos combinados de jornalismo, storytelling, games e interatividade para contar melhor uma história. O jogo usa conteúdo real de fake news, encontrado em materiais que circularam na Europa. A produção de ódio e a discriminação contra imigrantes são o foco da reportagem.
trollfactory.yle.fi
Todos os voos do mundo
Em tempo real, nesse site você pode ver onde está cada avião no mundo, seus horários de chegada previstos, de onde vieram e para onde estão indo. Flightradar24 começou em 2006 como um hobby de dois programadores suíços, que construíram uma rede que captava informações do sistema aéreo. Em 2009 abriram a rede para colaborações e desde então captam dados do mundo inteiro. Alguns lugares ainda não estão bem cobertos, mas é possível ter uma boa ideia da quantidade de voos – e imaginar a poluição gerada pelo sistema aéreo a cada minuto.
https://www.flightradar24.com/
[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.