Miscelânea
O CORPO INTERMINÁVEL

O que fazer quando o exílio de outrem se encontra dentro de você? Daniel apalavrou essa busca nos significados da história da mãe, uma guerrilheira desaparecida na ditadura civil-militar (1964-1985). Mãe e filho não apresentados, ou reconhecíveis, são ligados pelos desaparecimentos de corpos representados. Como narra a autora: “o instante da separação foi seu único encontro”. Os tipos antônimos de esquecimentos nos apresentam o encontro de Daniel com Melina, ambos da geração de filhos da ditadura. Duas pessoas que reencontram suas ausências tanto em suas famílias quanto nas histórias que constroem e fazem um país. Ele na busca do exílio de outro corpo em si, o de sua mãe. Ela com a negativa histórica de sua família, que minimiza os efeitos e a existência da ditadura. O corpo interminável reconstrói a história da busca do desaparecimento, no qual o futuro não se inscreve em respostas nem em horizontes.
Claudia Lage nos divide nas partes entre distâncias, presenças e corpos, em que escutamos vozes que buscam suas próprias narrativas corpóreas. A atuação da militância feminina das guerrilheiras é contada não em seus macroarcos revolucionários, mas por memórias e apagamentos, vertigens fugidias, na tentativa de serem encarnadas. São as histórias de Daniel e Melina que nos revelam os corpos que já nascem extintos, mas que se revelam em presenças.
Ao lermos nos perguntamos se são os corpos donos dos tempos. Uma ficção que é escrita sobre um momento pretérito, mas que não imaginava encontrar rastros de realidade ao ser publicado. Que não se imaginava ressoar numa atualidade que tenta pactuar sobre uma desmemória do que foi. Ao desaparecerem com os corpos, tentavam apagar também o tempo vivido e a história escrita. O livro é um ativo de biografias que nos apresenta um memorial cujo corpo que nasce extinto mostra a extinção de um tempo. Ele nos fala de um Brasil contemporâneo em que o desconhecimento histórico não pode suplantar futuros.
[Beatriz Brandão] Antropóloga e jornalista, pós-doutoranda em Sociologia pela USP, doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio e mestra em Ciências Sociais pela Uerj. Pesquisa temas transversais ao conflito e à arte na interface com drogas, refúgio e gênero.
OFENSIVAS – A POTÊNCIA DO NÃO RETORNO À NORMALIDADE

Na redoma de nossa experiência contemporânea estão calcadas múltiplas brechas para o desvendamento de um futuro possível – que ele seja inventivo e solidário. Paulo Spina trava uma relação coletiva intempestiva com o próprio tempo por meio de proposições por novos modos do fazer político e da criação afetiva que despontem da fragilidade pandêmica, esta que desvela o tecido da vida em sua brutalidade e esclerose.
Ofensivas – A potência do não retorno à normalidade é um manifesto passional de muitas vozes. Olhando para o corpo morto do “normal”, propõe-se a infalibilidade da vida e a mobilização dos afetos coletivos de ampliação de suas potências perenes. O esforço coerente por uma solidariedade que teça todos os espaços em horizontalidade transformadora é o fio que narra as ofensivas que insistem em ver uma possibilidade vivível em queda livre.
A pandemia ocasionada pelo coronavírus orientou os olhares para uma devastação bruta latente, trouxe à luz – mesmo que turva e intoxicada – um colapso inescapável. O efeito incontrolável das implosões organizacionais da sociedade convida à formulação de um bem viver intrincado numa expressão genuína de solidariedade formada pelo atravessamento das dimensões coabitantes da produção de uma vida reinventada. Essa forma de solidariedade demanda a vista lúcida à decrepitude da disputa neoliberal e sua proposta de erupção violenta do sujeito.
No cerne das proposições delineadas existe o apelo à condição de criação do hoje, negando a espera melancólica e propondo a superação do reductio ad absurdum da sociedade que se escancara.
Entre a metamorfização do comum, as transformações operam em todas as condições de subalternidade – doméstica, comunitária, nacional e transnacional. Os contornos populares de uma organização genuína e solidária dependem da guerra às produções de impotência em que o comum é o real aliado.
[Fabiana Gibim] Editora da sobinfluencia. Pesquisa sobre surrealismo e teoria da imagem.
Novas narrativas da web
Sites e projetos que merecem seu tempo
Amor e gênero
O New York Times fez um belo trabalho interativo em que analisou todos os textos, de todos os seus colunistas, sobre o amor. Dividiram entre escritos por homens ou mulheres e fizeram uma nuvem de palavras – processo em que o texto é colocado num software que mapeia e conta a quantidade de palavras que mais se repetem. Organizaram isso de forma visual e mostraram os resultados. Homens, quando falam de amor, falam de sexo; mulheres, de casamento. Mulheres falam de sentimentos; homens, de ações. Veja a pesquisa completa no link.
Epicentro
E se todos os mortos por Covid‑19 no Brasil fossem seus vizinhos? Esse especial da revista Piauí on-line, feito pela Agência Lupa com o Google News Initiative, mostra o que aconteceria com sua vizinhança caso o epicentro da epidemia de Covid‑19 no Brasil fosse sua casa. Colocando São Paulo como epicentro e concentrando as mortes ao redor, mostra que alguns bairros inteiros teriam desaparecido, como Perdizes, Pompeia e Pacaembu. Ou, comparativamente, a cidade de Caieiras inteira, considerando as mais de 150 mil mortes até o momento em que este texto é escrito.
https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/epicentro/
O que é um proprietário ético?
Centenas de instituições sem fins lucrativos operam a ideia da propriedade ética em todo o mundo. São organizações que detêm propriedades e buscam mobilizá-las com regras alternativas às do mercado de compra e venda de imóveis. O projeto “O que é um proprietário ético” mapeia essas propriedades e as publica num site. O mapa mostra que a construção de alternativas ao mercado imobiliário especulativo é um movimento global. É também uma ação política para mostrar lado a lado iniciativas que em geral são vistas como isoladas. E facilita a busca para a pesquisa.
http://bit.ly/eticaimobiliaria
[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.