Miscelânea
Confira as resenhas dos livros A finitude das coisas, de Nélio Silzantov, Pedagogia de Massas do Neoconservadorismo, de José Eustáquio, e Todo mundo tem mãe, Catarina, de Carla Guerson
PEDAGOGIA DE MASSAS DO NEOCONSERVADORISMO
José Eustáquio Romão, Caminhar
Pedagogia de massas do neoconservadorismo é um livro que traz três interpretações da racionalidade. Nessa medida, o referencial teórico está sob as luzes de Wilhelm Reich, Lucien Goldman e Paulo Freire.
A trajetória profissional e de vida de José Eustáquio Romão, autor do livro em questão, lhe dá, em grande parte, autoridade para tratar, por exemplo, das epistemologias propostas por Paulo Freire e de tantos outros pensadores colocados por ele nessa obra que atualiza, de forma fundamentada, as raízes mais profundas e muitas vezes encobertas que sustentam tendências neofacistas, a exploração sem precedentes do capitalismo e as ameaças que recobrem a democracia.
Ao colocar Paulo Freire em discussão, ele esclarece, por exemplo, quais seriam as reais contribuições do grande pensador brasileiro que, na maioria das vezes, são deturpadas, não somente em aspectos conceituais. Também faz reflexões com base no pensamento de Goldman e Reich à luz da contemporaneidade.
O autor chama a atenção, inclusive, para a manipulação das mídias e das redes sociais sob o comando silencioso dos poderes estabelecidos, e para quanto elas têm contribuído para obscurecer e confundir as informações e os conteúdos de maneira a exercer com mais plenitude suas reais intenções, ou seja, convencer sutilmente de que servidão, submissão e aceitação passivo-massiva são processos naturais com os quais devemos conviver.
[Ana Maria Haddad Baptista] Tem pós-doutoramento em História da Ciência pela Universidade de Lisboa e pela PUC-SP, onde se aposentou, além de mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Tem vasta experiência no magistério do ensino superior e diversas publicações no Brasil e no exterior. Atualmente trabalha como pesquisadora e professora nos programas de pós-graduação stricto sensu em Educação da Universidade Nove de Julho.
A FINITUDE DAS COISAS
Nélio Silzantov, Patuá
Penso que toda escrita ficcional carrega algum elemento que denuncia o ponto de vista do autor. Sua forma de enxergar o mundo, suas relações interpessoais e a maneira como desempenha seu papel na sociedade. Mesmo que o personagem seja um componente totalmente divergente do autor, para sua construção é necessário que este o crie de acordo com sua compreensão das diversas nuances inerentes ao indivíduo e à dinâmica social em que ele vive.
Em A finitude das coisas, o escritor Nélio Silzantov esbanja habilidade na construção de personagens que atuam em determinado tempo/espaço (neste caso, na Vitória da Conquista dos anos 1990).
Guiados por uma narradora feminina, os leitores conhecerão a vida de um grupo de amigos que testam todos os limites de sua juventude, embalados por sexo, drogas e rock and roll e o ímpeto de uma geração que ainda vivenciava os conceitos de liberdade e rebeldia, atrelados às suas condições sociais e familiares.
Mais do que a história de um grupo de jovens, Nélio vasculha o mais profundo sentimento de cada personagem. Reflete sobre a condição humana e seus fenômenos mentais e psicológicos.
Ciente de suas histórias, o leitor não sairá imune às observações filosóficas e sociais tão bem elaboradas pelo autor, que utiliza seu conhecimento em filosofia e sua expertise para destrinchar todas as peças que constituem o ser humano físico e anímico.
[Rosana Vinguenbah] Paulista radicada em Minas Gerais desde a infância, é bióloga e atua como funcionária pública administrativa. Autora do romance Sopa de pedras (Penalux, 2018) e da coletânea de contos Relatos insignificantes de vidas anônimas (Caos e Letras, 2021), participou da coletânea de contos Retratos de uma vida em quarentena (Dublinense/Elefante, 2020) e venceu o Concurso Literário Pintura das Palavras com o conto “Baixo Augusta”. Mantém o perfil @rosana_vinguenbah no Instagram, onde fala sobre literatura nacional contemporânea.
TODO MUNDO TEM MÃE, CATARINA
Carla Guerson, Reformatório
No romance, embora a voz narrativa pertença a Catarina, a maior protagonista da história é a ausência. É a partir dela que o romance se desdobra e nos convida para acompanhar a evolução da narradora. Enquanto lia, fui arremessada para os Fragmentos de um discurso amoroso, de Barthes. Ao escrever sobre a ausência, ele concluiu ser esta uma via de mão única, já que só pode ser dita por aquele que foi abandonado. Na história, a protagonista, aos 5 anos, sofre a epifania de não ter mãe e, a partir desse evento, a busca pela genitora se torna sua força motriz. No entanto, em vários momentos, Catarina suporta bem o abandono, até para não sucumbir à tristeza ou à loucura. A menina se afasta de suas perturbações e experimenta dias de gerúndio: estudando, conversando, namorando, descobrindo-se… Ou seja, como na teoria winnicottiana, a narradora age feito um sujeito bem desmamado, sabendo se nutrir de outras realidades.
Assim, Susana, a mãe-genitora de Catarina, vai se transformando em personagem alocutária, um eu duplo da filha, uma manobra perspicaz da garota para sustentar sua angústia de separação, a qual triunfa por recuperar a presença da mãe duas vezes: ao se queixar de sua partida e quando se dirige a ela, numa cristalina manipulação de sentimentos que deságua em movimentos de vaivém de memórias. Com essa estratégia, Carla Guerson surge abrindo “o palco da linguagem”, pois, como bem descreve Barthes sobre o abandono, “a linguagem nasce da ausência: a criança faz um carretel, que ela lança e retoma, simulando a partida e a volta da mãe, criando um paradigma”.
Por tudo isso, penso ser esse romance revolucionário ao nos oferecer uma história cuja protagonista não está em busca de abrigo na figura masculina, mas em suas ancestrais e, sobretudo, em si mesma. É revolucionário especialmente por enxergar seu homem apenas como objeto de desejo e nunca como salvação. Catarina, assim, converte-se na prova de que, na contemporaneidade, não há mais espaço para personagens submissas.
[Myriam Scotti] Escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance Terra úmida foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020.