Mudanças na sexualidade, permanência do sexismo
Libertada, a palavra das mulheres permitiu a conscientização a respeito da amplitude da violência e do assédio a que são submetidas cotidianamente. Por outro lado, como explicar essa proliferação de comportamentos sexistas em um cenário em que as práticas sexuais evoluíram no sentido de uma maior igualdade entre os parceiros?
O sexismo brutal dos comportamentos do produtor Harvey Weinstein, denunciados no fim de 2017 pelo jornalismo investigativo após as revelações e mobilizações das mulheres, principalmente nas redes sociais, que tornaram visíveis diversos atos de assédio, agressão e violência sexuais, instigam a análise do sexismo como um sistema. Isso implica a ideia de uma hierarquia sistemática entre os sexos que permite a um dos dois impor sua dominação, de modo que seja dada preferência e até mesmo exclusividade a seus interesses. O sexismo não é um estereótipo ou um desequilíbrio presente em alguns homens que bastaria ser desmontado intelectualmente ou submetido a tratamento. Trata-se de um sistema cujas manifestações no âmbito da vida social são reforçadas pelas desigualdades em outras esferas, o que lhes dá uma poderosa coerência e as torna difíceis de serem alteradas: a desigualdade dos salários, a sobrecarga de trabalho doméstico das mulheres, sua maior precariedade profissional, sua fraca presença na política, na cultura e no esporte, seu difícil acesso aos espaços públicos, o uso sexista da língua, o assédio sexual e muitas outras assimetrias interligadas.
Em suma, a força do sexismo é dupla, pois ele se constrói por meio de diversos focos e se recompõe facilmente quando a desigualdade se enfraquece em um campo de ação (por exemplo, na educação). Além disso, ele consegue resistir ao progresso das ideias e das normas de igualdade formal entre os sexos, deslocando permanentemente seus lugares e modos de justificativa. Por isso, a luta contra o sexismo também deve ser móvel.
Desigualdade enraizada nos corpos?
Os comportamentos que suscitaram a indignação no outono de 2017 tocam na sexualidade de todos. Esta última desempenha um papel particular na gênese do sexismo? Ou haveria ocorrido uma degradação brutal nas relações entre os sexos, principalmente em matéria de sexualidade?
Uma resposta afirmativa poderia se basear nos trabalhos da saudosa Françoise Héritier.1 Lembremos que, para a antropóloga, a desigualdade de gênero tem suas raízes em um pensamento diferencial original, fundamentado na observação dos corpos e da reprodução. Esse pensamento estabelece uma assimetria conceitual na qual o masculino e seus correlatos prevalecem sobre o feminino (maior/menor, primogênito/caçula, seco/úmido, sol/lua, claro/sombrio…). Com base nessa assimetria, os homens, que não podem parir, atribuem-se direitos sobre a descendência das mulheres e até mesmo se apropriam deles. A dicotomia ativo/passivo na sexualidade decorre da “valência diferencial dos sexos” e seria uma das matrizes do que Françoise Héritier denomina a “licitude da pulsão masculina”, que não pode ser discutida nem contrariada. Haveria assim um desigualitarismo atávico e imutável da esfera sexual, enraizado na diferença dos corpos e inscrito nas representações do masculino e do feminino. A luta contra esse “pensamento da diferença” e suas consequências seria particularmente árdua.
No entanto, a prática da sexualidade não é tão imutável como sugere essa concepção. Dada a importância das mudanças em matéria de gênero e de sexualidade durante os últimos cinquenta anos, torna-se necessário que a reflexão antropológica de Françoise Héritier seja completada com uma leitura mais contextualizada dos comportamentos sexuais contemporâneos e das violências a eles associadas. Indiscutivelmente, abriram-se possibilidades para as mulheres, mas as resistências à igualdade envolveram também novas expressões entre os homens.
A denúncia dos comportamentos sexistas baseia-se em práticas cada vez mais igualitárias no que diz respeito à sexualidade. Relatemos as principais etapas da evolução dos comportamentos sexuais desde os anos 1960, deixando claro que elas se inscrevem em um conjunto de mudanças que afetaram a situação das mulheres, tais como o grande aumento de seu nível de instrução, o crescimento de sua participação no mercado de trabalho, as transformações da família e o estabelecimento de normas jurídicas de igualdade. Esses avanços ampliaram consideravelmente suas margens de manobra, sem recolocar em questão as principais relações de poder.
Como consequência da difusão maciça de formas de contracepção eficaz (a partir da década de 1970 na França), os poucos períodos de vida em que se pratica uma sexualidade destinada à reprodução e aqueles em que se pratica uma sexualidade não voltada para a reprodução foram a partir daquela época nitidamente separados. Aliás, os momentos em que as mulheres engravidam passam a ocupar apenas um lugar restrito em sua vida. A situação efetiva do período da juventude, que se alongou a partir dos anos 1980, mudou. Ele passou a ser amplamente vivenciado como uma fase de formação, graças à generalização da escolaridade secundária e do grande desenvolvimento do ensino superior. Tornou-se também, a partir de então, um momento da vida em que a sexualidade, vivenciada sem contrato material, é lícita para os dois sexos, tendo a idade da primeira relação das mulheres diminuído nitidamente a partir da década de 1960 (17,5 anos na França)2 e o horizonte do casamento se distanciado: o número de casamentos passou de 416 mil em 1972 para 235 mil em 2016 (7 mil destes entre pessoas do mesmo sexo) e, no caso das mulheres, eles passaram a se dar em média aos 35 anos de idade.3
Foi uma grande mudança em comparação com os anos 1950 e o início da década de 1960: naquela época, as jovens eram obrigadas a se preservar para o casamento, enquanto os homens podiam desfrutar amplamente de sua juventude com mulheres mais velhas que eles ou com prostitutas. Houve também um prolongamento da vida sexual de pessoas com idade avançada: enquanto em 1970 somente 50% das mulheres casadas que tinham mais de 50 anos de idade tinham atividade sexual, na década de 2000 isso passou a ocorrer com 90% das mulheres casadas com a mesma idade.4 Assim, a menopausa deixou de marcar o fim da vida sexual.
Passividade feminina deixou de ser norma
Por outro lado, um dos efeitos do declínio da instituição matrimonial a partir dos anos 1980 foi a diversificação dos percursos de vida e, portanto, dos limites de exercício da sexualidade. A mudança é particularmente clara no caso das mulheres. Enquanto em 1970 apenas um terço delas tinha tido mais de um parceiro na vida, em 2006 essa proporção chegou a dois terços, e a das que tiveram relações com mulheres aumentou. Após uma separação amorosa ou conjugal, experiência a partir de então frequente, o número das que encontram novos parceiros com os quais formam ou não casais, com os quais vivem ou não com jovens crianças é igual ao número de homens na mesma situação. Nos anos 2000, a chegada das novas tecnologias de comunicação contribuiu para modificar o cenário de encontros afetivos e sexuais, que podem passar despercebidos; são inúmeras as jovens que as utilizam em proporções comparáveis com as dos homens (entre um terço e 40% dos 18 aos 25 anos de idade).5 Sua atividade sexual não é mais limitada ao âmbito do casamento na idade de ter filhos. Em todos os ambientes, o espaço e o tempo da sexualidade se abriram para elas.
Nas próprias relações sexuais, as práticas mais assimétricas recuaram e emergiu um novo cenário mais igualitário.6 Em 1970, a maioria das mulheres e dos homens declarou que eram estes últimos que tomavam a iniciativa das relações sexuais. Em suma, as relações aconteciam quando eles decidiam, sem que isso fosse considerado uma violência. Na segunda metade dos anos 2000, quatro quintos das mulheres e dos homens declararam que, em sua última relação, o desejo era tanto de um quanto do outro. A passividade feminina deixou de ser a norma. O desejo mútuo se tornou, a partir de então, um componente usual e esperado da relação sexual. As relações que não correspondem a esse modelo são consideradas insatisfatórias e até mesmo violentas.
O repertório das práticas se ampliou, e o valor da reciprocidade entre os parceiros progrediu. As grandes pesquisas conduzidas na França nos últimos quarenta anos revelam a importância das carícias, da masturbação mútua e da sexualidade oral: nos anos 2000, 65% das mulheres de 25 a 49 anos declararam praticar a felação com frequência ou às vezes, e 70% dos homens a cunilíngua. Aliás, tornou-se usual realizar a cunilíngua e a felação no mesmo ato. A atividade sexual tomou a forma também de relações sem penetração, prática frequente que constitui uma fonte de prazer plena.7 Há pouco tempo impensável, a masturbação solitária aumentou consideravelmente entre as mulheres. Da mesma maneira, 73% delas viram filmes pornográficos na vida, ou seja, a maioria, ainda que apenas 20% os tenham visto com regularidade.8 A alta extraordinária, entre os anos 1970 e a década de 2000, da satisfação que elas expressam no que diz respeito à sua vida sexual e a proporção elevada das que declaram ter tido orgasmo na última relação (81% nos anos 2000) estão ligadas à sua atitude, a partir de então, mais ativa durante a interação sexual.
Violência serve aos objetivos do poder
Embora tenhamos visto nas últimas décadas uma abertura dos comportamentos e uma aproximação dos percursos e das práticas entre mulheres e homens, na verdade suas condutas sexuais não são avaliadas nem julgadas de acordo com os mesmos critérios. As pessoas entrevistadas nos anos 2000 se limitam a uma percepção muito dicotômica de suas respectivas motivações. Assim, dois terços das mulheres e dos homens continuam a dizer que “os homens têm, por natureza, mais necessidades sexuais”. Além disso, a frase “Podemos ter relações sexuais com qualquer pessoa sem amá-la” é desaprovada (“não concordo”) por 54% das mulheres, mas por apenas 30% dos homens.
Assim, mantém-se uma percepção hierarquizada da interação sexual que já não corresponde mais à evolução das práticas. Haveria uma inadequação entre feminilidade e desejo sexual sustentado. A ideia dominante, aprovada por alguns psicólogos, é que as mulheres manifestam antes de mais nada um desejo reativo ou subalterno ativado pela demanda dos homens. Estes estariam sob a dependência de pulsões imperiosas. De acordo com essa percepção hierárquica da sexualidade, o desejo feminino continua a maior parte do tempo adormecido enquanto um homem não o acorda. Essa concepção é, de fato, uma palavra de ordem. Uma mulher que manifeste um desejo explícito não inscrito nas aspirações amorosas ou na heterossexualidade se vê severamente julgada e questionada por sua má conduta. As sanções relativas à reputação decorrentes do desejo em questão são temidas pelas mulheres de todos os meios.
Enquanto o que está em jogo nos comportamentos sexistas denunciados é totalmente diferente, alegam-se sistematicamente os aspectos sexuais (presume-se que os “calhordas” não têm nenhuma discrição). Violência sexual, assédio sexista e injúrias sexuais não decorrem de pulsões sexuais masculinas incontroláveis, mas são uma estratégia ou uma linguagem utilizadas para “recolocar as mulheres em seu devido lugar”, para censurá-las e tentar preservar, assim, a posição dos homens. De fato, as mulheres tornaram-se influentes, ou simplesmente mais presentes, nos novos espaços – no trabalho, na política, no espaço público, nas novas formas de comunicação e mesmo na família. Violência e assédio (inclusive o assédio cibernético) são ao mesmo tempo um ato de poder tradicional e uma estratégia sexista renovada, adaptada aos contatos cotidianos entre mulheres e homens nas sociedades contemporâneas. As violências denunciadas são uma reação ao progresso em direção a mais igualdade; essas violências são reacionárias. Servem para reafirmar hierarquias e posições.
Em um artigo que apresenta alguns resultados da pesquisa Virage (acrônimo de Violence et rapports de genre) [Violência e relações de gênero], feita pelo Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined),9 Amandine Lebugle e sua equipe distinguem cinco tipos de violência nos espaços públicos: as injúrias, a cantada inoportuna, a violência física, o assédio e os atentados sexuais, e a violência sexual. As jovens das grandes cidades são as mais atingidas, principalmente pelos tipos de violência com conotação sexual: cantada inoportuna, assédio e violência. Esses atos têm mais o objetivo de criar situações intimidadoras, e até mesmo humilhantes, para lembrar que o espaço público é lugar dos homens, do que “satisfazer necessidades sexuais”. São atos de poder unilateral. O mesmo ocorre com as injúrias, que compreendem geralmente qualificativos sexuais que desvalorizam as mulheres que frequentam o espaço público, contribuindo para distanciá-las desses espaços. No que se refere ao assédio sexista no trabalho, muito evidente nas revelações do outono de 2017, ele utiliza também a sexualidade para lembrar às mulheres sua ilegitimidade profissional ou sua subordinação aos homens. Trata-se de uma forma de discriminação no trabalho.
O fato de o sexismo se expressar no campo da sexualidade não indica, portanto, que esta seria por natureza sexista, ou estaria na origem do sexismo, ou que as adolescentes e as jovens deveriam se distanciar da sexualidade, ou que nossa época teria se tornado sexualmente mais violenta. A indignação provocada pela revelação desses comportamentos de assédio, de agressão e de violência indica, ao contrário, uma revolta ligada ao progresso de cenários sexuais igualitários e a uma volta histórica da tendência antiga de “condenar as vítimas”. Defasada das práticas interpessoais mais igualitárias, a violência baseada na sexualidade ou em propostas sexuais não tem acima de tudo objetivos sexuais. Ela é praticada visando a um poder, a uma lembrança de que há fronteiras e privilégios de gênero, a uma depreciação daquelas que se afirmam. Impedir essa violência é uma tarefa política que nos diz respeito, que concerne a todos e todas nós.
*Michel Bozon é coordenador de pesquisas do Institut National d’Études Démographiques (Ined) e autor, fundamentalmente, de Pratique de l’amour. Le plaisir et l’inquiétude [Prática do amor. O prazer e a inquietação], Payot, Paris, 2016.