Muito além do mosquito
Combater a doença que vitima a população carioca é relativamente simples: apesar de não haver vacina disponível, basta dedetizar de forma adequada as regiões identificadas como focos de proliferação do inseto. Mas, se é assim, por que estamos vivendo um surto, com mais de cem mil casos registrados?
A dengue é uma doença viral, mundialmente distribuída, e caracteriza-se pela necessidade da atuação do mosquito Aedes aegypti para consolidar sua cadeia de transmissão. Nesta cadeia estão incluídos fatores virais, ambientais, do agente transmissor e do hospedeiro humano final. Em termos sumários, um Aedes aegypti ainda não infectado pica uma pessoa doente, que carrega em si o vírus da dengue, e é contaminado. Tempos depois, este mosquito infectará outros humanos, perpetuando um ciclo vital que, obviamente, depende da presença do inseto e de indivíduos doentes.
Neste contexto, a prevenção de casos de dengue parece bastante simples: apesar de não haver vacina disponível contra a doença, bastaria realizarmos a dedetização adequada para aniquilar o mosquito transmissor. Parece bastante simples, mas é exatamente isso que não estamos fazendo!
Vejamos os aspectos e variáveis deste fato e suas implicações sociais, ambientais e políticas. O Aedes aegypti foi originalmente trazido da África de modo passivo pelo homem, durante o transporte de seres humanos e de mercadorias para o continente americano. Este mosquito desenvolveu um grau de sinantropia bastante elevado, ou seja, aumentou sua capacidade de adaptação ao ambiente urbano, bem mais inóspito. Isso lhe permitiu perpetuar-se neste novo habitat até os dias atuais, respeitando, é claro, os limites geográficos de baixa temperatura, sabidamente um fator que impossibilita a sinantropia para esta espécie.
Vale ressaltar que a multiplicação deste inseto está altamente associada à quantidade de chuvas durante o ano, trazendo uma sazonalidade natural para a dengue. Esta sazonalidade se mostra mais evidente nos meses com maior índice pluviométrico, temporada que vai de janeiro a maio. É esperado que neste período haja maior multiplicação do Aedes aegypti porque mais criadouros se formam nas áreas urbanas através do acúmulo de água em recipientes vazio mal-cuidados, lajes descobertas e pneus jogados em terrenos baldios, entre outros inúmeros e bem conhecidos locais que potencialmente podem se transformar em viveiros de mosquitos.
A eliminação deles demanda atuação em vários pontos. Em primeiro lugar, a supressão do Aedes aegypti deveria ocorrer em dois níveis: a exterminação do mosquito já existente no ambiente e a prevenção da formação de novos criadouros. É bem conhecido o fato de que alguns índices epidemiológicos ambientais – como por exemplo o de Breteau, o de positividade de ovitrampa e o de densidade de larvitrampa, relativos à magnitude da população de ovos e larvas de mosquitos –, predizem com razoável acerto a chegada de uma epidemia, a partir do momento em que existam doentes na população e uma densidade populacional de ovos, larvas e mosquitos presentes na cidade. Neste cenário, o uso de caminhões-fumacê e nebulizadores de inseticidas são manobras indicadas para o controle de mosquitos pré-existentes, impedindo que haja novas oviposições (descarga de novos ovos nos habitats domésticos).
Em relação à prevenção, o grande envolvido é o cidadão que vive na cidade. É neste contexto que os fatores sociais são mais importantes, pois é sabido que uma percentagem muito expressiva de moradores de casas visitadas por grupos de vigilantes sanitários não permitem inspeções técnicas no local. Terror da violência urbana? Incompetência dos visitantes em serem convincentes? Falha do Estado em prover um sistema sanitário de vestimentas e dispositivos que efetivamente tragam segurança na identificação para esta visita técnica? Falta de investimento estatal em uma divulgação televisiva ampla, visto ser esse o veículo de maior impacto educacional de massa? Temor de represália do cidadão ao encontrar ovos, larvas ou mosquitos em sua residência, tornando o Estado um padrasto malvado e não um pai orientador e tranqüilizador?
Acredito que a educação dos cidadãos, mas primordialmente do Estado, é a grande chave para o sucesso desta empreitada, procurando montar um programa sistemático de vigilância epidemiológica para as diferentes patologias infecciosas, com claras bases técnicas e disponibilização estatal de profissionais adequadamente treinados, envolvidos nas atividades e, acima de tudo, orgulhosos do trabalho que realizam.
A situação calamitosa que estamos presenciando no Rio de Janeiro, e que já teve sua época em São Paulo, em 2002, poderia ser evitada se houvesse um programa educacional em saúde e higiene. E novamente volto ao assunto da educação do cidadão para a responsabilidade na cadeia de acontecimentos de sua casa, rua, cidade, estado e país, e às conseqüências de atitudes despreparadas, além da falta de compromisso do Estado em prover condições para que as necessidades sanitárias sejam atendidas. Todos esses fatores acabam levando a cifras estratosféricas nos índices de notificação de dengue em diferentes países das Américas (veja tabela).
Em apenas um estado brasileiro foram registrados 110.783 casos de dengue, com 92 mortes causadas pela forma hemorrágica da doença, maior cifra desde que o programa de notificação começou a ser realizado, em 1990.
Cabe assinalar que em situações de epidemia, como a que está acontecendo, toda dor no corpo e toda febre com dor de cabeça passam a ser um caso suspeito de dengue, e obviamente os cidadãos da cidade recorrem aos serviços de saúde para resolver suas dúvidas. A conseqüência imediata disto é a superlotação de postos médicos e a absoluta inadimplência de um sistema de saúde que já vinha doente de longa data, tanto do ponto de vista do número de médicos disponíveis, como da eficiência do serviço como um todo.
Se nos perguntarmos a resposta para a pergunta inicial feita nesta matéria – onde estamos errando no caso da dengue –, eu diria que provavelmente perdemos nossa educação, ou talvez, lamentavelmente, nunca a tivemos. Um planejamento técnico baseado na epidemiologia das doenças passíveis de prevenção é assunto urgente para que possamos retomar o papel brilhante do epidemiologista do passado e que hoje não consegue espaço, assim como para que tenhamos governantes realmente envolvidos na construção de um país melhor e mais saudável.
*Jorge M. Buchdid Amarante é médico infectologista, mestre em Doenças Infecciosas (FMUSP), coordenador da CCIH (Comissão de Controle de Infecção Hospitalar) do Hospital Samaritano de São Paulo e da CCIH do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros.