Multinacional-pesadelo
Como uma pequena empresa de Arkansas transformou-se na maior corporação do planeta, ao rebaixar salários, reprimir sindicatos, chantagear governos e destruir pequenas empresas. Por que a tentação do “preço baixo” pode ser a porta de entrada para a contra-utopia neoliberalSerge Halimi
“Dos farrafos à fortuna”: esta definição ritual do “sonho americano” de mobilidade social deve expor permanentemente seu estoque de belas histórias para fomentar a ilusão em todos. John D. Rockefeller, pequeno contador em Cleveland, tornou-se em 31 anos o mais poderoso dono do petróleo do mundo. Steve Jobs abandonou a universidade antes de se formar para fundar uma pequena empresa em sua garagem, a Apple, que tornou o jovem californiano bilionário antes dos trinta anos de idade.
O mito é o mesmo em torno da Wal-Mart, mas mais forte. No início, uma pequena loja em Arkansas, um dos estados mais pobres do país. Hoje, uma cifra de negócios que gira em torno de 310 bilhões de dólares (2005), uma família da qual quatro filhos estão entre as dez pessoas mais ricas do planeta, uma cadeia de hipermercados que se tornou ao mesmo tempo a maior empresa do mundo – ultrapassou a ExxonMobil em 2003 – e o principal empregador privado. As vendas da Wal-Mart representam 1 CD em cada 5 comprados nos Estados Unidos, 1 tubo de pasta de dentes em cada 4, 1 berço para bebê em cada 3. E de maneira mais significativa, 2,5% do PIB norte-americano [1]! Mais rica e mais influente que cento e cinqüenta países, a empresa deve às regras estabelecidas por estes o poder que exerce hoje.
O modelo Wal-Mart
Com esta potência, não há por que se espantar que a maior parte das transformações (econômicas, sociais, políticas) do planeta tenha encontrado seu reforço – às vezes também sua origem, sua correia de transmissão, seu acelerador – em Bentonville, em Arkansas, sede da empresa. Combate contra os sindicatos, deslocamentos de parte da produção para o exterior, utilização de mão-de-obra superexplorada que a desregulamentação do trabalho e os acordos de livre comércio tornam cada ano mais abundante: é o modelo Wal-Mart. Pressões sobre os fornecedores para obrigá-los a reduzir o máximo possível seus preços, comprimindo os salários (ou estabelecer-se no exterior); indefinição das funções para favorecer o encadeamento das tarefas e assim perseguir o menor tempo morto, a menor pausa: é o modelo Wal-Mart. Construção de estabelecimentos horríveis (as “caixas de sapatos”) entulhados de mercadorias pelo exército de 7.100 caminhões gigantes da empresa, rodando e poluindo 24 horas por dia, a fim de encher, na hora certa, os porta-malas de milhões de carros enfileirados nos enormes estacionamentos de quase todas as 5 mil “caixas de sapatos” que a multinacional dirige no mundo: é o modelo Wal-Mart.
Em 2001, as receitas da Wal-Mart ultrapassaram o PIB da maior parte dos países, entre eles a Suécia
Depois, quando os sindicatos contra-atacam, quando os ecologistas se manifestam, quando enfim os clientes avaliam o que os “preços mais baixos” escondem, quando artistas se esquecem por um momento de se vender para participar do movimento popular, quando cidadãos barram a instalação de novos cubos de cimento em seus territórios, é ainda a Wal-Mart que, desta vez, recruta velhos “comunicadores” da Casa Branca, democratas ou republicanos, e os encarrega de limpar a imagem da empresa, saturando os meios de comunicação [2] . Eles dizem: A Wal-Mart tornou-se “ética”; procura apenas criar empregos – sem dúvida, pagos de maneira medíocre, mas antes pouco do que nada, e os clientes gostam tanto dos preços baixos… E acrescentam que a busca obstinada de lucro permitiu melhorar a produtividade nacional. E que, doravante, a empresa defenderá o meio ambiente como socorreu as vítimas do furacão Katrina. Exploração, comunicação: mais um modelo…
Na realidade, como se surpreender efetivamente com isso? Não se torna a maior empresa do mundo por acaso, simplesmente porque, 40 anos antes, o fundador Sam Walton (que morreu em abril de 1992, poucos dias depois de ter recebido uma das mais altas condecorações norte-americanas das mãos do ex-presidente George H. Bush) teve a inspiração de vender melancias na calçada da loja e de, ao mesmo tempo, oferecer às crianças de seus clientes passeios em cavalinhos no estacionamento [3].
A primeira loja Wal-Mart foi aberta em 1962, em Rogers, no Arkansas, em uma zona rural e abandonada. Nove anos depois, a empresa havia ampliado sua esfera de influência, estabelecendo-se em cinco estados. As primeiras lojas que abriu, de fraca densidade, foram ignoradas pelos grandes distribuidores: a Wal-Mart estabeleceu solidamente seu monopólio ali, antes de estendê-lo para outros lugares. Ela privilegia a periferia dos centros urbanos para desfrutar ao mesmo tempo da clientela das cidades e dos preços mais baixos dos terrenos. Antecipando em 1991 o acordo de livre comércio norte-americano (Nafta, na sigla inglesa) que o presidente William Clinton, ex-governador do Arkansas, ratificou dois anos depois [4], o Pequeno Polegar de Bentonville se internacionalizou e desembarcou no México. No Canadá em 1994. Em seguida no Brasil e na Argentina (1995), na China (1996), na Alemanha (1998), no Reino Unido (1999). Em 2001, as receitas da Wal-Mart ultrapassaram o PIB da maior parte dos países, entre eles a Suécia. Carrefour, a segunda empresa do setor (72 bilhões de euros em 2004), que a Wal-Mart pensou comprar em 2004, é mais presente internacionalmente. Mas a empresa fundada por Sam Walton se orgulha de um trunfo soberano: os 100 milhões de norte-americanos que procuram toda semana os “everyday low prices” (preços baixos diariamente) que ela lhes propõe.
O preço dos preços baixos
As coisas são simples assim, para 1,3 milhão de “associados” da Wal-Mart nos Estados Unidos: não há sindicatos
Mais baixos, eles são. Em média, 14% [5] . Mas à custa de que? – é a grande questão. A resposta difere de acordo com o que preocupa fundamentalmente o cliente à espreita dos melhores negócios ou, sobretudo, os assalariados de milhares de fornecedores de uma empresa capaz de obrigar cada um a manter – e reduzir – seus custos. Para que o cliente da Wal-Mart fique satisfeito, o trabalhador deve sofrer… Para que os preços da Wal-Mart e de seus terceirizados sejam sempre os mais baixos, é preciso também que as condições sociais se degradem à sua volta. E, conseqüentemente, é preferível que os sindicatos não existam. Ou que os produtos venham da China.
A esquizofrenia do cliente que economiza com tamanha obstinação, que acaba contribuindo para empobrecer o produtor que ele também é, pode parecer teórica e distante. No nível de poder que a Wal-Mart exerce (8,5% das vendas a varejo dos Estados Unidos, se não considerarmos a indústria automobilística), a contradição torna-se rapidamente real e imediata. A empresa de Bentoville se vangloria dos “2.329 dólares por ano” que ela “permite que as famílias que trabalham economizem”; afirma ter aumentado 401 dólares do poder de compra de cada estadunidense em 2004 e, no mesmo ano, ter permitido a criação, direta ou indireta, de 210 mil empregos (este cálculo omite que o dinheiro economizado por seus clientes afetou outros consumos e, portanto, deprimiu a atividade em outros lugares). Os adversários da multinacional têm em mente indicadores menos atraentes. Os preços baixos não caem do céu. Eles se explicam em parte pela redução de 2,5% a 4,8% da renda média dos assalariados em cada um dos territórios dos Estados Unidos onde a multinacional foi instalada. A empresa reduz a remuneração nos locais em que se desenvolve. Cria as condições dos “everyday low prices”. E, ao faze-lo, multiplica o número de clientes que logo não terão outra possibilidade senão a de ter de economizar em suas prateleiras.
Na verdade, nessa luta desigual entre o jarro de ferro da distribuição e os jarros de barro da terceirização, dos empregados da multinacional, dos supermercados rivais, o “jogo do mercado” provoca um triplo efeito de deflação salarial. Em primeiro lugar, devido à dominação de uma empresa pouco pródiga em relação a seus “associados” (termo usado correntemente). Em seguida, devido à destruição da maior parte de seus concorrentes ou da exigência, que lhes é feita para sobreviverem, de se alinharem à sua mais baixa oferta social. Finalmente e sobretudo, devido às ordens imperativas que a Wal-Mart exerce sobre seus fornecedores – inclusive países – determinando efetivamente os preços (por exemplo, em 2002, ela comprou 14% dos 1,9 bilhões de dólares de produtos têxteis exportados para os Estados Unidos por Bangladesh [6]).
Salários baixos e repressão
Quando a Wal-Mart chega, as pequenas lojas comerciais fecham. O estado de Iowa perdeu metade de suas mercearias, 45% de suas lojas de ferragem e 70% de suas confecções masculinas
Ao longo de suas peregrinações, a empresa de Bentonville jamais renunciou a duas características de sua origem: o paternalismo e a aversão aos sindicatos. No sul dos Estados Unidos, os estados mais pobres – particularmente o Arkansas no tempo em que Clinton era seu jovem governador – regularmente vangloriaram-se da mediocridade das remunerações locais para atrair investimentos das empresas. As coisas são simples assim, para os 1,3 milhões de “associados” da Wal-Mart nos Estados Unidos: não há sindicatos. Mona Williams, porta-voz da empresa, explicou: “Nossa filosofia é que somente associados infelizes gostariam de aderir a um sindicato. Ora, a Wal-Mart faz tudo o que está em seu poder para lhes oferecer o que quiserem e o que precisarem.” Com a condição, está implícito, de que não “precisem” muito: “Na verdade, é realista pagar 15 ou 17 dólares por hora para encher prateleiras? [7]”, pergunta Williams. O presidente da empresa, Lee Scott, não enche prateleiras. Por isso, ganhou 17,5 milhões de dólares em 2004.
Para melhor se preservar de sindicatos, o gerente de cada loja dispõe de uma “caixa de ferramentas”. A partir do primeiro sinal de descontentamento organizado, ele liga para um número de telefone vermelho e um alto funcionário de Bentonville é enviado por avião particular. Vários dias de pedagogia se seguem, infligidos aos “associados” para purgá-los das más tentações (ler, nesta edição, o testemunho de Barbara Ehrenreich). No entanto, em 2000, nada disso foi feito: a seção de corte de um açougue texano da Wal-Mart aderiu a uma organização operária. A empresa suprimiu esse serviço e demitiu os “rebeldes”. É ilegal, mas o processo, que jamais leva a grande coisa (a desregulamentação permitiu) é interminável. No ano passado, os “associados” de uma loja em Quebec também quiseram ser representados por um sindicato. A Wal-Mart fechou a loja e explicou: “Esta loja não seria viável. Avaliamos que o sindicato queria alterar totalmente nosso sistema de ação habitual [8] “.
É verdade. Para ter êxito, o modelo Wal-Mart precisa pagar seus “associados” de 20% a 30% abaixo de seus concorrentes do setor – e, além disso, ser muito menos generoso que eles, quando se trata de determinar os seguros sociais (doença, aposentadoria etc.) com os quais os empregados podem contar. Como costuma acontecer entre os patrões liberais, o Estado ou a caridade servem de socorro. Depois que um relatório do Congresso avaliou que cada assalariado da Wal-Mart custava 2.103 dólares por ano à coletividade, sob a forma de complementos a diversas formas de assistência (saúde, crianças, habitação), um estudo interno da empresa admitiu: “Nossa cobertura social custa caro para as famílias de baixa renda, e a Wal-Mart tem um número considerável de associados e seus filhos nos registros da ajuda pública”. Menos de 45% dos empregados podem adquirir a assistência médica que lhes propõe a empresa; 46% dos filhos dos “associados”, sem proteção completa, têm cobertura do programa federal destinado aos indigentes (Medicaid). Lucros privados (10 bilhões de dólares em 2004), déficits públicos. Exagerando um pouco, Jesse Jackson, candidato democrata à Casa Branca em 1984 e em 1988, recentemente comparou as prateleiras da multinacional com as “plantations” [*], lembrando as condições de trabalho dos campos de algodão do sul dos Estados Unidos.
Mas, desta vez, o sul norte-americano está prestes a ganhar a guerra. A dos salários. Em 2002, a Wal-Mart previu atacar o mercado californiano e instalar na região de Los Angeles uns quarenta de seus “Supercenters”, onde se pode encontrar tudo, de produtos alimentícios a acessórios para automóveis. Qual a reação dos concorrentes ameaçados (Safeway, Albertson)? Mais uma vez, exigiram de seus empregados – representados por um sindicato – redução das remunerações e das garantias sociais. De um lado, 13 dólares por hora e uma boa cobertura médica; por outro (Wal-Mart), 8,50 dólares e uma assistência mínima. O combate era desigual. Em outubro de 2003, os 70 mil empregados das cadeias instaladas na Califórnia se negaram a conceder o que lhes era exigido e entraram em greve, que durou cinco meses. Fechamento temporário e recrutamento de substitutos: 25 anos de desregulamentação do direito do trabalho reforçam a reação patronal. O sindicato cedeu.
O populismo de mercado
Como se fosse uma Gosplan privada, o maior varejista do mundo pode determinar os preços de seus fornecedores, os salários que pagam, seus prazos de entrega
Quando a Wal-Mart chega, as pequenas lojas comerciais fecham. Depois que a empresa se instalou em Iowa, em meados dos anos 1980, o estado perdeu metade de suas mercearias, 45% de suas lojas de ferragem e 70% de suas confecções masculinas. Usando o repertório habitual do “populismo de mercado”, a empresa retruca que apenas defende os consumidores sem muito dinheiro, que legitimamente reivindicam “os preços mais baixos” às gordas corporações de produtores ou de ricos varejistas com remunerações indefensáveis. A multinacional amiga do presidente Bush orgulha-se de ser “eleita” diariamente pelos dólares de seus clientes enfileirados pacientemente diante das máquinas registradoras de suas lojas [9]. Para Lee Scott, todo o resto seria apenas uma visão “utópica” e pastoral destinada a privilegiados enquanto os subalternos “não poderiam alcançar uma vida agradável, simplesmente porque outros paralisaram uma imagem particular do que o mundo deveria ser em vez de se preocuparem primeiro com o método mais eficiente para servir o consumidor [10]”. E Scott recorre a ameaça velada: se uma localidade recusa a Wal-Mart, sua vizinha a acolherá. A rebelde sofrerá, então, quase todos os inconvenientes da submissa (destruição do comércio de proximidade [**], redução dos salários) sem desfrutar de nenhuma de suas vantagens (empregos, renda do imposto fundiário).
A mesma liberdade encarcerada para os terceirizados. Como se fosse uma Gosplan privada [***], o maior varejista do mundo pode determinar os preços de seus fornecedores, os salários que pagam, seus prazos de entrega. Cabe a estes reduzir custos, empregar clandestinos, ou se abastecer na China. Se acontecer um “acidente”, a Wal-Mart poderá sempre reivindicar que não é diretamente um problema seu, que obviamente está indignada ao saber o que se passou… Mas que multinacional se comporta de outra maneira? Sanofi Aventis, por exemplo, terceiriza nos Estados Unidos seu serviço de lavanderia, contratando uma empresa que paga mal seus assalariados, não lhes oferece nenhuma assistência médica e combate seu direito sindical. Wal-Mart vai um pouco mais longe que a maior parte das outras: “Segundo o jornal mexicano La Jornada, alguns fornecedores são obrigados a deixar o poderoso que dita as ordens examinar suas contas para acabar com os ’custos supérfluos’ [11].”
Na verdade, a Wal-Mart é apenas o sintoma de um mal que avança. Cada vez que o direito sindical é atacado, que os auxílios aos assalariados são cort
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).