Museus, pilhagem colonial e reparações - Le Monde Diplomatique

HISTÓRIA

Museus, pilhagem colonial e reparações

por Bernard Muller
1 de julho de 2007
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Prevista pela ONU e cada vez mais reivindicada pelos países do Sul, a restituição do patrimônico histórico roubado pelos colonizadores é um direito. Que fazer para levá-lo à prática?

Ao longo deste primeiro ano de existência, o museu do Quai Branly, em Paris — ou museu das artes e civilizações não-ocidentais da África, Ásia, Oceania e Américas — conheceu um imenso sucesso. Disputaram espaço em suas salas 1,7 milhão de visitantes e centenas de pesquisadores. Em 20 de junho de 2006, as festividades de inauguração marcaram a apoteose de um processo que afetou, em diversos graus, a quase totalidade dos museus de arte e civilização não-ocidentais das antigas potências coloniais. A festa foi bela, as intenções foram louváveis. Era preciso se beliscar para não sucumbir à tentação de acreditar que a França renovava seu papel de mensageira universal da paz, à altura dos princípios humanistas de que ela se gaba com tanta freqüência.

De fato, o passado ressurge em nossos dias de maneira impressionante: enquanto a conquista, o trabalho forçado e a administração colonial são trazidos à ordem do dia por várias associações e movimentos militantes, com o objetivo de elucidar o processo de colonização, os objetos coletados durante esse período suscitam um entusiasmo sem precedentes. Acompanhando tal fenômeno, quase todos os museus de artes e civilizações não-ocidentais se renovam. Desde 2000, o British Museum dedica novos espaços às coleções etnográficas. O Dahlem Museum de Berlim desenvolveu um projeto inédito, que permite redescobrir coleções que a guerra fria havia dispersado. A França inaugurou, como se viu, o museu do Quai Branly.

Espera-se que os museus de arte e civilização não-européias, renovados e em sintonia com o mundo de hoje, transformem-se em um espaço de discussão, em uma “zona de contato”. [1]. Ela seria capaz de fomentar debates que envolverão as sociedades de onde vieram os objetos ali expostos, na esperança de abordar sem complexos o dilema pós-colonial. Esperamos, portanto, que o tratamento por qual passam os museus em questão convide a uma nova maneira de perceber os laços que unem as nações contemporâneas num mundo alarmado pelo “choque de civilizações” [2] especialmente entre o Norte e o Sul, para além do disfarce etno-turístico da diversidade cultural.

Restituição do patrimônio é determinada por resolução da ONU

A natureza dos objetos conservados pelos museus e, sobretudo, o contexto em que foram incorporados, oferecem uma oportunidade única para abrir dessas discussões, que deveriam gerar conseqüências concretss e práticas. A grande maioria dos objetos foi coletada entre 1870 e a I Guerra Mundial, período que coinciede com a conquista colonial. Em 1880, os europeus controlavam apenas 35% da superfície do planeta; em 1914, essa proporção já era de 84,4 %. Ainda mais grave: um bom número desses objetos foi saqueado durante campanhas militares. Eles não falam somente da cultura dos “outros” mas também de um capítulo complexo da história humana de que são o vestígio.

Um forte sinal dessa vontade de cooperação poderia ser o reconhecimento simbólico do caráter, hoje problemático, da presença de espólios de guerras coloniais nas coleções de museus das antigas metrópoles.

Esses saques permanecem vivos na memória dos povos outrora colonizados, como testemunhos da criatividade artística que eles possuem ainda hoje. É natural que as sociedades que fabricaram os objetos desejem ter acesso a eles, para descobrir a própria história. O preâmbulo da resolução 42/7 votada pela ONU, em 1987, versa sobre o tema: “A devolução dos bens culturais de valor espiritual e cultural a seus países de origem é de capital importância para os povos envolvidos, para que se construam coleções representativas de seu patrimônio cultural” [3].

O caráter explosivo da questão provoca algumas iniciativas: a água começa a furar a pedra. De forma ainda tímida, mas determinada, os mesmos museus que assinaram a “Declaração sobre a Importância e o Valor dos Museus Universais” organizam encontros, colóquios e exposições que permitirão gradativamente desenhar os contornos do conflito.

Parece cada vez mais urgente a abordagem da questão da posse dos bens culturais em mãos dos museus do Norte e a espinhosa questão de sua devolução. Abdul Diuf, secretário geral da Organização Internacional da Francofonia, afirmava que “o problema da restituição, freqüentemente apresentado de forma polêmica, merece um tratamento razoável, como prevê a resolução de “Retorno ou restituição dos bens culturais a seus países de origem”, adotada pela ONU em dezembro de 2002″ [4].

Cresce, nos países do Sul, o movimento pela restituição

Na África, o movimento a favor da reparação e da restituição dos bens culturais espoliados desenvolveu-se no início dos anos 80. Foi retomado no início da década de 90, quando a Organização para Unidade Africana adotou o princípio da “reparação”, principalmente sob a forma de indenização, pela escravidão e o colonialismo. Durante o encontro de 1992, os chefes de Estado africanos criaram um grupo de especialistas — co-presidido por Moshod Abiola [5] e o antigo diretor da UNESCO, Amadou-Mahtar M’Bow — encarregados de estudar a questão. Essa iniciativa resultou, em abril de 2003, na Proclamação de Abuja. Ela refere-se à “dívida moral” e à “dívida compensatória” devida à África pelos países envolvidos nos negócios negreiros, no colonialismo e no neo-colonialismo. Exige o retorno dos bens roubados e dos tesouros tradicionais. Convencida de que os danos sofridos pelos povos africanos não são “coisa do passado” e de que muitas pilhagens, roubos e apropriações foram impostas aos povos africanos, a Proclamação convida aqueles que estão em posse desses bens espoliados a restituí-los a seus proprietários legítimos. A Proclamação incita a comunidade internacional a reconhecer a dívida moral sem precedentes que é devida aos povos africanos [6].

A questão do retorno e da restituição dos bens culturais africanos foi até mesmo inscrita no plano estratégico da comissão da União Africana para 2004-2007.

Nesse sentido, os pedidos de restituição conheceram um crescimento importante a partir da década de 1980, e parece razoável pensar que aumentaram paralelamente à visibilidade nos museus. Deve-se lembrar que a Nigéria pediu, desde o início dos anos 1980, a restituição, por parte do Reino Unido, de centenas de placas de bronze que evocam a história do reino Edo e foram saqueadas durante a exposição de 1897. A Etiópia reclama do mesmo Estado a devolução de objetos saqueados, em 1868, durante o cerco de Magdala. Os descendentes de Béhanzin, “último” rei de Abomey (República do Benin), deposto pelos franceses, em 1892, pediram, por meio de requisição endereçada ao governo (pela deputada francesa Christiane Taubira), em 18 de novembro de 2005, a restituição do tesouro real, hoje mantido no museu do Quai Branly.

Uma associação internacional reclama ao governo austríaco a devolução da coroa do rei asteca Montezuma (México), levada por soldados de Hernán Cortés, em 1519, e hoje mantida no Museum für Völkerkunde de Viena. O Egito exige da Alemanha a devolução do busto de Nefertiti. A China Popular pede a devolução dos objetos pilhados durante o saque do palácio de verão, feito em conjunto por tropas inglesas e francesas durante a guerra do ópio, em 1860. A Coréia reclama a restituição de 297 volumes de manuscritos saqueados do arquivo real, em 1866, por militares franceses e, hoje, guardados na Biblioteca Nacional da França. Nos farrapos de um outro império, o Japão deve também enfrentar diversos pedidos feitos pelos governos de suas antigas colônias, como a Coréia. Em 2005, Tóquio devolveu à Coréia do Norte o “monumento à grande vitória” de Pukgwan, levado pelos japoneses em 1905, por ocasião da conquista da península.

Estranho argumento dos museus do Norte para manter as coleções

Apesar da complexidade jurídica para a transferência de um objeto inalienável de um patrimônio a outro, a restituição é possível. Ela já foi feita diversas vezes e certos objetos fizeram o caminho de volta. O selo do dei de Argel, saqueado pelo exército francês durante a tomada dessa cidade, em 1830, foi entregue ao presidente Abdelaziz Boutéflika por Jacques Chirac, em 2 de março de 2003. Em 1954, foi devolvido à Tanzânia o crânio do sultão Mkwaka, que enfrentou um batalhão do exército alemão e foi levado à Alemanha como troféu em 1898. O tratado de Versalhes, de 1918 previa a restituição. Uma parte do tesouro da Ilha de Lombok, onde reinavam as famílias principescas de Bali, foi devolvida à Indonésia pela Holanda, em 1977, depois de ter sido roubada em 1893.

A resposta dos museus da Europa à multiplicação dos pedidos é, no entanto, inequívoca. A “Declaração sobre a importância e o valor dos museus universais”, redigida em dezembro de 2002 e assinada por 19 diretores de alguns dos principais museus do mundo (entre eles o British Museum, o Louvre, o Metropolitan Museum of Art de New York, o Prado de Madri, o Rijksmuseum de Amsterdam e o Hermitage de São Petersburgo) é edificante. Os signatários chegam a colocar ênfase na “natureza destruidora da restituição dos objetos”, acrescentando, em seguida, que “os museus são agentes do desenvolvimento cultural, cuja missão é encorajar a produção de conhecimento, mantendo um processo permanente de reinterpretação. Não estão a serviço dos cidadãos de uma só nação, mas dos povos de todas as nações”.

Afirmar-se a impossibilidade de receber pedidos de restituição apelando ao princípio da universalidade, de inspiração humanista, em que se fundam os museus.

Os pedidos de restituição encontram uma resposta mais favorável junto às instituições transnacionais. Desde 1907, a convenção de Haia sobre os Costumes e Leis da Guerra Terrestre estipula em seu artigo 28 que “é proibido entregar à pilhagem uma cidade ou localidade, ainda que tomada de assalto”. A Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, ratificada em 1954, em Haia, depois das maciças destruições infligidas aos bens culturais pela II Guerra Mundial, foi o primeiro instrumento internacional de âmbito universal exclusivamente focado na proteção do patrimônio cultural. Mais recentemente, o Código de Deontologia do Conselho Internacional dos Museus (ICOM) publicou uma declaração clara, cujo artigo 6.1 estipula que “se uma nação ou comunidade de origem pede a restituição de um objeto ou espécime que foi exportado ou, de qualquer forma, transferido em desacordo com os princípios das convenções internacionais e nacionais e que se saiba parte do patrimônio cultural ou natural desse país ou comunidade, o museu em questão deve, se existe possibilidade legal, apressar-se em tomar as medidas necessárias para facilitar o retorno do bem [7].”

Um problema: como restituir patrimônio a ditaduras?

Pergunta-se hoje se a comunidade internacional abordará um dia as espoliações coloniais com a mesma seriedade com que se aborda a espoliação dos bens culturais judeus [8]. Para que isso aconteça será necessário que se admita que a conquista foi uma guerra e não uma sucessão de expedições visando a pacificação.

Por que não devolver esses objetos àqueles que os pedem? Tal gesto, certamente, relaxaria as tensões. Seria interpretado como a expressão autêntica de uma vontade de cooperação universal verdadeiramente humanista. O reconhecimento do princípio da restituição está inscrito num processo que visa o reconhecimento de uma responsabilidade moral e histórica. Esse trabalho de memória não deve se limitar a fingir um arrependimento de bom tom, mas implicar ativamente todos os agentes da exploração colonial. Aliás, é impossível negar a legitimidade moral dos pedidos de restituição dos saques de guerra, uma vez que “o colonialismo foi uma perversão que se apossou de um discurso civilizador para justificar suas conquistas” [9].

Para fazer sentido, o retorno ao passado que o debate sobre a restituição dos saques permite não deve vir somente dos países ocidentais. Deve envolver também os agentes locais do mecanismo de exploração colonial, que ainda hoje estão à frente de ditaduras. Seria inadequado oferecer um pedido de desculpas ou restituir os saques a representantes de Estados sangüinários e obscurantistas. Mas o fato de eles não representarem a população não prejudica a legitimidade dos pedidos. Então o que fazer? Como sair desse impasse a não ser afirmando a universalidade desse patrimônio? Não seria necessário colocar os objetos da polêmica na lista do patrimônio universal, de maneira a garantir que juridicamente não pertençam a ninguém? Essa lista seria feita por comissões internacionais que incluíssem, evidentemente, os representantes dos interessados, os curadores dos museus das antigas colônias e, sobretudo, os agentes da cena cultural dos países envolvidos.

Tais comissões deveriam estudar as restituições caso a caso e, principalmente, organizar exposições itinerantes que permitam fazer circular os objetos. Um exemplo é a recente exposição “Behanzin, rei de Abomey” organizada conjuntamente, entre dezembro de 2006 e março de 2007, pelo museu do Quai Branly e a fundação Zinsou [10] em Cotonou, República do Benin, concomitante ao centenário da morte do soberano. Ou ainda a exposição “Reis e rituais do Benin: a arte da corte nigeriana” [11], que começou em maio, no Museum für Völkerkunde de Viena, onde permanece até setembro de 2007, reunindo mais de 300 objetos da corte do reino Edo (atual Nigéria) pilhados pelos ingleses em 1897, e que se espera visite também a África. Essa exposição não tenta esconder o contexto colonial em que os objetos foram coletados.

Três princípios: afirmação da verdade, reparação e reconciliação

Para atender aos objetivos de uma verdadeira “restituição”, com valor simbólico e como forma de conhecimento, essas exposições devem ser acompanhadas de projetos pedagógicos. Tal processo implica reconhecer a utilidade dos museus do Sul e seu suporte por meio de financiamentos adequados, que em parte poderia vir de um imposto sobre os lucros auferidos no mercado de arte não-européia. O processo deve dar grande importância à difusão de informações inerentes aos objetos: arquivos, bancos de dados, publicações — que em muitos casos permanecem inacessíveis.

É fundamental que as novas gerações do Norte e do Sul tenham acesso aos frutos da pesquisa e da conservação realizadas pelos museus do Norte. Para ter crédito, os “museus universais” devem realmente prover os meios para a circulação de seus projetos museográficos. Antes que o interesse das novas gerações se apague totalmente e fique um vazio na memória coletiva, tornado ainda maior na ausência de tais objetos.

O importante é retirar esses objetos da letargia do museu, desse limitador etnológico e estético, tornando possível diversas e contraditórias reapropriações, encorajando a multiplicidade de pontos de vista. É essencial trazê-los à luz por meio de um debate construtivo que se apóie mais no princípio da reconciliação que no de reparação, de maneira a evitar que as pilhagens das guerras coloniais e os objetos dos outros se tornem armas de enfrentamento, com o risco de transformar o museu universal em espaço de confronto generalizado.

É preciso, como disse o escritor nigeriano Wole Soyinka, “encontrar respostas que permitam atingir os três objetivos incontornáveis para que algo parecido com a paz possa se instalar no século 21 multicultural: a afirmação da verdade, a reparação e a reconciliação”.[12]



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