Música virtual, dinheiro real
Com os smartphones, a audição legal de música on-line, sem download, conhece um sucesso crescente. Agora, questiona-se a qualidade oferecida e também a divisão justa dos ganhos, às vezes entre os artistas e as gravadoras, às vezes entre os próprios artistasDavid Commeillas
Segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), em 2014 o volume de negócios mundial da música (US$ 15 bilhões) se repartia igualmente entre o mercado digital e as vendas físicas.1 Enquanto os downloads legais continuam a cair (–8%), o aumento do streaming (a audição pela internet, “ao vivo”, em oposição ao download) chega a dar vertigem: a renda das assinaturas foi multiplicada por seis em cinco anos e alcançou US$ 1,6 bilhão no ano passado. Na França, o Sindicato Nacional da Edição Fonográfica (Snep) informa que o país possui 2 milhões de assinantes de uma plataforma de streaming, ou seja, uma progressão de 39% em um único ano. Essas cifras esclarecem enfim o horizonte de uma indústria musical que periclitava. Resta saber a quem semelhante redistribuição de cartas beneficia.
Se a audição on-line assumiu tamanhas proporções, isso se deu em grande parte graças ao aumento espetacular das vendas de smartphones, hoje em mãos de quase dois terços da população francesa. As operadoras telefônicas se associaram a essas plataformas de streaming por meio de pacotes que incluem assinaturas nos sites. O fenômeno se deve também à melhoria de serviços muito procurados, como Spotify e Deezer. Pagando 9,99 euros por mês,2 o internauta tem acesso ilimitado a catálogos enormes, com qualidade de som conveniente e um trabalho editorial sério sobre obras e artistas (entrevistas, crônicas etc.). Hoje, assina-se música como se assina eletricidade: basta apertar um interruptor virtual para obter vários milhões delas. O francês Deezer, líder do mercado nacional e presente em mais 180 países, oferece, por exemplo, 35 milhões de títulos.
Contudo, se o download legal é visto como virtuoso, o streaming exibe a imagem de uma prática ética duvidosa, que dá acesso gratuito às músicas em troca de remunerações irrisórias aos artistas. Vários já declararam, com maior ou menor ênfase, sua indignação. Assim, decepcionados com seus ganhos, a islandesa Björk, os ingleses do Radiohead, a norte-americana Taylor Swift etc. decidiram não entregar seus últimos álbuns aos sites de streaming. Em junho de 2015, Geoff Barrow, do inglês Portishead, revelou que, segundo sua estimativa, 34 milhões de audições tinham rendido aos integrantes apenas 1,7 mil libras (cerca de R$ 9,4 mil).
Por essas mesmas razões, com a franca intenção de “construir um mercado mais justo”,3 o rapper e empresário norte-americano Jay Z comprou pela módica quantia de US$ 56 milhões a plataforma norueguesa Tidal. Após a entrevista coletiva de lançamento, diante de Kanye West, Madonna e Daft Punk, em março de 2015, a imprensa ligada ao rock, as redes sociais e o pequeno mundo da música riram desses superastros milionários que explicavam ao mundo como o streaming os fazia perder enormes quantias de dinheiro, panorama que a Tidal iria mudar. Mas a promessa de Jay Z de reverter 75% dos lucros aos artistas e produtores não deixa de ser pertinente e legítima. Se ele conseguir firmar sua empresa, talvez obrigue seus concorrentes a seguir o mesmo caminho.
Também na França, as associações de artistas protestam e os selos independentes exigem transparência nos acordos entre os sites e os gigantes. A Warner ou a Universal são mais bem remuneradas que os pequenos selos? É a única pergunta à qual o diretor do Deezer-França, Simon Baldeyrou, não quis responder durante nossa entrevista. Os independentes se organizaram: “Nós nos reagrupamos por intermédio de entidades como a Merlin”,4 explica Stéphanie Schmitz, do Harmonia Mundi. “Isso nos permite negociar condições [porcentagens] que, sozinhos, jamais obteríamos. A coisa funciona bem.” Ainda que não admitam, as plataformas devem frequentemente se submeter às exigências dos grandes, pois sua própria existência depende da exploração dos catálogos.
Na França, a Sociedade Civil para a Administração dos Direitos dos Artistas e Músicos Intérpretes (Adami) proclamava há pouco num anúncio publicitário: “Partilhemos igualitariamente os frutos do mundo digital” (Le Monde, 4 nov. 2014). A crermos no infográfico que ladeava o slogan, a parte dos artistas representava apenas 0,46 centavo sobre uma assinatura de 9,99 euros, enquanto a plataforma e o produtor dividiam 6,54 euros, e o resto era repartido entre cotizações sociais, taxa sobre o valor agregado (TVA) etc.
Na verdade, o site de streaming repassa dois terços de sua renda à gravadora, que em seguida paga os artistas nos termos de seus contratos. Portanto, o problema estaria primeiro nas cláusulas contratuais que ligam os artistas aos selos e demoram a se adaptar às novas práticas digitais. A Adami cita as conclusões dos relatórios de Pierre Lescure e Christian Phéline (respectivamente em maio e dezembro de 2013) sobre a divisão de lucros no âmbito da música on-line: ambos lamentavam o fato de os selos se recusarem a diminuir suas margens. Com efeito, embora a maioria dos discos hoje seja lançada ao mesmo tempo na versão física e digital, o segundo formato elimina os custos de fabricação, armazenamento e distribuição, de modo que o selo deveria repassar uma porcentagem maior ao artista.
Em quase todos os sites, o não assinante pode ter acesso aos títulos de sua escolha sem desembolsar um centavo, desde que consinta na inserção de anúncios entre as músicas. Esse modelo econômico, porém, não é viável nem para as plataformas nem para os produtores e artistas, pois os anunciantes não pagam o esperado e os ouvintes também não. Segundo um estudo Ipsos, ao longo dos últimos seis meses na França, 35% deles utilizaram serviços de streaming gratuitos e apenas 16% preferiram os pagos.
Além disso, os sites redistribuem as rendas das assinaturas proporcionalmente ao número de músicas ouvidas: se um cantor concentra 2% dos títulos, seu selo recebe 2% das receitas da plataforma. Assim, os usuários mais ativos decidem a repartição dos dividendos em detrimento dos ocasionais, mas todos pagam o mesmo valor de assinatura. Por exemplo, se um internauta só gosta de rumba e faz uma assinatura para ouvir três ou quatro músicas por dia, seu investimento mensal de 9,99 euros não irá unicamente para os virtuosos cubanos que ele aprecia, mas também para as contas bancárias das estrelas do pop ou do rap, que alguns escutam o tempo todo. Segundo Alexis Poncelet, do selo independente Wagram, “por esse método, cremos que as fatias de mercado dos pequenos acabam sugadas pelos grandes. Outra possibilidade seria o preço pago por um assinante ser repartido em função daquilo que ele escuta”.
Enfim, não se provou ainda que essas discotecas gigantes estimulam a curiosidade dos melômanos. Os sites de streaming fazem ofertas tão parecidas quanto o eram outrora as irradiações da Fnac ou da Virgin Megastore. Preços, desempenho (rapidez, qualidade de som etc.) e sobretudo catálogos são praticamente idênticos.
Outra plataforma francesa, Qobuz, oferece há tempos uma boa qualidade sonora, dá especial atenção ao jazz, à música clássica e completa seu serviço com uma opção de download em alta definição. Seu fundador, Yves Reisel, garante: “Quando um álbum é apresentado como obra e não apenas como produto fornecido on-line, o público concorda mais facilmente em participar do financiamento da música”. Mas a Qobuz está sempre beirando a falência e precisa levantar fundos a cada ano para sobreviver. Em agosto de 2014, teve de entrar em concordata.5 Entrementes, os gigantes da internet vão ocupando esse espaço promissor. O YouTube testou, neste ano, a versão quase definitiva de sua plataforma Music Key; a Amazon lançou a Prime Music; e a Apple acaba de inaugurar a Apple Music, que logo será integrada a seus computadores e telefones.
Essa guerra do streaming com certeza ampliará a esfera de “sugestões”, que integra as listas de músicas a ouvir, as playlists. Segundo o dono da Deezer-França, o importante não é a escolha, e sim a qualidade do conselho dado. “Não somos apenas uma jukebox gigante, somos também a melhor discoteca para vocês, aquela que conhece seus gostos e os orienta o melhor possível em nosso catálogo. Graças a uma mistura de algoritmos e intervenção humana, a recomendação faz a diferença.” Esses algoritmos formulam sugestões em função das últimas audições de cada cliente, de seu modo de conexão e de seus hábitos (aquilo que ele prefere ouvir de manhã ou à noite). Tomando por base seu perfil pessoal, cada um pode organizar playlists classificadas por estilo, humor ou artista.
Responsável pelo polo digital na Universal, Jean-Charles Mariani atesta: “No Spotify, 60% das pessoas ouvem canções escolhidas numa playlist” – organizada pela própria plataforma ou pelo usuário. Essas listas assumiram tamanha importância que a Universal decidiu criar em setembro de 2014 a marca digital Digster, mídia híbrida que as insere transversalmente em quase todas as plataformas. Em seus escritórios parisienses, dois funcionários de tempo integral elaboram as listas temáticas da Digster: “Clima de primavera”, “Jazz@work”, “Música & Cinema” etc. O site Forgotify.com recenseia também músicas disponíveis no Spotify que não foram ouvidas nem uma vez sequer. Já encontrou 4 milhões...
*David Commeillas é jornalista.