Na África do Sul, uma terra saturada de sangue
No início de setembro, uma onda de violência xenófoba causou a morte de dez trabalhadores imigrantes na África do Sul. Gigante econômico continental, o país é corroído por suas desigualdades. O desemprego atinge 40% da população. Entre os motivos de tensão social, a insolúvel questão agrária: ricos fazendeiros brancos ainda detêm 75% das terras privadas do país
No campo verdejante do Kwazulu-Natal, entre as plantações de cana-de-açúcar e os elegantes chalés, brotou uma pequena favela de barracos de barro e chapas de ferro onduladas. Camponeses e suas famílias trabalham no local para os fazendeiros africâneres, ganhando um salário mensal entre 1.500 e 3.000 rands (R$ 420 a 840), abaixo do salário mínimo, fixado em 3.500 rands (R$ 980) em janeiro de 2019. Quase todos são zulus, mas alguns, como os xhosas, vêm da província vizinha do Cabo Oriental. Em 1981, esses camponeses seguiram seu empregador quando ele se instalou na região do Natal. Aposentado em 2016, o fazendeiro “revendeu suas terras a outro branco. E ele quer nos despedir”, resume David T., camponês zulu. O novo proprietário chegou com seu advogado e ofereceu às catorze famílias “50 mil rands [R$ 14 mil] para que elas fossem embora. Duas aceitaram”. Em seguida, ameaçou aparecer com uma escavadora. “É o nosso lar! Nossos antepassados foram sepultados aqui”, exclama David. E aponta para o campo vizinho: “Seus túmulos estão lá. Não podemos visitá-los porque o branco nos proíbe. Arrancou as cruzes”.
Não há água corrente no local: duas vezes por semana, um caminhão da prefeitura vem encher a cisterna. Uma clínica móvel passa de vez em quando… Para que ficar? “Para onde iríamos?”, protestam em uníssono os moradores. “Para um gueto na cidade? Sob ameaça das quadrilhas? Teríamos ainda menos direitos sobre a terra! Vivemos aqui há quarenta anos. Temos nossos direitos”, diz Boniswa B., uma avó xhosa. Um táxi estaciona na frente do barraco. Uma confusão de cabeças e braços aparece nas janelas. Duas, quatro, seis… No total, oito crianças saem do veículo. “O CNA [Conselho Nacional Africano] prometeu um ônibus escolar pouco antes das eleições. No entanto, ainda hoje, para estudar, é preciso tomar um táxi até Howick [cidade a 20 quilômetros].”
Burocracia, corrupção e clientelismo
Perto de três quartos dos 37 milhões de hectares das terras sul-africanas privadas se encontram em poder de brancos, segundo uma auditoria governamental.1 No total, 30 mil fazendas comerciais empregam cerca de 840 mil camponeses.2 Diretora da Associação para o Progresso Rural (Afra), estrutura com sede em Pietermaritzburgo que ampara camponeses negros desde 1979, Laurel Oettle pinta um quadro realista do mundo agrícola sul-africano. “Os trabalhadores sazonais ficam sem salário durante meses”, explica essa mulher branca, igualmente ativa na promoção da igualdade dos sexos. “Alguns às vezes são pagos com produtos agrícolas. Casos de abusos sexuais não faltam. O acesso aos túmulos dos ancestrais dá ensejo a conflitos.” Sem contar que a mecanização da agricultura agravou a situação dos trabalhadores negros, explica Ben Cousins, professor da Universidade do Cabo Ocidental e especialista em pobreza e questões agrárias. “Hoje se calcula um trabalhador agrícola por 2 hectares, contra um por hectare em 1994.”
Bôer significa “camponês” em holandês. Desde sua chegada, no século XVII, os colonos africâneres se apossaram das terras. Essa espoliação se institucionalizou após a Segunda Guerra Anglo-Bôer (1899-1902), quando vencedores e vencidos se reconciliaram à custa das populações negras, antes de se tornarem camaradas de armas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.3 Em 1913, o Natives Land Act limitou a propriedade fundiária dos “indígenas” a 7% do território (ampliados para 13% em 1936). Quatro milhões de camponeses perderam então as terras que ainda possuíam. “O objetivo era ter uma mão de obra barata”, lembra Tseliso Thipanyane, presidente da Comissão Sul-Africana dos Direitos Humanos (SAHRC). “Os fazendeiros negros se tornaram meeiros ou mineiros. Minha família era de Kroonstad [Estado Livre de Orange] e foi expropriada. Ninguém sabe o que sentimos ao percorrer o país e contemplar essas terras…” Em 1912, o CNA foi criado principalmente em reação ao Natives Land Act, então em discussão. Esse projeto se inscrevia em uma série de medidas discriminatórias, entre as quais a entrega, aos brancos, de cargos no setor mineiro. Em 1955, o manifesto do movimento, a “Carta da Liberdade”, reivindicava a partilha da terra “entre aqueles que nela trabalham”. Mas, no início dos anos 1990, o partido – como alguns outros – trocou o socialismo pelo neoliberalismo para captar as boas graças das instituições financeiras internacionais e facilitar a obtenção de um compromisso com o último presidente do apartheid, Frederik de Klerk.
Em 1996, o governo prometeu redistribuir 30% das terras em cinco anos, na base do voluntariado. Duas leis (Labour Tenants Act, LTA, 1996, e Extension of Security of Tenure Act, Esta, 1997) protegeram em teoria os meeiros das expulsões e os autorizaram a reclamar uma parte da terra onde viviam. Mas, com o advento liberal, que sacraliza a propriedade privada, elas revelaram seus limites: em 2006, isto é, dez anos depois, apenas 3,1% dos 87 milhões de hectares em questão haviam sido redistribuídos.4 Em 2009, o governo de Jacob Zuma5 tornou o problema uma prioridade e criou o Departamento do Desenvolvimento Rural e da Reforma Agrária (DRDLR). Entretanto, as somas alocadas nunca chegaram a 1% do orçamento nacional.
Não há um preço a priori do hectare. Os postulantes formulam uma reclamação referente a determinadas terras. Devem então enfrentar uma burocracia que envolve cinco administrações diferentes até ver seu pedido aceito e um montante fixado para a indenização do proprietário pelo Estado. O caso a caso é de regra, deixando livre curso à corrupção e ao clientelismo. Especialista em questões agrárias da Universidade do Cabo Ocidental, a professora Ruth Hall descreve um fenômeno de “captação em proveito das elites”: “Em inúmeros casos, as terras foram transferidas a pessoas ricas, e não a quem precisava delas”.6
A quem interessa o status quo desigual?
Em dezembro de 2017, o CNA aprovou uma medida que exigia a “expropriação sem indenização” (EWC, na sigla inglesa). Promovida pelos partidários do presidente Zuma – que renunciaria em fevereiro de 2018 –, essa resolução pretendia frear o ímpeto eleitoral dos Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF, esquerda radical), mas também limitar a margem de manobra do novo chefe de Estado, Cyril Ramaphosa.
A postura deste último conseguiu, de início, acalmar o setor privado: “A facção Zuma do CNA quer aplicar a EWC. Mas o presidente fará isso com o máximo de moderação possível”, declarou em janeiro John Purchase, diretor da Câmara do Agronegócio (AGBIZ), que lembra tanto cooperativas quanto bancos e gigantes da indústria agroalimentar. No entanto, já perto do escrutínio geral de maio de 2019, o presidente se mostrou mais agressivo: no final de março, em Ebenhaeser (Cabo Ocidental), entregou oficialmente 1.566 hectares a algumas comunidades khoi e griqua, expulsas nos anos 1920. Essa única indenização demorou duas décadas e custou ao Estado 362 milhões de rands (R$ 102 milhões). O presidente deixou então clara sua determinação: “É hora de restituir a terra a seus proprietários legítimos”. E advertiu os fazendeiros brancos: “Trata-se de um programa que vocês não poderão deter, ao qual não conseguirão resistir. Venham, por favor, trabalhar conosco. Devemos partilhar esta terra”. Cônscio da corrupção que até o momento havia caracterizado as restituições de terras, prometeu: “Vamos prestar contas do último centavo”.7
“Em 22 anos”, escreve o professor Ben Cousins, “a reforma agrária pouco alterou a estrutura agrária da África do Sul e só teve um impacto menor nas condições da vida rural. De 8% a 9% das terras agrícolas foram transferidas, e muitos pedidos de restituição não foram atendidos”.8 Faltou vontade política ao CNA. Instalado no poder e, pela simples lógica demográfica, quase seguro de nele se eternizar, o “partido dos libertadores” perdeu o interesse pelas massas rurais e voltou os olhos para a ascensão da classe média urbana negra.
A questão agrária reaparece a cada campanha eleitoral, mas ganhou um impulso mais forte. De início, houve o progresso da esquerda nacionalista negra (esquerda radical), adepta das nacionalizações e dos gracejos rancorosos sobre os sul-africanos brancos. Os EFF, partido fundado em 2013 por Julius Malema, ex-chefe da Liga da Juventude do CNA, são a terceira formação política do país, com 44 deputados após as eleições gerais de maio de 2019, contra 25 na Assembleia cessante. Em um total de quatrocentos deputados, o CNA tem 230 cadeiras; a Aliança Democrática (DA, centro-direita), 84; os EFF, 44; o Partido Inkatha da Liberdade (IFP), 14; e a Frente pela Liberdade Mais (VF+, conservadores brancos), 10. Andile Mngxitama, ex-deputado dos EFF, lançou em 2016 um movimento ainda mais radical: Negro Primeiro Terra Primeiro (Black First Land First, BLF).
Segundo fator: as tensões no seio do CNA. Em dezembro de 2017, envolvido em um caso de corrupção, Zuma havia cinicamente atiçado o rancor contra os fazendeiros brancos para operar uma divergência, contratando uma agência de relações públicas britânica para inundar as redes sociais com a hashtag #WhiteMonopolyCapital.
“Ninguém sabe o que o governo vai fazer”, suspira Rossouw Cillié, um dos mais importantes fazendeiros sul-africanos. “Se nossas terras forem expropriadas, deixaremos o país, como muitos outros fizeram, partindo para a Austrália desde 1994. Setecentos camponeses trabalham para mim em regime fixo, mil em caráter sazonal. Eles também estão preocupados.” Descendente de huguenotes franceses chegados durante o século XVII à África austral, Cillié é dono da propriedade de Laastedrif, que produz frutas e legumes para o mercado interno e a exportação. “São sete fazendas, com um total de cerca de 20 mil hectares.” O homem se diz inquieto: “Quando se tira o capital intelectual, tudo vem abaixo. Vejam o que aconteceu no Zimbábue” – ou seja, crise na produção e hiperinflação após a entrega de fazendas tomadas de proprietários brancos, por Robert Mugabe, a veteranos da guerra da independência e ao círculo próximo do regime.9 A maioria foi à falência – um cenário catastrófico que, na África do Sul, serve de advertência tanto a fazendeiros quanto a autoridades… e funciona como argumento de peso para quem se apega a um status quo desigual.
A aplicação da EWC exigirá também uma emenda à Seção 25 da Constituição de 1996, que proíbe ao Estado expropriar, por utilidade pública, sem o pagamento de uma indenização “justa e equitativa”. Essa modificação da lei fundamental supõe uma maioria de dois terços no Parlamento… e, portanto, o apoio dos deputados do incontrolável Malema. “O CNA está encostado na parede”, resume Ruth Hall. “Sentou-se sobre o problema durante um quarto de século; agora, tem de agir.”
Questão agrária, uma bomba social
“É deplorável que os direitos fundamentais sejam negados e a Constituição seja modificada por interesses eleitorais”, suspira em Pretória Annelize Crosby, responsável pela questão agrária no seio do Agri SA, o sindicato agrícola que agrupa as mais importantes fazendas comerciais exportadoras. “Defendemos uma reforma agrária”, esclarece, ressaltando que 25 anos de promessas não cumpridas atiçaram perigosamente as frustrações. “É necessário enfrentar o problema antes que ocorram invasões de terra.” O Agri SA continua, no entanto, se opondo à EWC: “Preferimos parcerias público-privadas [PPP]”. Defendidas pelos neoliberais, as PPP se mostraram, todavia, caras e pouco eficazes em outros lugares…10 O patronato agrícola sul-africano, já enfrentando uma das piores secas de sua história,11 acha que a EWC prejudicaria ainda mais sua saúde econômica. Ainda que as terras mais férteis fiquem de fora – o presidente Ramaphosa deu garantias nesse sentido, a fim, principalmente, de não pôr em perigo a segurança alimentar –, “as grandes fazendas, 15% do universo agrícola, produzem 80% dos gêneros. Visá-las terá um impacto sobre a segurança alimentar. Toda a cadeia de valor será afetada”. O Agri SA teme as consequências do efeito cascata: a desvalorização fundiária reduzindo a produção e aumentando os preços dos alimentos, a reavaliação do risco antes do empréstimo pelos bancos aumentando seus juros. “A incerteza já causa impacto. Os investidores se desinteressam do setor” – justamente quando o presidente tenciona atrair US$ 100 bilhões em investimentos estrangeiros diretos (IDE) em cinco anos, com a economia desaquecida desde 2013. “A confiança nunca foi tão baixa nos últimos dez anos”, explica Purchase. O diretor da AGBIZ ressalta as incertezas ligadas à questão agrária, mas também a seca e até o Brexit. “Os sul-africanos preferem investir na Zâmbia. E isso não tranquiliza os investidores estrangeiros…” E adverte: “As dívidas do universo agrícola chegam a mais de 200 bilhões de rands [R$ 56 bilhões], 77% relativas ao valor da terra”. Solapando esse valor, a EWC poderia “pôr em perigo todo o sistema bancário”.
Responsável pelo BLF, Mngxitama nos recebe numa vila de um subúrbio elegante de Pretória. O portão está aberto; a piscina, vazia; não há água nem eletricidade. “Ocupamos, há três anos, esta casa abandonada por um bôer que se mudou para o estrangeiro”, explica ele, sorrindo. O BLF põe em prática seu lema: “White monopoly capital, we are coming for you!” [Capital monopólico branco, vamos acertar as contas com você!]. “Cresci numa fazenda. Quando tinha 12 anos, o fazendeiro branco correu atrás de mim com um bastão porque eu havia me recusado a chamá-lo de bass [patrão]”, conta. “Deixei os EFF porque eles se tornaram direitistas. Essa EWC é uma farsa: Ramaphosa fala em expropriar apenas terras inúteis. Trata-se então de expropriar sem expropriar, de um discurso para conseguir votos sem compensação, para que o acúmulo de capital siga seu curso.” Ele descarta o risco de crise em caso de expropriação: “Não me venham falar de Armagedon econômico. A vida cotidiana dos negros neste país já é um Armagedon econômico!” Dias depois dessa conversa, no final de janeiro, um porta-voz do BLF causaria escândalo ao comemorar no Twitter a morte de quatro crianças brancas no desabamento de uma escola.12 Esse episódio é apenas um exemplo da atitude dos membros do BLF.
“A questão da terra é emocional”, afirma William Gumede, professor da Universidade do Witwatersrand, em Joanesburgo, e diretor executivo do think tank Democracy Works Foundation. Ele denuncia o perigo de arruinar a agricultura comercial para fazer justiça aos ancestrais espoliados: “Tomo a terra de um fazendeiro branco. Vingo-me. Mas, amanhã, ficarei de barriga vazia porque será necessário importar comida?”. Para alguns, invocar os princípios jurídicos encerra oportunamente a discussão. “A África do Sul não é o Zimbábue, é um Estado de direito”, sustenta Neo Masithela, presidente da importante Associação dos Fazendeiros da África do Sul (Afasa), que reúne cerca de 300 mil camponeses e meeiros. Masithela defende a EWC e trabalha com as autoridades para pô-la em prática. “A questão agrária é uma bomba-relógio social”, previne. Insiste no fato de que a EWC se cumprirá nos termos da lei, sem ocupações ilegais de terras: “Devemos evitar o pânico e a fuga de capitais, como soubemos fazer em 1994 [na transição democrática]”.
Um truste que não inspira confiança
Outro fator complica ainda mais a equação agrária: o caso das terras zulus. De 1986 a 1994, a violência entre o CNA e o IFP, do príncipe Mangosuthu Buthelezi, chefe do bantustão zulu e aliado do regime do apartheid, fez milhares de mortos. O rei dos zulus, Goodwill Zwelithini kaBhekuzulu (sobrinho de Buthelezi), conseguiu, três dias antes das primeiras eleições multirraciais de 27 de abril de 1994, a criação do Ingonyama Trust, gerenciado pelo Ingonyama Trust Board (ITB). O ITB tem a seu cuidado 2,8 milhões de hectares, onde vivem 4,5 milhões de pessoas. Os testemunhos que pudemos recolher revelam inúmeros abusos. Em um casebre nos confins da savana, não longe de Ulundi, município do Inkatha, moram sete famílias, sem água corrente nem eletricidade. Thokozani Ndawo conta que ele e os seus trabalhavam, durante o apartheid, para fazendeiros bôeres, conhecendo seu quinhão de abusos e expulsões manu militari. Em 1997, quando pensavam em reivindicar essa terra, o ITB se apossou dela e criou ali uma reserva natural: “Ninguém nos avisou”, queixa-se Ndawo, cujo rebanho deve agora partilhar o pasto com as zebras e as girafas introduzidas pelo truste. “Soltaram cobras. Ameaçam até trazer leões. Mas nascemos aqui. Se partirmos, teremos ainda menos direitos. O lugar para onde fôssemos pertenceria fatalmente a outra pessoa.” Sua situação não difere em nada da situação dos meeiros das fazendas de brancos. “Queremos a EWC, pois reivindicamos esta terra!”
Oficial de polícia na reserva, Bongani Zikhali precisou inscrever a propriedade de família no ITB, a pedido do chefe tradicional de sua aldeia: “Pensei que fosse para nosso rei, para os negócios tribais”. Mas o truste exigiu em seguida um aluguel de 3 mil rands (R$ 840) por ano… O ex-policial de físico imponente não se intimida e explica que “só o medo” obriga os zulus a pagar. Edward Mpeko possuía uma cabana na costa. Depois de uma briga com o chefe local, ela foi saqueada por bandidos. “O ITB se interessou por minha cabana. Especialmente porque não sou zulu, e sim sotho…” A justiça acabou por lhe dar razão, mas sem indenizá-lo. Perto de Eshowe, os habitantes nos contaram que tiveram de lutar para defender suas terras, cedidas pelo ITB a um grupo mineiro indiano sem nem sequer consultá-los. “Supõe-se que a terra pertença à comunidade, mas na verdade só o chefe decide”, esclarecem os aldeões. Um deles evoca, com inveja, a Revolução Francesa de 1789.
Com sede em Pietermaritzburgo, o Ingonyama Trust não atendeu em nenhuma ocasião ao nosso pedido de entrevista. Em 2017, após recolher dezenas de testemunhos do mesmo tipo, uma comissão de investigação dirigida por Kgalema Motlanthe, presidente da África do Sul de 2008 a 2009, declarou inconstitucional o Ingonyama Trust Act e recomendou sua dissolução. A isso o Inkatha, cujos militantes costumam se manifestar brandindo azagaias, respondeu com ameaças. “Alguns à minha volta estavam dispostos à guerra, mas eu disse não”, declarou o rei Zwelithini.13 “O governo não vai querer enfrentar esse truste feudal, esse Estado dentro do Estado, a fim de não correr o risco de uma guerra civil”, analisa um especialista no assunto, que quer preservar o anonimato por questão de segurança. A criação do Ingonyama Trust é parte do “grande compromisso de 1994”. Pela mesma razão, “o Estado tolera a existência de Orania ou de Vanderkloof” – enclaves onde extremistas bôeres armados até os dentes, nostálgicos do apartheid, vivem em uma autarquia.14 Zwelithini conta com o apoio do AfriForum, uma associação de defesa dos direitos dos bôeres que alega possuir 260 mil membros: “Temos uma postura comum frente à EWC”, nos confirma seu presidente, Ernst Roets. Ruth Hall não se mostra absolutamente surpresa com essa aproximação singular: “O AfriForum e o rei zulu são dois conservadores. Não têm nenhuma consideração pelos direitos individuais”.
Cédric Gouverneur é jornalista.
1 “Land audit report 2017” [Relatório de auditoria fundiária 2017], Ministério do Desenvolvimento Rural e da Reforma Agrária, Pretória, 5 fev. 2018.
2 Ben Cousins, Amelia Genis e Jeanette Clarke, “The potential of agriculture and land reform to create jobs (policy brief 51)” [O potencial da agricultura e da reforma agrária para criar empregos (relatório da polícia 51)], Institute for Poverty, Land and Agrarian Studies (Plaas), Universidade do Cabo Ocidental, Cidade do Cabo, out. 2018.
3 Martin Bossenbroek, L’Or, l’Empire et le Sang. La guerre anglo-boer (1899-1902) [O Ouro, o Império e o Sangue. A guerra anglo-bôer (1899-1902)], Seuil, Paris, 2018.
4 Ward Anseeuw e Chris Alden, “From freedom charter to cautious land reform – Politics of land in South Africa” [Da carta de liberdade à reforma agrária cautelosa – Política fundiária na África do Sul], Universidade de Pretória, out. 2011.
5 Ver Sabine Cessou, “L’ANC, aux origines d’un parti-État” [O CNA, nas origens de um partido-Estado], Le Monde Diplomatique, mar. 2018.
6 Ruth Hall e Tembela Kepe, “Elite capture and State neglect: new evidence on South Africa land reform” [O domínio da elite e a negligência do Estado: novas evidências da reforma agrária na África do Sul], Review of African Political Economy, v.44, n.151, Cidade do Cabo, 2017.
7 Thabo Mokone, “Land reform can no longer be resisted – Ramaphosa” [A reforma agrária já não pode ser detida], The Sunday Times, Joanesburgo, 23 mar. 2019.
8 Ben Cousins, “Land reform in South Africa is sinking. Can it be saved?” [A reforma agrária na África do Sul está afundando. Pode ser salva?], Plaas, para a Fundação Nelson Mandela, maio 2016.
9 Ver Colette Braeckman, “Bataille pour la terre au Zimbabwe” [Luta pela terra no Zimbábue], Le Monde Diplomatique, maio 2002.
10 Ver Marc Laimé, “Les partenariats public-privés sont nuisibles et minent la démocratie” [As parcerias público-privadas são prejudiciais e abalam a democracia], Carnets d’Eau, 8 set. 2007. Disponível em: <https://blog.mondediplo.net>.
11 Na província do Cabo, essa seca teria diminuído a produção agrícola em 20% e custado à economia 5,9 bilhões de rands (R$ 1,7 bilhão). Bureau for Food and Agricultural Policies, BFAP.
12 Iavan Pijoos, “BLF to be reported to Human rights commission over racist Hoërskol Driehoek remarks” [BLF vai à comissão de direitos humanos por causa das observações racistas de Hoërskol Driehoek], The Sunday Times, 3 fev. 2019.
13 Lwandile Bhengu, “Zulu king says he prevented war over legal action against Ingonyama Trust” [Rei zulu diz que evitou a guerra ignorando ação legal contra o Ingonyama Trust], The Sunday Times, Joanesburgo, 14 mar. 2019.
14 James Pogue, “The myth of white genocide” [O mito do genocídio branco], Harper’s Magazine, Nova York, mar. 2019.