Na Flórida, ricos não poderão mais viver com o pezinho na água
As águas sobem em Miami. Assim como os preços dos condomínios de luxo construídos para resistir aos furacões e os dos imóveis populares, mais ao alto, para os quais correm os ricos. Gentrificação clássica ou tomada de consciência do aquecimento? Não importa! “Daqui a cem anos”, prevê um construtor, “toda a cidade estará debaixo d’água!”
Nas lojas de souvenirs de Miami Beach, canecas ilustradas com um mapa-múndi se destacam nas prateleiras: se você colocar água quente dentro delas, a Flórida desaparece do mapa. Aqui a era do negacionismo ficou para trás. Os ônibus que atravessam Miami ajudam a espalhar a mensagem: “A mudança climática é real”. O assunto é amplamente tratado pela imprensa local, e o jornal The Miami Herald chegou a criar, já faz dois anos, uma editoria específica para o tema. Outrora cético a respeito das mudanças climáticas, o governador republicano da Flórida, Ron DeSantis, contratou, em 2019, cientistas e consultores de “resiliência” dedicados a preparar a península para os “impactos das mudanças climáticas”. O nível do mar subiu 7 centímetros desde 1992, mas a dinâmica se acelerou nos últimos quinze anos. Até 2060, a água pode subir 86 centímetros. E, como isso não é algo que se vê todo dia, os milionários, instalados em suas belas casas à beira-mar, seja em Miami Beach ou próximo a Fisher Islands, Star Islands ou Indian Creek, não sairão ilesos. Entre os potenciais refugiados climáticos de luxo está o próprio presidente dos Estados Unidos, cujo clube privado de Lago-a-Mar deve, até 2050, passar 210 dias por ano debaixo de 30 centímetros de água.1
Em Miami, a mudança climática não é vista apenas como um risco futuro: suas consequências já são parte da vida cotidiana. A Flórida, um antigo pântano ligeiramente acima do nível do Atlântico, é o estado do país mais vulnerável às inundações, cada vez mais frequentes. O mar tem subido mais depressa nesse estado do que nos outros, e as marés, mais fortes do que antes, revelam-se particularmente destrutivas durante a estação das king tides, as gigantescas marés de outono. As saídas das tubulações de evacuação ficaram abaixo do nível da água, o que faz a água salgada entrar no sistema de drenagem e refluir, junto com as águas residuais, pelos esgotos, mantendo submersas por dias e dias as vias e os estacionamentos subterrâneos. Em 2016, a foto de um polvo encalhado em um estacionamento em Miami Beach causou impacto. Esse novo fenômeno foi batizado de sunny day flooding [enchente de tempo bom], pois ocorre mesmo em dias sem chuva. Em algumas ilhas de Florida Keys, arquipélago que se estende ao sul de Miami, as inundações duraram, em 2019, noventa dias consecutivos, um recorde.
“Cedo ou tarde, teremos de ir embora”
Outra desvantagem geológica: composto por lodo poroso, o subsolo da região é uma verdadeira esponja – uma grande diferença em relação a outras cidades costeiras, como New Orleans e Nova York. Essa composição permite que a extensão do oceano penetre nas reservas de água doce dos aquíferos e das fossas sépticas da cidade. Contra isso, os diques cada vez mais altos construídos pelo município não têm poder algum. Em Hallandale Beach, a água salgada já contaminou cinco poços de água doce. Em outros lugares, ameaça matar a vegetação intolerante ao sal, sobretudo as palmeiras, que fornecem uma sombra preciosa. Ou seja, os moradores podem acabar morrendo de sede antes de morrerem afogados. Já os furacões, que de tempos em tempos varrem essa região tropical, estão mais violentos e longos por causa do aquecimento da superfície do oceano. A devastação material deixada pelo furacão Irma em 2017 atesta isso.
“A curto prazo, nosso medo é a combinação de furacão e maré alta, como aconteceu com o furacão Sandy em 2012”, explica David Letson, economista que estuda os comportamentos de evacuação, ele próprio morador da vila de Key Biscayne, uma ilha ao sul de Miami Beach. “Faz 25 anos que eu e minha mulher vivemos em nossa casa”, continua, “e agora começamos a nos preocupar com o valor dela e a nos perguntar quanto tempo poderemos ficar ali. E não somos tão ricos para morar à beira-mar! Meu vizinho planeja elevar a casa, mas isso é muito caro, custa pelo menos US$ 100 mil. Daí o dilema: investindo para proteger sua casa, você aumenta o valor do bem exposto a condições climáticas mais severas, que inevitavelmente acabarão chegando. Mais cedo ou mais tarde, teremos de ir embora.”
Philip Stoddard, prefeito de South Miami, um dos 34 municípios do condado de Miami, é uma das raras autoridades eleitas a pronunciar o termo “saída voluntária”. “Poucos líderes políticos estão prontos para contar a verdade às pessoas”, explica. “A renda anual média em Miami é de US$ 50 mil. Não temos recursos para financiar a infraestrutura necessária para adaptar a área ao aumento do nível do mar nas próximas décadas. A Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema) tem um orçamento nacional de US$ 125 milhões. Só em meu pequeno município de 13 mil habitantes, seriam necessários US$ 75 milhões para substituir as fossas sépticas com problema por um sistema de esgoto municipal! Temos de dizer às pessoas que é hora de pensar em deixar a região, enquanto ainda há tempo para se organizar com calma.”
Alguns não tiveram tempo de se preparar. No arquipélago de Keys, a destruição causada pelo furacão Irma forçou centenas de pessoas a ir embora. Teoricamente, a Fema propôs a compra de algumas casas nas áreas vulneráveis, de modo a poder declarar esses terrenos como não disponíveis para a construção, colocando fim ao ciclo infernal de destruição-reconstrução. Mas o processo administrativo é longo, com uma duração média de cinco anos. Acima de tudo, “a Fema simplesmente não tem dinheiro para comprar as casas de todas pessoas que deveriam sair”, destaca Stoddard.
O prefeito de South Miami não é o único a defender a saída. Em termos mais discretos e técnicos, o consultor de gerenciamento de patrimônio Mark Singer convida seus clientes a “reduzir sua exposição”. Antes, explica, “ser dono de sua casa era o investimento mais seguro. Mas isso acabou. O aquecimento global não é cíclico como o mercado de ações, a menos que possamos esperar até a próxima era glacial”. Ele lembra muito bem da primeira vez em que viu água saindo dos esgotos quando não estava chovendo. “Os construtores imobiliários que constroem à beira-mar têm um horizonte de três a quatro anos, mas eu tenho um relacionamento de longo prazo com meus clientes, que estão começando a ficar preocupados com a elevação das águas. Mais cedo ou mais tarde, as seguradoras aumentarão drasticamente as tarifas, os bancos não farão mais financiamentos de trinta anos, e eles não conseguirão mais revender suas casas.”
Nessas condições, não escapou aos observadores bem informados o fato de que alguns bairros a poucos quilômetros do mar estão situados um pouco mais ao alto. Longe do frenesi turístico de Miami Beach, está West Coconut Grove. Esse antigo bairro residencial, originalmente ocupado por imigrantes das Bahamas, está a uma altitude que chega a 3 metros. Três pequenos metros que fazem toda a diferença, especialmente se comparado com Miami Beach, onde a maior parte das construções se assenta em uma altitude de 60 a 120 centímetros. Típicas das construções antilhanas, as casinhas de madeira conhecidas como shotgun, retangulares e estreitas, podem não ter vista para o mar, mas também nunca ficam inundadas. O reverendo Nathaniel Robinson, que atua na igreja africana metodista episcopal do bairro, elogia a robustez dessas casas térreas capazes de resistir aos furacões. Ele explica: “Basta abrir as portas e as janelas e a casa respira, o vento atravessa a casa, não a derruba. Esta aqui conseguiu sobreviver até ao [furacão] Andrew, em 1992” – orgulha-se, mostrando uma modesta casa branca marcada pelo tempo.
No entanto, será ela capaz de sobreviver aos investidores imobiliários? “Os corretores ligam e mandam cartas toda semana querendo que eu venda”, exalta-se Thaddeusq Scott, um jardineiro “semiaposentado” de 63 anos que mora no bairro desde a infância. Há dez anos, ele comprou uma casa por US$ 130 mil, com um financiamento de trinta anos. Ele ficou bem, mas se sente cada vez mais solitário à medida que os investidores compram e derrubam as casas ao redor da sua a fim de erguer imponentes residências brancas e quadradas de estilo refinado. Ele descreve o surgimento de uma centena desses luxuosos “torrões de açúcar” com vista para as casinhas antilhanas como uma “ameaça”: “Essas casas novas custam US$ 2 milhões. Elas não são para gente como nós”.
Ricos se afastando do litoral inundável e indo viver nas partes altas, em detrimento dos habitantes originais? Para descrever esse fenômeno, Scott não hesita em falar em “gentrificação climática”. O termo tem ganhado força na imprensa local no último ano e aparece em vários estudos publicados. Segundo Jesse Keenan, professor de Harvard e oriundo de Miami, o valor das casas individuais aumentou mais rapidamente entre 1971 e 2017 nos bairros mais altos do que nos mais baixos.2 Um relatório da consultoria McKinsey também estima que as casas na zona inundável da Flórida devem perder de 15% a 35% de seu valor até 2050.3
“Elevação” do bairro
Em Little Haiti, um grupo de militantes está bastante mobilizado em torno desse tema. Conhecido por seu mercado caribenho e suas botanicas (lojas de vodu), esse bairro popular onde se estabeleceram na década de 1970 os refugiados haitianos que escapavam da ditadura de Jean-Claude Duvalier está entre 2 e 4 metros acima do nível do mar. “Para Miami, são as Montanhas Rochosas!”, ri Caroline Lewis, fundadora da Cleo, uma associação especializada em educação sobre as questões climáticas. Aqui, o estandarte da gentrificação climática se chama Magic City Innovation District. O megaprojeto de US$ 1 bilhão prevê a construção, em quinze anos, de vinte edifícios combinando escritórios, lojas, apartamentos, galerias, cafés e restaurantes, distribuídos em um “calçadão” de 7 hectares. O site oficial desse projeto de “revitalização” (sic) fala explicitamente da vantagem da “elevação” do bairro diante dos “impactos das mudanças climáticas” e das “ondas de tempestades”. Apesar de três anos de incansável luta dos moradores haitianos, os promotores conseguiram a autorização do município em 2019. Apenas em um ponto eles foram obrigados a ceder: o projeto propunha mudar o nome do local para Little River – nome do bairro antes da chegada dos haitianos –, mas tiveram de concordar em manter Little Haiti. Um prêmio de consolação bem minguado.
Marleine Bastien, diretora do Family Action Network Movement [Movimento de Rede de Ação Familiar], um grupo de apoio às famílias haitianas, não se cansa de dizer aos proprietários para não vender. “Os promotores estão oferecendo entre US$ 150 mil e US$ 200 mil por casas que foram compradas no início dos anos 2000 por US$ 40 mil. Eles acham que é um ótimo negócio, mas depois que vendem acabam descobrindo que com esse dinheiro não se compra mais nada em Miami.” Alguns vão morar mais distante no condado, em North Miami Beach, Homestead ou Miami Gardens; outros vão mais longe ainda, até Fort Lauderdale, no condado vizinho de Broward, ou até no estado vizinho da Geórgia.
Com a subida do nível do mar, a prefeitura de Miami considera lógico desenvolver essas áreas que são não apenas mais altas, mas também atendidas por uma das raras linhas de trem. “Miami se desenvolveu inicialmente como um destino de férias de inverno; depois, em grande parte graças à difusão do ar-condicionado na década de 1960,4 tornou-se uma cidade de residência permanente”, explica o diretor de planejamento urbano da prefeitura, Francisco Garcia. “Mas a organização urbanística de então, baseada em casas individuais, não é mais viável: é absolutamente necessário adensar a cidade.”
Os moradores de Liberty City – que fica a 2,6 metros “de altitude” – estão convencidos de que são os próximos na lista de compras da gentrificação climática. Nesse bairro de população negra no qual metade dos habitantes ganha menos de US$ 20 mil por ano, o preço médio do metro quadrado cresceu 26% em 2018. Em parceria com grupos privados, a cidade começou a reformar em 2017 os conjuntos habitacionais construídos na década de 1930 nos nove blocos que formam Liberty Square. As construtoras logo começaram a comprar as casas dos arredores. “Abriram uma clínica veterinária aqui”, diz com ar irônico Samantha Quaterman, diretora de uma escola do bairro. “Quando você vê pessoas brancas passeando pela rua com seus cães, sabe que está muito lascado. Eu não conheço ninguém que tenha um cachorrinho aqui…” Tristemente famosa por causa das rebeliões raciais de 1979, das gangues e do crack, Liberty City ainda parece longe desse estágio de aburguesamento: o Dunkin Donut é o único restaurante do bairro, e tem vidro à prova de bala em frente aos caixas. A rede especializada em rosquinhas a preços acessíveis não tem como público-alvo a mesma clientela que um café Starbucks, por exemplo. No entanto, Quaterman já considera isso um lamentável sinal de aburguesamento: “Antes, era um KFC [uma popular rede que vende frango frito]. Estamos ferrados!”.
Seja em West Coconut Grove, Liberty City ou Little Haiti, todos enfatizam amargamente a ironia histórica da situação: “Durante a segregação, depois com as políticas que proibiam empréstimos hipotecários a negros fora de certas áreas até meados da década de 1960, nós não podíamos morar no litoral. Agora a água está subindo e eles querem vir morar em nossos bairros e nos expulsar”, resume Caroline Lewis. Essa é a originalidade de Miami, em comparação com uma cidade como New Orleans, onde as comunidades negras vivem em áreas baixas e propensas a inundações.
A hipótese de uma gentrificação puramente climática, no entanto, não é consenso, pois a especulação imobiliária começou em 2005, bem antes de passarem a falar tanto sobre mudanças climáticas. Essa especulação afetou todos os bairros, inclusive os menos elevados, em um contexto de explosão demográfica. Em quinze anos, Miami passou do status de estação balneária e paraíso fiscal para aposentados que gostam de golfe ao de metrópole global, cultural e moderna para jovens executivos dos setores de tecnologias e finanças, interessados em arte contemporânea. Desde 2010, a população do condado de Miami cresceu em 300 mil, para atingir agora 2,8 milhões de habitantes. Os preços dos imóveis subiram, inflados por uma forte demanda externa. Arranha-céus de luxo brotaram como cogumelos. Nessas condições, muitos bairros logo se aburguesaram, tanto Downtown como Wynwood ou Design District. Entre 2011 e 2017, os aluguéis subiram 24% no condado. Porém, os salários e a construção de moradias sociais não acompanharam esse movimento.
Mallory Kauderer, empreendedor imobiliário que atua em Little Haiti há 25 anos, não esconde seu aborrecimento quando falamos da questão climática: “Estamos investindo ali porque é um dos poucos bairros onde os preços dos terrenos ainda são baixos. Os 3 metros de altitude de diferença são ridículos: daqui a cem anos não fará diferença, toda a cidade estará debaixo d’água!”. O professor Jesse Keenan, autor de um estudo que destaca a ligação entre a altitude e o aquecimento do setor imobiliário, reconhece que, “em um bairro como Little Haiti, provavelmente estamos lidando com a gentrificação clássica”. E detalha: “Frequentemente, quem sai de Miami Beach para fugir das intempéries não fica em Miami, mas vai para cidades como Orlando e Atlanta. Meu melhor amigo, por exemplo, acaba de vender sua casa em Miami Beach e ir para Denver”.
Portanto, não basta observar o fenômeno em escala local. Segundo um estudo do demógrafo Mathew Hauer, da Universidade da Geórgia,5 6 milhões de moradores da Flórida devem se mudar para áreas mais afastadas do litoral até o final do século se a água subir 1,8 metro. Sabendo que aglomerações como Dallas e Houston poderiam absorver grande parte desse contingente populacional, é em escala nacional que podemos medir os efeitos da gentrificação climática. Em todo o país, 13 milhões de pessoas podem ter de sair de cidades costeiras, principalmente de Long Island, em Nova York, de New Orleans, na Louisiana,6 de Charleston, na Carolina do Sul, e de San Mateo, na Califórnia. Embora as Nações Unidas costumem alertar para a situação de pequenas nações insulares, como as da Polinésia, as Maldivas e as cerca de 7 mil ilhas das Filipinas, o problema emerge com gravidade nos Estados Unidos, onde poderia provocar um movimento populacional de magnitude comparável à Grande Migração de Afro-Americanos do Sul para o Norte do país ao longo do século XX.
Eles não ligam se sua residência será inundada
Jesse Keenan também admite prontamente que não são os bilionários que estão abandonando suas mansões em Miami Beach para ir morar em Little Haiti ou Liberty. “Eles não estão nem aí se uma de suas casas de verão de US$ 15 milhões for inundada.” Se houver um furacão, eles estarão longe de Miami, em uma de suas muitas residências. “Em compensação, as classes médias estão cada vez mais irritadas com as inundações cada vez mais frequentes, que destroem seus carros, aumentam o preço de suas apólices de seguro e deixam intransitáveis as estradas que elas usam para ir de casa ao trabalho.”
Assim, os mais ricos não apenas não estão preocupados em se mudar, como ainda há alguns vindo se instalar à beira-mar, onde os “condomínios” de luxo projetados por arquitetos famosos continuam sendo construídos e vendidos a preços insanos. Os compradores assinam seus cheques com ainda mais serenidade por saber que precisam assumir apenas parte dos riscos. Nos Estados Unidos, há um sistema público de seguro contra inundações, o National Flood Insurance Program (NFIP), criado em 1968 e cujas taxas não refletem os riscos reais. “Eu sou de esquerda, não sou fã dos mercados, mas no caso dos seguros eu gostaria muito que a mão invisível de Adam Smith viesse aumentar os preços!”, brinca Mario Ariza, jornalista do Sun Sentinel e autor de um livro no prelo sobre os efeitos do “desastre climático” em Miami. “Atualmente, estamos socializando o risco, e isso sabendo que dois terços das casas cobertas por esse seguro público são residências de veraneio de gente rica.”
O nível do mar está subindo? Pouco importa: as novas construções são concebidas para resistir a isso. É o caso do Monad Terrace: projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel, o prédio de 59 apartamentos foi construído para suportar um furacão de categoria 5 (nível máximo). O edifício, com vista para a Baía de Biscayne, será elevado em 3,5 metros e terá garagem no térreo, não no subsolo. Em caso de inundação, o excesso de água será direcionado para a lagoa localizada no centro do complexo, pelo mais gracioso dos efeitos. Os empreiteiros não se cansam de falar na “resiliência” do futuro edifício, que deve ser concluído até o fim do ano. É claro que eles se esquecem de contar que a concretização do projeto exige a compra de um prédio e a expulsão de seus inquilinos, que, a menos que possam pagar entre US$ 1,7 milhão e US$ 14 milhões, dependendo do apartamento, não poderão contar com os milagres dessa “resiliência”.
Resiliência é a palavra mágica. “Antes, promotores imobiliários e poderes públicos negavam as mudanças climáticas”, analisa Stephanie Wakefield, geógrafa da Universidade Internacional da Flórida. “A ‘resiliência’ foi a forma que eles encontraram de falar sobre o assunto, pois agora podem fingir que acharam as soluções para enfrentar esse problema.” Surgido no campo da física para designar a resistência de um material a choques, o conceito tem uma bela carreira: importado na década de 1970 pelas ciências da ecologia para analisar a evolução e a adaptação dos ecossistemas, ele explodiu nos anos 1980 no campo da psicologia, para explicar a capacidade apresentada por algumas pessoas para superar traumas. Adotada por economistas, urbanistas e especialistas em desenvolvimento, na última década o termo virou a palavra-chave que cabe em todas as políticas públicas, sejam elas ligadas a mudanças climáticas, desastres naturais, terrorismo, crises financeiras ou epidemias. Com a chegada da Covid-19, o presidente francês Emmanuel Macron criou uma operação de guerra, lançada no dia 25 de março, para combater o vírus – e a batizou de “Resiliência”. “É um termo pernicioso, o qual sugere que não podemos mudar os sistemas econômicos existentes nem impedir os desastres que eles causam”, prossegue Stephanie Wakefield. “Seríamos todos naturalmente vulneráveis e seria inevitável conviver com isso. As tecnologias de resiliência que gerenciam as mudanças climáticas coexistem perfeitamente com as tecnologias que causam essas mudanças. O mais perturbador é que parte da esquerda e dos militantes acabou adotando esse vocabulário e essa visão de mundo.”
O tema “resiliência” deve muito de seu sucesso como resposta aos desafios climáticos à Fundação Rockefeller, cuja presidenta, Judith Rodin, escreveu um livro de título muito sugestivo: Le dividende de la résilience. Être fort dans un monde où les choses peuvent mal tourner [O dividendo da resiliência. Ser forte em um mundo onde tudo pode dar errado].7 Desde 2013, a fundação criou e financiou posições de chief resilience officers [executivos de resiliência] em uma centena de metrópoles ao redor do globo.
Jane Gilbert é a primeira a ocupar esse cargo em Miami. Ela detalha para nós as medidas que a cidade está adotando para obrigar (ou mais frequentemente encorajar) proprietários e construtores a elevar o piso térreo, aumentar os diques ou instalar painéis solares. Não se trata, porém, de pensar em ir embora. “As pessoas vêm morar aqui pela beleza do mar, não vamos ficar longe dele”, justifica. Em vez de relocation, como quer o eufemismo da moda, adaptação. Em 2017, a prefeitura conseguiu a aprovação, pelos habitantes, de um plano de US$ 400 milhões, com um nome otimista, “Miami Forever”, que prevê investimentos em infraestrutura e moradias do futuro. E de onde virá o dinheiro? Em muitos aspectos, o estado da Flórida é considerado um paraíso fiscal, pois não cobra imposto de renda. “Uma parte enorme do orçamento de Miami, cerca de 40%, provém de imposto fundiário”, explica Frances Colón, ex-membro do Comitê de Resiliência Climática, responsável por fazer recomendações à cidade. “É aqui que chegamos ao absurdo do sistema: como o município é totalmente dependente do mercado imobiliário e do turismo, ele incentiva a construção de apartamentos e hotéis de luxo para obter as receitas fiscais necessárias ao financiamento da infraestrutura que protegerá essas mesmas construções.” A dependência em relação ao turismo também explica, em parte, o fato de o governador DeSantis ter demorado tanto para pedir o confinamento diante da pandemia do novo coronavírus, deixando tranquilamente dezenas de milhares de estudantes de férias amontoados até abril nas praias da Flórida, para depois irem embora levando o vírus para o resto do país.8
Alguns vislumbram ilhas flutuantes
Ainda mais que a cidade de Miami, é Miami Beach, o município vizinho menor e mais rico, que revela seu voluntarismo audacioso em matéria de “resiliência urbana”. Em 2015, Miami Beach anunciou um plano de US$ 400 milhões, cujo nome épico, Rising Above [Elevando-se ao alto], descreve adequadamente a ambição do então prefeito Philip Levine de literalmente “elevar” a cidade acima do mar. Declarando estado de emergência climática, ele não hesitou em ignorar os procedimentos usuais para se lançar a trabalhos titânicos e erguer uma dúzia de estradas, instalar bombas gigantes (principalmente na Alton Road, onde possui imóveis) e elevar os diques.
Os resultados não ficaram à altura das promessas. Construídos às pressas e sem licença, os diques infringiram as regras de proteção da flora e da fauna selvagens, e as obras tiveram de ser interrompidas. A elevação das estradas agravou a inundação dos edifícios alicerçados um nível abaixo. A gerente do restaurante Sardinia Enoteca relata suas desventuras durante a última tempestade: “As bombas gigantes instaladas para drenar a água não estavam funcionando por causa do corte de energia. A seguradora se recusou a cobrir os danos. Por causa da elevação das estradas, passamos a ser considerados subsolo!”. A prefeitura acabou adicionando geradores elétricos nas proximidades para compensar os cortes de energia e negociar com as companhias de seguros. “As coisas estão pouco a pouco voltando ao normal, exceto por um cheiro podre que sobe o tempo todo dos esgotos.” Quanto às bombas, elas não foram projetadas para filtrar a água que descarregam na Baía de Biscayne – isso fez a baía atingir um nível tão elevado de presença de bactérias fecais que cartazes desaconselhando formalmente o banho foram instalados em várias praias.
“De qualquer forma, tudo isso serve apenas para tranquilizar as companhias de seguros e as construtoras, mas não nos dá mais do que uns trinta anos”, avalia a geógrafa Stephanie Wakefield. “A longo prazo, há engenheiros imaginando que teremos cinco arranha-céus de luxo conectados por pontes e chamaremos isso de ‘ilhas do sul da Flórida’. Outros projetam ilhas flutuantes.”
É nesse sentido que a Arkup vende, desde 2018, habitações flutuantes de 400 metros quadrados, um meio-termo entre iate e casa. “Uma alternativa verde, responsável e resiliente”, podemos ler no site da start-up francesa. Com fornecimento de energia garantido por painéis solares, a Arkup também é autossuficiente em abastecimento hídrico, graças a um sistema de coleta e purificação de água da chuva. Projetado para resistir a um furacão de categoria 4, o conjunto se assenta sobre quatro pilares hidráulicos. Em vez de lutar contra a elevação do nível do mar, por que não viver em simbiose com ela? A resiliência é possível, mas tem um preço: US$ 5 milhões, para sermos precisos.
Laura Raim é jornalista.
1 Adam Gabbatt, “How hurricanes and sea-level rise threaten Trump’s Florida resorts” [Como os furacões e o aumento do nível do mar ameaçam os resorts de Trump na Flórida], The Guardian, Londres, 9 set. 2017.
2 “Climate gentrification: from theory to empiricism in Miami-Dade County, Florida” [Gentrificação climática: da teoria à experiência empírica no condado de Miami-Dade, Flórida], Environmental Research Letters, v.13, n.5, IOP, Bristol, 23 abr. 2018.
3 Climate risk and response: Physical hazards and socioeconomic impacts [Risco climático e suas consequências: riscos físicos e impactos socioeconômicos], McKinsey Global Institute, Nova York, jan. 2020.
4 Ler Benoît Bréville, “L’air conditionné à l’assaut de la planète” [O ar-condicionado domina o planeta], Le Monde Diplomatique, ago. 2017.
5 “Millions projected to be at risk from sea-level rise in the continental United States” [Projetam-se milhões de pessoas em risco, no território continental dos Estados Unidos, com o aumento do nível do mar], Nature Climate Change, n.6, Londres, 2016.
6 Ler Elizabeth Rush, “En Louisiane, l’avenir au ras de l’eau” [Na Louisiana, o futuro à beira da água], Le Monde Diplomatique, out. 2015.
7 Judith Rodin, The resilience dividend. Being strong in a world where things go wrong [O dividendo da resiliência. Ser forte em um mundo onde tudo pode dar errado], PublicAffairs, Nova York, 2014.
8 “A shadow over the Sunshine State” [Uma sombra cobre o Sunshine State], The Economist, Londres, 2 abr. 2020.