Na Mauritânia, uma sociedade obcecada pela cor da pele
País pobre, a Mauritânia distingue-se de seus vizinhos do Sahel que convivem com a violência de grupos jihadistas armados, mas segue sofrendo com as divisões étnicas e com a hierarquia definida pela cor da pele. Em um contexto social tenso, a juventude encontra refúgio na fé e na música
“A Mauritânia é puro racismo! Todo mundo sabe disso, mas ninguém fala no assunto, é proibido!” Ibrahim, Abdallah, Mohamed, Amadou e Ahmed, de apenas 20 anos de idade, em cadeiras mancas na rua em frente à casa da tia de Ibrahim, formam uma roda em torno de um pequeno botijão de gás colocado no chão batido. Amigos desde a infância, eles chamam seu grupo de “free like a bird” [livre como um pássaro]. Aqui em Basra, um bairro periférico de Nouakchott, longe das avenidas abastadas do centro da capital, nenhuma rua é asfaltada, e as casas parecem todas construídas diretamente sobre a areia. A eletricidade cai com frequência, e a água é comprada de crianças que a trazem em carrinhos puxados por burros. Enquanto Ahmed faz o chá, Abdallah fala, alternando francês e fulani (chamado pular na Mauritânia). A poucos metros, crianças jogam futebol descalças sobre o chão poeirento. “No alto estão os bidans, os mouros brancos. Eles são donos de tudo. Logo abaixo estamos nós, os negro-africanos [ele mostra com o dedo indicador a pele do antebraço]. E, mais abaixo, os haratins. Eles também são mouros, falam a mesma língua que os bidans, mas são negros como nós [e repete o gesto com o indicador]. Na verdade, eles são os antigos escravos dos bidans e hoje ainda mais desprezados do que nós.”
Enquanto Ahmed se empenha em erguer bem alto a chaleira, a fim de oxigenar o líquido fervente ao despejá-lo nos copinhos, Amadou continua: “Os mouros, brancos ou negros, falam hassaniya [o árabe utilizado nesta parte do Saara]. E nós falamos wolof, pular e soninquês. E, além disso, francês. Você entende?”. Sim, entendemos, especialmente porque nos últimos três dias já ouvimos essa mesma explicação pelo menos dez vezes. Com o mesmo gesto do indicador confirmando que a pigmentação da pele e o pertencimento a um desses três grupos são aqui uma obsessão.
A Mauritânia é um país estranho! Um território vasto (quase duas vezes a França), encaixado entre o Magreb – o país, aliás, faz parte da União do Magreb Árabe (UMA) – e a África subsaariana. Com 95% de área desértica – é justamente a imagem de suas dunas intermináveis com as caravanas de camelos que circula no Ocidente –, tem apenas 4 milhões de habitantes, dois terços dos quais com menos de 26 anos de idade. Uma população tão pequena e ainda assim tão dividida! Dividida pela língua, pela cor da pele e também pela hierarquia estabelecida dentro do grupo dominante de mouros brancos, segmentado entre os descendentes de grandes famílias de guerreiros e marabus (homens santos e estudiosos locais) e aqueles cuja origem está em tribos de menor prestígio e até mesmo em castas “vergonhosas”, como a dos ferreiros ou a dos menestréis. O número de casamentos mistos é muito baixo, e algumas histórias de amor poderiam servir de roteiro para os filmes melosos de Bollywood – dos quais os mauritanos são grandes fãs.
Qual é a proporção desses diferentes grupos no país? Impossível saber, pois desde a década de 1960 não são feitos estudos estatísticos. Em 2011, com a adoção do passaporte biométrico, todos os cidadãos tiveram de se apresentar à administração para provar sua “mauritanidade”. Isso provocou grandes protestos, com a acusação, por parte dos negro-africanos, de que o governo queria negar sua nacionalidade.1 O assunto continua sendo muito delicado em um país onde, desde a independência, em 1960, quase todos os poderes políticos, militares, econômicos e até intelectuais estão nas mãos dos mouros brancos. Na tentativa de esconder tal desigualdade, o governo desqualifica como “racista” qualquer distinção entre bidans e haratins, o que faz a proporção de mouros na população parecer muito maior do que a de negro-africanos – o que é certamente verdade, mas obscurece o fato de, entre os mouros, os haratins serem muito mais numerosos.
Primeira rodada do chá de menta de Ahmed, engolido de uma vez como uma dose de vodca. “Na verdade, nós e os haratins vivemos a mesma discriminação”, afirma Ibrahim. “Podemos ter todos os diplomas que quisermos, mas, quando prestamos concursos [para o serviço público, muito visado porque garante um emprego estável], nunca somos nós que conseguimos o cargo, é sempre um bidan.” Silêncio. Não insistimos no fato de que esses jovens dos bairros pobres de Nouakchott, na verdade, têm poucos diplomas. A maioria deles frequentou a escola pública, em turmas abrigando entre setenta e cem alunos, o que produz uma porcentagem colossal de evasão escolar. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 2012 a taxa de alfabetização não passou de 60%, e o número de pessoas com 20 anos ou mais que completou o ensino médio se manteve inferior a 5%. As famílias bidans, por sua vez, mandam seus filhos para escolas particulares, a um alto custo: entre 800 e 4 mil uguias (R$ 81 a 404) por mês por criança, quando as massas mauritanas fazem o que podem para sobreviver com o equivalente a R$ 420 ou 840 mensais.
“Vivemos uma nova escravidão”
Apesar dessa reserva e a despeito da proibição de estudar o assunto imposta aos pesquisadores, uma constatação visual é inevitável: em todas as repartições públicas, para além das funções subalternas, só há bidans. As muitas lojas do centro da cidade pertencem quase exclusivamente a bidans, assim como todos os bancos e empresas. “E no Exército, instituição que constitui a espinha dorsal do regime, os postos de general são quase todos preenchidos por mouros brancos”, acrescenta o sociólogo Amel Daddah.
Seria essa desigualdade particularmente pronunciada em Nouakchott, cidade que reúne um quarto da população e onde se concentram todos os males do país – analfabetismo, desemprego da população jovem, desigualdade, pobreza? Não, em absoluto. Em Aleg, cidadezinha de 10 mil habitantes localizada 250 quilômetros a leste da capital, na “Rota da Esperança” que leva ao Mali, o gerente de uma pousada nos confia, depois de jurarmos que não revelaríamos seu nome, nem mesmo seu primeiro nome, por “medo de represálias”: “Eu sou um mouro negro, um haratin. Aqui, a escravidão à moda antiga pode ter quase desaparecido, mas vivemos uma nova escravidão! Veja essas terras: todas pertencem a bidans, mas eles nunca trabalham nelas. Quem trabalha são os negros. E o patrão paga quando quer”. Criminalizada em 2007, a escravidão é um fenômeno muito antigo aqui. Ela continua a existir, sobretudo nos assentamentos rurais. Segundo o Global Slavery Index 2018,2 abrange 90 mil pessoas, o que coloca a Mauritânia na sexta posição entre os países onde o problema é mais grave.3
Em Kaedi, pequena cidade mais ao leste, Hossein, Mokhtar e Salem tocam juntos uma modesta oficina de automóveis. Os dois primeiros são haalpulaaren (de língua pular), o outro é haratin. Todos dizem a mesma coisa: “Aqui, a justiça é zero vírgula zero! Toda a justiça é para os mouros brancos. Se você tiver qualquer mínimo problema com um mouro branco e for à delegacia, quem acabará com problemas é você. O mouro branco vai ser tranquilamente mandado para casa, e você vai ficar na delegacia”.
Voltando aos “pássaros livres” de Nouakchott. Segunda rodada de chá, ainda mais doce. Mohamed, quase mudo até agora, de repente se empolga: “A polícia nos aterroriza! Depois das 10 da noite, se você ficar pela rua, tem toda chance de ser parado pela polícia, pelo simples fato de ser negro. Eles dizem que estão lutando contra os estrangeiros sem documentos, mas na verdade querem nos pegar! E, se você reivindicar seus direitos como cidadão, apanha na hora”. Amadou acrescenta: “A única maneira de escapar é pagando. Por 4 mil uguias [R$ 404],4 eles te liberam. Mas onde encontrar os 4 mil? Então acabo passando a noite na cadeia”. Teriam, no entanto, realmente aonde ir esses jovens habitantes da periferia de uma cidade – assim como o resto do país – que não tem nenhum bar, nenhum cinema, nenhum teatro, nenhuma sala de concerto e nenhuma biblioteca? Passados sessenta anos da saída do colonizador francês, o único local na Mauritânia que tem uma oferta cultural regular é o Instituto Francês de Nouakchott. Alguns estádios, parques e cinemas antigos às vezes são disponibilizados para concertos de música tradicional ou de hip-hop.
“De vez em quando, reunimos várias pessoas e alugamos um apartamento por uma noite”, conta Abdallah. “Instalamos um sistema de som, abrimos um evento no Facebook, e é uma grande festa! Não tenha dúvida de que muitos bidans vão correndo, inclusive muitas garotas. Assim que entram, elas tiram o véu e todos se divertem.” E só bebem chá e refrigerante? – perguntamos de maneira ingênua. O álcool é estritamente proibido na República Islâmica da Mauritânia (nome oficial do país), cuja Constituição proclama em seu preâmbulo que “o islã é a única fonte do direito”. Abdallah morre de rir. Mas, antes de explicar por que, todo mundo já se levantou. “Não saia daí, já voltamos!” São 5 da tarde, a hora da asr, terceira oração do dia, e todos correm para a mesquita. Menos de dez minutos depois, estão de volta. “Agora posso explicar. Aqui tudo é proibido, mas com dinheiro tudo é possível: álcool, prostitutas, haxixe, tudo. E isso não impede ninguém de ir à mesquita!”
De todos os países da UMA, a Mauritânia é o que tem a mais profunda prática do islã. “O islã está presente em nossa vida como a água que bebemos e o ar que respiramos”, afirma Mohamed Fall Ould Bah, diretor do Centre d’Études et de Recherches sur l’Ouest Saharien (Ceros, Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Oeste do Saara). O ritual das cinco orações marca o ritmo da vida cotidiana dos homens que, ao chamado do muezim, saem dos carros e se ajoelham nas calçada, ou se dirigem para a mesquita mais próxima. Nos últimos vinte anos, o número de locais de culto aumentou vertiginosamente, graças aos petrodólares das monarquias do Golfo. Segundo o cientista político Zekeria Ould Ahmed Salem, em 2010 o país tinha 7.650 desses locais, 4 mil deles em Nouakchott.5 Hoje esse número deve ser muito maior, embora não haja dados disponíveis.
“São operações comerciais”, diz Bah. “Empresários mauritanos fazem contato com muçulmanos do Golfo que estão com a consciência pesada. Para serem perdoados diante de Deus, esses bilionários dão esmolas de alguns milhares de dólares, dedicados à construção de uma mesquita para os pobres da Mauritânia.” Mas ninguém se engana com esses arrependidos de araque. “Está vendo aquela mesquita?”, lança Mamadou da vitrine de sua loja de costura, no bairro de Arafat, um dos maiores de Nouakchott. “Ela custou 5 milhões de uguias [R$ 50 mil], mas o homem que mandou construí-la arrecadou pelo menos 10 milhões nos Emirados Árabes Unidos…”
A maioria das crianças mauritanas, meninos e meninas, inicia a escolaridade decorando o Corão, em uma das muitas mahadir (plural de mahdara, escola religiosa tradicional), o orgulho do país. Para muitos, esse é um dos raros livros que lerão na vida. “Posso garantir que nenhum dos meus alunos de graduação leu um único romance na íntegra!”, lamenta Idoumou Mohamed Lemine Abass, professor de Literatura da Universidade de Nouakchott. Nas conversas, duas expressões se repetem incessantemente: “Somos todos muçulmanos” e “No Corão, diz-se que…”. Em geral, elas são utilizadas com o fim de dar uma explicação “racional” para cada ato da vida de cada um, bem como para tudo o que lhe acontece.
Notável ausência de terrorismo
Ahmed, 25 anos, mora em Dar-Naim, outro bairro miserável de Nouakchott. Apesar de ter ensino médio completo, ele está desesperado em busca de emprego. Enquanto isso, sobrevive dando aulas em domicílio, a 150 uguias (R$ 1,50) por hora: “Como não tenho apoio, não consigo emprego. Mas estou convencido de que, se Deus quiser, ninguém pode me impedir de conseguir um cargo. Na Mauritânia, somos muçulmanos, acreditamos que é Deus quem decide nossa sorte. Se não pensássemos assim, estaríamos em guerra! Deus nos ajuda a ficar calmos”. Seu sentimento religioso – sua queixa – responde ao de Mokhtar, mecânico em Kaedi: “Aqui, todo dia vemos filhos de bidans dirigindo um Toyota V8 de 18 milhões [R$ 182 mil]. Já nós, nem trabalhando trinta anos poderíamos comprar um pneu desse carro! Mas eu digo a mim mesmo: ‘É Deus que me dá o que como, Ele me ajuda a suportar o que vejo, Ele me ajuda a suportar minha condição miserável’. Por que não vou roubar? Por causa da religião”.
Regada com o dinheiro do Catar, da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, que, além de financiarem mesquitas, oferecem bolsas de estudos para a formação de jovens imãs nesses mesmos países, a Mauritânia está, para algumas pessoas, mergulhando em um retrocesso preocupante. “Nas áreas periféricas, as associações financiadas pelos países do Golfo estão ajudando os pobres e, em troca, pedindo às mulheres que usem o niqab [véu completo]!”, protesta a jornalista Mariem Mint Derwich, uma das raras personalidades, assim como sua prima, Mekfoula Mint Brahim, que ousam desafiar publicamente o “fanatismo ostensivo” em curso em seu país. Muito ativas no Facebook, ambas vêm de uma grande família de guerreiros, o que as torna mais visíveis e, ao mesmo tempo, lhes assegura alguma proteção. “A Arábia Saudita está se abrindo, enquanto nós caminhamos para ser o museu do wahabismo histórico!”, ironiza Mariem. A jornalista Moussa Ould Ahmed acrescenta que, “ao mesmo tempo, assiste-se a uma abdicação total dos intelectuais diante desse populismo religioso encorajado pelos homens no poder, apesar de seus elogios a um islã moderado”.
Foi nesse contexto que um engenheiro de 31 anos, Mohamed Ould Mkhaitir, foi condenado à morte, em 2014, por “apostasia” (artigo 306 do Código Penal). Seu crime? Ter feito, em seu mural do Facebook, uma comparação possível entre o racismo que sofre hoje na Mauritânia a casta dos ma’allemine – os ferreiros, sua origem – e eventuais posições discriminatórias do profeta Maomé, que perdoava alguns de seus inimigos e recusava o perdão a outros. Algumas semanas após a publicação dessas reflexões, no final de 2013, a situação ficou incontrolável. Dezenas de milhares de manifestantes encheram as ruas de Nouakchott e Nouadhibou aos gritos de “Morte para Mkhaitir!”. A sentença acabou sendo comutada para dois anos de prisão, sem que o engenheiro, que já cumpriu três, seja libertado. Ele ainda definha em uma prisão secreta de Nouadhibou, totalmente isolado do mundo.
Hoje, apesar de a tensão ter diminuído, ainda há muita gente que pede sua cabeça. “Ele insultou o profeta, deve morrer!”, afirma serenamente Fatimatou Hamady, presidente de uma associação nacional de pais de alunos, a qual admite, como todas as pessoas com quem conversamos, nunca ter lido o texto em questão. Salek Ba, um velho advogado da ordem de Nouakchott, inflama-se: “Eu jamais poderia ser advogado de um sujeito como Mkhaitir! Antes de ser jurista, sou muçulmano! Eu acredito mais no islã do que na justiça”. Na época, apenas dois advogados, Fatimata MBaye e Mohamed Ould Moine, ousaram assumir a defesa do engenheiro, o que lhes rendeu insultos e ameaças de morte. Nos bairros pobres, algumas pessoas comentam: “É porque ele é ma’allem [ferreiro] que passou por tudo isso. Muitos bidans das grandes famílias dizem coisas muito piores [sobre a religião muçulmana], e nada acontece com eles”. Outras, pelo contrário, e são muitas, mostram-se indignadas com a não aplicação da lei: “Aqui, dizem que a Constituição se baseia na xaria, mas não a aplicam!”, lamenta Salem, o mecânico de Kaedi, referindo-se ao uso da amputação como castigo. “Porque, se fosse aplicada, os mouros brancos perderiam todas as mãos! As pessoas do Estado são um bando de ladrões que rouba o povo. Eu sou a favor de que cortem as mãos dos ladrões! Assim, ninguém vai roubar.” Reconhecido em 2007, o Rassemblement National pour la Réforme et le Développement (RNRD, União Nacional pela Reforma e o Desenvolvimento / Tawassoul, termo que designa o aproximar-se de Deus por diversos meios), partido islâmico afiliado à Irmandade Muçulmana egípcia e considerado moderado, enfrenta dificuldades para mobilizar as massas nesse país onde nenhum partido, nem os oriundos dos movimentos marxistas da década de 1970, se pronuncia pela abolição da xaria como fonte do direito.
Obsessão religiosa, escalada do wahabismo, reivindicação da xaria, exacerbação das desigualdades sociais… À primeira vista, todos os ingredientes parecem fazer da Mauritânia um cadinho do terrorismo islâmico. Mas não é isso que se passa, o que nos obriga a rever qualquer representação esquemática dos países muçulmanos. Desde 2014, o G5 Sahel (Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade) luta contra os grupos jihadistas na região, com o apoio do Exército francês e a ajuda financeira da União Europeia, Estados Unidos e Arábia Saudita; nesse grupo, a Mauritânia aparece como o país mais pacífico. É verdade que, entre 2007 e 2009, alguns atentados, reivindicados pela Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI), foram perpetrados no país – incluindo o assassinato de quatro turistas franceses perto de Aleg, em dezembro de 2007, causando inclusive o cancelamento do rali Paris-Dacar. Mas desde então, nada mais, ou quase nada.
Como explicar essa calma que reina há dez anos, sobretudo considerando que a Mauritânia compartilha mais de 2 mil quilômetros de fronteira com o perigoso Mali? Para essa pergunta, cada um tem uma resposta, sem que seja realmente possível julgar sua pertinência. Para alguns, o Exército teria fornecido enormes esforços de modernização, com a ajuda financeira da União Europeia – há quem sugira, aliás, que o governo exagerou a ameaça islâmica a fim de obter fundos do bloco europeu, sempre pronto a grandes despesas quando se trata de “luta contra o terrorismo” ou “programa de desradicalização”. Outros, mais numerosos, falam em acordos secretos entre o governo e os jihadistas estabelecidos no Mali, que receberiam malas de dólares em troca de sua não interferência. “Tenho dificuldade em acreditar nesse acordo financeiro”, retruca Mohamed Fall Ould Bah. “Para mim, é mais como uma moutaraka, uma espécie de pacto de não agressão que existe no islã: você nos deixa em paz, deixamos você em paz.”
A presença em Nouakchott do antigo mufti de Osama bin Laden, Abou Hafs, confortavelmente instalado em uma bela casa do centro da cidade, também poderia ser um elemento da explicação. Para o advogado Mohamed Ould Moine, “o sequestro de Mkhaitir talvez seja parte do acordo entre a Al-Qaeda e o governo. De qualquer forma, para a Al-Qaeda, a Mauritânia é uma terra amiga”. Por fim, há ainda quem destaque o fato de que muitas autoridades mauritanas têm laços de sangue, por meio de sua tribo, com combatentes malineses e até argelinos. “Nós pertencemos acima de tudo a uma tribo, não a um Estado”, explica um mouro influente. “A fronteira entre o Mali e a Mauritânia é uma criação colonial, ela não nos diz respeito. O povo da Al-Qaeda é minha tribo, são meus primos.” Entre essas tribos, a de Reguibat, de origem berbere, mas hoje de língua árabe, ilustra bem a complexidade das relações de solidariedade entre as populações do oeste do Saara e do Sahel.
De volta a Basra, com os jovens “livres como pássaros”. Terceira e última rodada de chá, o mais doce de todos, que ajuda a “favorecer as trocas”. A prática religiosa e a tradição do chá de hortelã servido em três vezes constituem os dois mais importantes elementos compartilhados pelo conjunto dos mauritanos. Abdallah continua: “Na verdade, não somos nada livres. Nossa única liberdade é o rap”. Há uns bons quinze anos, o hip-hop de fato ganhou uma importância considerável entre a juventude. Hoje, cada bairro de Nouakchott possui vários estúdios de gravação, alguns deles constituídos por selos com músicos contratados. “O rap permite passar uma mensagem, falar sobre a miséria da vida. Esse é o único modo de nos livrarmos do peso que carregamos”, explica El Hajj Adama Fall, diretor do Zik Melo, um famoso estúdio de Basra. “Com 5 mil uguias [R$ 51], pagam-se duas horas de estúdio e, com mais 5 mil, o beatmaker”, explica Lola Eva, uma das raras rappers mauritanas. “Com 10 mil [R$ 101], você consegue gravar um título.”
No dia a dia, Lola Eva trabalha com seu nome real, Hawa Malam Coma, dando cursos de informática para adultos em uma empresa do Kuwait. Jovem mãe, ela ganha 5 mil (novas) uguias (R$ 505) por mês. “Antes, eu trabalhava como secretária em uma pequena empresa dirigida por um mouro branco. Mas, quando eles te dão um emprego, acham que você pertence a eles. Meu diretor logo me fez entender que, se eu quisesse manter meu emprego, teria de dormir com ele. Então me demiti.” Ser mulher e, além disso, rapper: uma verdadeira luta para essa artista que só consegue viver assim porque o marido a apoia “100%”. “Aqui, quando você diz ‘rapper’, as pessoas pensam: garota perdida, drogada, que não é apresentável, que dorme com todo mundo. No caso dos rapazes, eles são a própria imagem do bandido…”
Isso é confirmado por Senor CHK, jovem bidan de uma família modesta que cresceu em Dar-Naim, um dos bairros mais pobres de Nouakchott: “Quando minha mãe soube que eu fazia rap, ela me fez jurar que eu pararia! Então, mudei meu nome artístico e tirei minha foto do meu canal do YouTube. Aqui há muita injustiça! Todos os altos cargos são reservados para pessoas de famílias importantes. Meus ídolos são o grupo Ewlad Leblad. Eles são reais! Eles enfrentam o presidente”. O Ewlad Leblad (“Crianças da Terra”, em árabe) foi o primeiro grupo de rap de sucesso formado por mouros brancos. Talvez precisamente porque mouros e cantando em hassaniya, eles rapidamente atraíram a ira do regime, que os levou ao exílio.
Sem poder dizer a palavra “racismo”
“Com o rap, podemos dizer quase tudo”, explica Monza (Limam Kane é seu nome verdadeiro), ex-rapper que hoje é diretor de estúdio e organizador há treze anos do festival Assalamalekoum. “Mas existem algumas linhas vermelhas. Por exemplo, você não pode pronunciar a palavra ‘racismo’ nem falar sobre a escravidão, já que, oficialmente, ela não existe mais na Mauritânia [risos]. Se você quer denunciar a tomada das riquezas do país por um punhado de corruptos, pode fazer isso, mas sem designar precisamente o presidente da República.” Uma linha vermelha, justamente, que o Ewlad Leblad ousou atravessar. Em março de 2019, dois famosos blogueiros foram presos por ecoarem uma informação que circulava na mídia dos Emirados Árabes de que a polícia apreendera, em um banco de Dubai, US$ 2 bilhões pertencentes ao presidente da Mauritânia.
Os cantores mouros, brancos ou negros, são relativamente raros nessa cena hip-hop amplamente dominada pelos negro-africanos. Isso porque, também aqui, a sociedade é dividida, e cada grupo ouve sua música. Para os mouros brancos, a dos menestréis, uma música tradicional apreciada sob a tenda pelas grandes famílias, que, alguns anos atrás, “possuíam” cada qual seu próprio menestrel; para os haratins, o medh, cantos religiosos, ou o redh, mais dançante. E, para os negro-africanos, o rap. Tanto entre os menestréis como entre os músicos haratins, mantém-se a prudência em relação aos assuntos abordados. “Em minhas canções”, explica em francês Noura Mint Seymali, a cantora menestrel mais conhecida internacionalmente, “às vezes eu falo de amor, o que pode ser meio chocante. Tenho até um texto sobre câncer de mama, que é um assunto tabu aqui, o que faz muitas mulheres morrerem por causa da doença. Mas há outros assuntos, por exemplo, o casamento entre uma mourisca [mulher moura branca] e um menestrel ou haratin. Esse é um assunto que me toca, mas, se eu cantar, causará escândalo, e posso ter problemas. Então prefiro não falar sobre isso.”
Entre os “pássaros” de Basra, Abdallah é o verdadeiro artista, e não tem medo de nada. “Meu nome artístico é AB. Eu já tenho uma dezena de músicas. Estão todas aqui [ele mostra o celular de tela rachada]. Só preciso editar as imagens, e depois coloco tudo no YouTube!” A noite cai. Antes de partirmos, o jovem rapper canta diante de seus amigos um de seus textos, escrito em francês: “Eles mentem para nós / Eles nos matam / Eles nos odeiam fingindo que nos amam / Eles dizem que são muçulmanos / Mas continuam derramando sangue / Eles prendem inocentes / Eles nos proíbem de viver a nossa vida / Mas quem são eles…? / Mas quem são esses mouros brancos…?”.
Pierre Daum é jornalista.
1 Remi Carayol, “Mauritanie: la colère noire” [Mauritânia: a ira negra], Jeune Afrique, Paris, 25 nov. 2011.
2 Índice publicado pela The Walk Free Foundation (Nedlands, Austrália) em cooperação com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Disponível em: <www.globalslaveryindex.org>.
3 Ler Amel Daddah, “Mauritanie, les héritiers de l’esclavage” [Mauritânia, os herdeiros da escravidão], Le Monde Diplomatique, nov. 1998.
4 Ele fala em uguias antigas, como todos com quem conversamos. As novas foram colocadas em circulação em 1º de janeiro de 2018, a uma taxa de 1 para 10.
5 Ver Zekeria Ould Ahmed Salem, “Les mutations paradoxales de l’islamisme en Mauritanie” [As paradoxais mudanças do islamismo na Mauritânia], Cahiers d’Études Africaines, n.206-207, Paris, 2012.