Na Patagônia, em busca de Butch Cassidy e Sundance Kid - Le Monde Diplomatique

REPORTAGEM

Na Patagônia, em busca de Butch Cassidy e Sundance Kid

por Luis Sepúlveda
1 de setembro de 2004
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Os traços de Buch Cassidy e Sundance Kid, assim como de seu implacável perseguidor, o xerife Martin Sheffields, demonstram que os lendários foras-da-lei, conhecidos por assaltar bancos para financiar a revolução anarquista não tiveram seu fim na Bolívia, como no filme estrelado por Paul Newman e Robert RedfordLuis Sepúlveda

Estamos no sul da Argentina, perto de El Bolsón, uma pitoresca cidade na fronteira das províncias de Rio Negro e de Chubut. O vento fazia curvar os gigantescos álamos que margeiam o cemitério, e sua folhagem formava uma imensa cúpula para proteger a paz de todos aqueles que ali repousam. Pessoas que chegaram ao sul do mundo cheias de sonhos, de ambições, de esperanças, de projetos, de amores e ódios, carregadas dessas matérias elementares que constituem a breve passagem sobre a terra. Vieram de toda parte com seus costumes e suas línguas, e acabaram lá, no cemitério esquecido, sacudido pelo vento, unidas a partir de então em sua quietude subterrânea e ligadas novamente entre si pela língua univesal da morte.

Com um cigarro na boca, um homem recolocava algumas flores secas perto de uma sepultura.

Dizem que Martin Sheffields está enterrado por aqui? – perguntei a ele.

O xerife. Esse sujo canalha está lá.

Era um tipo de uma idade indefinível. Sua face, curtida pelos ventos e pelo sol era indecifrável.

Você sabe onde fica o túmulo dele? – insisti.

Sim, mas é preciso se aproximar dele com cuidado porque esse ordinário foi enterrado com seus dois colts nas mãos, e se ele estiver mal-humorado poderá recebê-lo a tiros – respondeu ele, começando a andar.

Um mito da Patagônia

Martin Sheffields chegou à Patagônia no início do século XX. Falava um espanhol impreciso, cheio de expressões mexicano-texanas, e o inventário de seu patrimônio era elementar: dois esplêndidos revólveres Colt que carregava grudados nas coxas, um cavalo branco bem arreado, com uma bela sela texana e uma estrela de xerife presa na lapela do casaco. Era uma espécie de personagem de Marcial Lafuente Estefania1 , muito longe do “Oeste selvagem” norte-americano.

Ele está lá, e espero que bem no fundo – diz o homem apontando uma sepultura sem nenhuma inscrição.

Uns acham que Sheffields foi assassinado e outros que ele morreu de infarte montado em seu cavalo branco, enquanto procurava ouro nas centenas de rios que nascem nos lagos andinos

A tumba estava coberta por uma camada de terra ocre, seca e comprimida, quase petrificada e em cima havia uma margarida de plástico com pétalas secas. Pouca coisa para ornar a sepultura de um dos grandes mitos da Patagônia. Provavelmente, Martin Sheffields morreu em 1939, ninguém sabe com certeza, embora várias biografias sobre ele tenham sido escritas baseadas em “ouvi dizer”, publicadas por escritores que se apropriaram da história de uma região em que as lendas, os mitos e as verdades mudam conforme o vento. Efetivamente, na Patagônia, a história é um gênero narrativo que não faz o menor esforço para assumir os rigores da cronologia ou a objetividade dos fatos2 . Ela é apenas um pretexto para incrementar uma narração oral e prolongar as noites de mate3 no calor em volta do fogão.

Dois revólveres nas mãos

Uns acham que Sheffields foi assassinado e outros que ele morreu de infarte montado em seu cavalo branco, enquanto procurava ouro nas centenas de rios que nascem nos lagos andinos. Qualquer que seja a causa de sua morte, tropeiros o encontraram quando já estava morto havia várias semanas. Os condors e os abutres tinham feito um banquete com esse homem de um metro e oitenta que pesava mais de cem quilos. Eles tinham rasgado suas espessas roupas de inverno para chegar até as vísceras e tinham deixado sua carcaça toda dissecada. Mas não conseguiram lhe arrancar os dois revólveres que tinha nas mãos. Foi assim que encontraram seu esqueleto, e adivinharam que era ele porque estava armado.

Esses tropeiros, boas figuras como todos os homens solitários, cobriram o cadáver com pedras e ele continuou lá, perto da torrente Las Minas até que, em 1959, um dos doze filhos e filhas que ele havia tido com Maria Pichún, uma índia mapuche de quem as pessoas se lembram ainda com medo, decidiu transportar os ossos até o cemitério de El Bolsón.

De acordo com o que se conta, Maria Picún deve ter sido tão grande e robusta quanto Sheffields. Como explicar a não ser pela passividade dos homens que, quando a viam entrar nas tabernas, deixavam rapidamente a mesa de jogo e preferiam ver as cartas voar do que receber um daqueles poderosos sopapos que ela dava em seu homem até deixá-lo inconsciente. A uma distância prudente, eles viam como ela o levava, o colocava deitado no cavalo enquanto ameaçava: “Que ninguém ouse tocar em suas cartas, ele apenas me fará mais uma criança e voltará”.

Bandidos e aventureiros

Em 1898, os agentes da Pinkerton chegaram para instituir a lei do mais forte – a dos criadores de gado e das companhias de estradas de ferro – em todos os territórios do Oeste americano

Contam que o esqueleto não tinha agüentado a viagem de chata – uma enorme caminhonete – nos caminhos esburacados da Patagônia e que se desmantelou, mas os colts continuaram presos aos ossos das mãos.

Uma margarida de plástico na tumba e a estrela de xerife em uma vitrine do museu de San-Carlos-de-Bariloche é tudo o que resta de Martin Sheffields. Tudo? Não. Ele deixou também uma história que diverte, divide e apaixona. Como sempre que se trata de bandidos e de aventureiros.

Uns sustentam que ele nasceu em Baltimore, e outros que ele veio ao mundo em Tom-Green (Texas). Nos arquivos da agência de detetives Pinkerton, encontram-se documentos que confirmam que ele passou sua juventude no estado de Utah. Era um cowboy comum, muito hábil com as armas e tinha sido testemunha da exterminação da “Wild Bunch”, a horda selvagem, um pequeno exército de assaltantes de bancos e de ataques a trens, constituído entre outras celebridades por Black Ketchum, Harry Tracey, PO8 Logan, um bardo que escrevia poemas épicos sobre suas vilanias, Flat Nose Curry e o famoso Butch Cassidy.

No final de 1898, os agentes da Pinkerton chegaram para instituir a lei do mais forte – a dos criadores de gado e das companhias de estradas de ferro – em todos os territórios do Oeste americano, após terem capturado ou liquidado quase todos os fora-da lei. Mas não conseguiram pôr a mão no mais perigoso: Butch Cassidy.

O início da caçada

Em 1901, a agência Pinkerton recebeu uma notícia alarmante: Butch Cassidy havia conseguido fugir do território norte-americano a bordo de um navio a vapor britânico HMS Soldier Prince, que fazia o trajeto Nova York, Brasil, Rio de la Plata e navegava para Buenos Aires. Ele não viajava sozinho. Uma professora chamada Etta Place e um homem não fichado pela polícia que dizia chamar Sundance Kid o acompanhavam. Imediatamente, os dirigentes da Pinkerton decidiram que um detetive deveria se colocar atrás deles e, para isso, designaram Frank Dimaio, um ítalo-americano que logo chegou em Buenos Aires, soube que o trio havia comprado seis mil hectares de terras perto de Cholila, na Patagônia, e no momento em que se preparava para viajar rumo ao sul do mundo, começou a descobrir as qualidades e os prazeres da capital argentina. Dimaio encontrou uma bela moça, de pais italianos, e sentiu o apelo de uma vida sedentária. Mandou às favas a agência Pinkerton e decidiu se estabelecer na Argentina como negociante de calçados.

Até 1976, no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, bem perto da praça em que todo domingo se realiza a melhor feira de antigüidades do mundo, encontrava-se ainda a botique “Calçados Dimaio”, onde se podia contemplar, presa de maneira bem visível, a placa de detetive do fundador. Na América Latina, o destino sempre distorce a vontade dos ianques.

Naquele mesmo ano de 1901, Martin Sheffields fez contatos com a Pinkerton. Segundo algumas pessoas, foi contratado pelo representante da agência de detetives em Houston, Texas. Outros sustentam que isso se deu em San Francisco, cidade em que ele tinha sido condenado a uma curta pena por “vadiagem reiterada”. Seja como for, o prêmio de cinqüenta mil dólares oferecido pela captura de Butch Cassidy pareceu-lhe um excelente pretexto para visitar a Argentina.

“Xerife dos Estados Unidos”

Seja como for, o prêmio de cinqüenta mil dólares oferecido pela captura de Butch Cassidy pareceu a Sheffields um excelente pretexto para visitar a Argentina

Sheffields chegou em Buenos Aires no dia 6 de fevereiro de 1902. No registro do hotel do porto, que recebeu milhares de imigrantes entre 1830 e 1960, ele escreveu: “Martin Sheffields, xerife dos Estados Unidos”, e talvez tenha mostrado a estrela de prata que ele tinha furtado uns anos antes de um verdadeiro xerife alcóolatra em Montana. Com a ajuda de seu espanhol “tex-mex”, certamente teve de perguntar como o diabo como ia para a Patagônia.

A casa de troncos que Etta Place, Butch Cassidy e Sundance Kid construíram perto de Cholila continua de pé e sua solidez é tão impressionante que ainda poderá ser contemplada durante muitos anos. A família que nela mora atualmente tem – por um curioso acaso! – o sobrenome de Sepúlveda. Uma tarde de céu revolto, meu amigo fotógrafo, Daniel Mordzinski, e eu batemos papo e tomamos mate com don Aladín Sepúlveda, o chefe da família, um velhinho com olhar infantil e astuto como uma raposa.

É claro que ele os achou. Ele veio aqui e falou com eles. Eu ainda não tinha nascido e acabo de fazer 84 anos, mas meu pai me contou. Isso deve ter acontecido por volta de 1907. Sheffields veio em seu cavalo branco, jamais teve um cavalo de outra cor. Quando chegou na cerca gritou: “Butch! Sun!”, e os dois lhe responderam em espanhol que se chamavam don Pedro e don José. Então Sheffields começou a rir, a rir tão forte que quase caiu do cavalo. Em seguida falaram entre si em ianque.

Jamais saberemos o que eles disseram, mas é claro que chegaram a um acordo de convivência, pois os telegramas endereçados por Sheffields à agência Pinkerton, entre 1902 e 1905 dão sempre o mesmo argumento: “A Argentina é um país imenso e sigo seus rastros.”

Assaltos a banco

Em 1905, um americano que viajava com o nome de Andrew Duffy chegou até a casa de Cholila. Na realidade, ele se chamava Harvey Logan e era um dos fundadores da “Wild Bunch”. Dois anos antes, ele tinha saído do presídio de Knoxville, Tennessee, à sua maneira, a tiros de revólver, e sua fuga resultou em quatro carcereiros condenados à morte. Naquele mesmo ano, Butch Cassidy, Etta Place, Sundance Kid e o recém-chegado assaltaram o Banco del Sur, na província de Santa-Cruz. Enquanto isso, Sheffields redigia notas que jamais enviava à agência Pinkerton. Em sua temporada no arquipélago das Guaitecas, na costa do Chile, Jo Giglian, um neozelandês colecionador apaixonado de tudo o que se refere a Butch Cassidy, mostrou-me um caderno de capa de couro marrom que tinha pertencido, segundo ele, a Martin Sheffields. Em uma nota, datada de outubro de 1907, lê-se: “Eu poderia ter atirado neles quando saíram transportando o dinheiro dos galeses. Mas não o fiz”. Em 1907, os rapazes e a professora atacaram o banco da Nación em Villa-Mercedes, uma história que se complicou quando Harvey Logan matou o gerente do estabelecimento. No caderno de Sheffields, lê-se: “No começo, não reconheci a mulher porque ela estava vestida como homem. Essa morte vai nos criar problemas.”

Jamais saberemos os termos do acordo feito entre Butch Cassidy, Sundance Kid, Etta Place e Martin Sheffields na cabana de Cholila, mas é muito provável que uma parte da pilhagem com os ataques de bancos tenha servido para comprar o silêncio do xerife, pois em 1907 ele comprou mil hectares de terras férteis perto de El Maitén, na província de Chubut. Deve ter sido uma negociação grande e interessante. Se Harvey dela também participou, eram quatro contra um, quatro argumentos de diversos calibres contra os dois colts 45 do caçador de recompensas.

A lenda

Os telegramas endereçados por Sheffields à agência Pinkerton, entre 1902 e 1905 dão sempre o mesmo argumento: “A Argentina é um país imenso e sigo seus rastros.”

Don Aladín Sepúlveda nos garantiu que, segundo seu pai, a negociação de Sheffields com os fora-da-lei durou vários dias e várias noites. Eles se embriagaram juntos, gritaram, depois riram e fizeram mil juramentos em uma língua que o velho camponês não compreendia. Finalmente, o xerife foi embora em seu cavalo branco.

Você quer saber o que eu penso? – pergunta don Aladín.

É claro – respondi ao mesmo tempo que arrancava algumas lascas dos troncos da cabana, que ainda conservo.

Sheffields lhes disse que não queria mortos. Os mortos sempre criam problemas. Mesmo a pessoa mais inofensiva do mundo, quando morre, complica a vida dos que a rodeiam.

Nos negócios de banco, sabe-se bem, há sempre duas maneiras de se distinguir: como delinqüente colarinho-branco ou como assaltante à mão armada. Após o ataque a Villa-Mercedes, Butch Cassidy, Etta Place e Sundance Kid abandonaram provisoriamente sua atividade bancária. Harvey Logan desapareceu sem deixar vestígios, Etta Place voltou clandestinamente para os Estados Unidos, onde morreu de câncer. Butch e Sundance venderam sua propriedade de Cholila e foram para o sul, para os confins do mundo. Atravessaram o Estreito de Magalhães e se enfiaram na Terra do Fogo, onde entraram para a lenda como dois românticos veteranos que atacavam bancos e coletores de impostos para financiar revoluções anarquistas.

A generosidade do facínora

Um túmulo sem nome e uma margarida de plástico. Foi tudo que o xerife deixou de sua passagem pela Patagônia.

Há ainda alguém vivo que o tenha conhecido? – perguntei ao homem com cigarro na boca que nos havia levado à sua tumba.

Uma das filhas desse facínora ainda vive – respondeu ele, num tom que misturava admiração e desprezo.

No dia seguinte, fomos à casa da filha de Martin Sheffields. Confortavelmente instalados nos assentos de madeira do velho trem Patagonia Express, ou “Trochita” como o chamam com afeição as pessoas daqui, começamos a descobrir a ligação entre a construção da ferrovia e o xerife.

Jamais saberemos os termos do acordo feito entre Butch Cassidy, Sundance Kid, Etta Place e Martin Sheffields na cabana de Cholila, mas em 1907 ele comprou mil hectares de terras férteis

Os trabalhos na linha que une Ñorquinco a El Maitén foram iniciados em 1933, e os carneiros de Sheffields permitiram alimentar dezenas de equipes de operários. O xerife adorava distrair os homens com sua surpreendente habilidade de atirador. Ele era capaz de fazer explodir um cigarro na boca de um jovem aprendiz distraído, ou mesmo de chamuscar o bigode de outro, e fazer isso com uma bala de revólver de calibre 45 tem um mérito. Quando os trabalhos terminaram, Martin Sheffields ofereceu seis novilhos e uns trinta carneiros para o grande churrasco dos festejos. Encontrei várias pessoas mais velhas em El Maitén, Esquel, Leleque e Cholila que se lembram da generosidade do ianque. Mas seu desprezo pela fortuna e pelas inúmeras filhas e filhos que havia semeado nas terras austrais iam acabar arruinando-o. Por isso procurava ouro quando morreu ou foi assassinado.

Dragão esgotado

Nosso trem “Trochita” avançava lentamente. O estreito desfiladeiro, a deterioração da ferrovia e a sinuosidade das curvas o impediam de ultrapassar 40 quilômetros por hora. Sua velha locomotiva a vapor bufava como um dragão esgotado, e o rastro de espessa fumaça que deixava ao passar era rapidamente dissipado pelo eterno vento que não aceita nenhuma outra presença no céu dessa extensão austral. O embalo do vagão convidava a uma doce sonolência, ou a falar em voz baixa com o vizinho de assento.

Sabe quem era Martin Sheffields? – perguntei a um velho que me propôs imediatamente um chimarrão.

E como não?! Ele era muito conhecido – respondeu ele, aceitando um cigarro.

Conte-me.

Era um homem solitário. Tinha tido muitos amigos, inúmeros filhos, mas era um homem só. Ninguém jamais soube de onde havia saído o dinheiro para comprar todas as terras que ele perdeu em seguida. Disseram que tinha vindo para prender bandidos ianques, mas ele não o fez. Era um grande atirador e quando estava bêbado, adorava fazer apostas abomináveis. Por exemplo, ele apostava que podia quebrar os saltos dos sapatos de uma dama e o fazia. Se o noivo ou o marido protestavam, ele lhes oferecia um casal de ovelhas, e assunto encerrado. Chegou a possuir mais de cem mil carneiros na época em que a lã valia ouro, mas se vestia como um vagabundo. Ia de um lugar para outro, sempre sozinho. Em seu cavalo branco, ele cavalgava de Cholia a Esquel, de Norquinco a Portezuelo, sempre sozinho. Às vezes, parava nas tavernas, jogava cartas e perdia cada vez mais, cantava com uma mulher sentada nos joelhos, mas de repente parava e ia para um canto beber sozinho. No fundo, era um homem abandonado, não porque seus amigos, sua mulher ou seus filhos o tivessem abandonado, mas porque se abandonava. Um homem solitário, estranho, mas sempre de bom humor. Você conhece a história do plesiossauro4?

A blague do plesiossauro

Don Aladín Sepúlveda nos garantiu que, segundo seu pai, a negociação de Sheffields com os fora-da-lei durou vários dias e várias noites. Eles se embriagaram juntos, gritaram, depois riram

A grande blague de Sheffields. Um dia, em 1922, escreveu uma carta ao diretor do jardim zoológico de Buenos Aires em que descrevia detalhadamente a existência de um animal vivo, cujo habitat era nas águas da Laguna Negra, nos Andes. Sua descrição era tão exata, tão rigorosa, que os cientistas e os naturalistas não tiveram a menor dúvida que se tratava de um plesiossauro, sobrevivente da pré-história. A notícia deu a volta ao mundo e rapidamente inflamou os espíritos. Warren Harding, o presidente (republicano) dos Estados Unidos ameaçou a Argentina de represálias se as autoridades locais não entregassem à Instituição Smithsoniana de Washington o estudo e a salvaguarda do plesiossauro da Patagônia. A coroa britânica considerou inconcebível que o plesiossauro não fosse analisado, prioritariamente, pelos estudiosos do British Museum. Havia até uma canção dedicada ao estranho animal, depois que um músico compôs um popularíssimo “Tango do Plesiossauro”.

Finalmente, todos os que queriam se ocupar do animal antediluviano chegaram a Buenos Aires e se dirigiram à Patagônia em bandos dispersos, dando rasteiras uns nos outros. Acabaram descobrindo estupefatos que o estranho animal da Laguna Negra não passava de um tronco de árvore envolvido em couros de vaca… Todos os habitantes da Patagônia deram gargalhadas ao saberem da blague de Sheffields. Eles ainda riem disso, mas nem os cientistas da época nem as autoridades argentinas gostaram, para não dizer muito, dessa blague má…

Quando chegamos a El Maitén, descemos do Patagonia Express para pegar um caminho com muita poeira até a casa de dona Juana Sheffields, a filha caçula do aventureiro zombeteiro. Com o fotógrafo Daniel Mordzinski, para nos animar com uma poeira que secava a garganta e nos levava a temer que as máquinas fotográficas estragassem, cantávamos bem alto: “O Uruguai não é um rio, é um céu azul que corre”. Entre grunhidos de reprovação dos estranhos abutres que, aqui, são denominados “teros”. No final de mais ou menos duas horas de caminhada, nos deparamos com a casa que o xerife havia construído para sua filha.

Situava-se em um lugar de beleza fabulosa, rodeada de pequenos carvalhos, tecas, álamos e azinheiras. O ar exalava ali o cheiro de madeira virgem da Patagônia andina, do excremento de animais sãos e das boas ervas perfumadas que alegravam a alma.

A filha

Dona Juana Sheffields tinha 86 anos. Era saudável e altiva. Essa mulher que precisava se apoiar em uma bengala para andar tinha muito orgulho. Cheia de rugas que talvez lembrem seus amores e seus ódios, sua fisionomia era definitivamente da Patagônia. Uma mistura de mãe mapuche e de um pai ianque que tinha não se sabe quantos sangues mesclados.

Butch e Sundance venderam sua propriedade e foram para o sul, para os confins do mundo. Atravessaram o Estreito de Magalhães e se enfiaram na Terra do Fogo, onde entraram para a lenda

Convidou-me para sentar em frente dela e me ofereceu um chimarrão. Com um gesto coquete, alisou o avental e conferiu a simetria de sua cabeleira branca presa em um rabo de cavalo vigoroso. Enquanto Daniel a fotografava, ela me perguntou o que nos trazia ali.

Seu pai. Conte-nos de seu pai.

Martin Sheffields. O xerife Martin Sheffields. Foi ele que construiu essa casa e muitas outras. Era um homem. Havia quem o amava e quem o detestava por esse motivo, porque era um homem, um verdadeiro homem de verdade. Nunca foi fácil ser um homem.

Um homem que adorava as grandes blagues.

Bobagem. Ele tinha humor, mas jamais fez mal a ninguém. Às vezes, quando estava bêbado, fazia apostas… Aconteceu, é verdade, de mirar mal e arrancar o nariz de um gaúcho, mas nunca fez mal a ninguém.

Uns dizem o nariz… e, às vezes, o resto da cabeça.

Que diabo! Era assim a vida antes. Não era fácil. A vida nunca foi fácil na Patagônia. Aliás em toda parte, vive-se, morre-se. Ele morreu sozinho. Como devem morrer os verdadeiros homens.

Visitamos seu túmulo. Está muito abandonado.

Foi um erro ter levado seus ossos para o cemitério. Deviam ter sido deixados lá, perto da torrente Las Minas, onde foi encontrado. Mas os filhos e as filhas são fracos. Não há mais homens como meu pai e a melhor maneira de respeitá-lo é não ir ao cemitério.

Calor e dureza de palavras

Antes de irmos embora, dona Juana Sheffields nos ofereceu pão ainda quente, saído do forno e ovos cozidos para a viagem. A calorosa maneira como embrulhou tudo em um guardanapo de pano contradizia a dureza de suas palavras e de seus gestos.

Começamos a volta sob um céu com nuvens pesadas que anunciavam uma tempestade, mas isso nos era indiferente porque todo andarilho sabe que o caminho é sempre uma surpresa. Depois de uma meia-hora, uma chuva violenta começou a cair no imenso vale. Um pouco mais longe, passamos sob um imponente arco-íris e, na estrada de Cholila, paramos para contemplar um grupo de cavaleiros que galopava ao longe.

Um deles estava montado em um esplêndido cavalo branco e eu me perguntei se aqueles cavaleiros fantasmagóricos cavalgavam desse lado da vida ou do outro… E se o homem do cavalo branco não portava, por acaso, presa na lapela, uma estrela de xerife…

(Trad.: Wanda Caldeira Brant)

1 – Escritor espanhol muito popular, autor, entre 1939 e 1984, de uns 3. 500 romances de bolso cuja intriga se situa sempre num imaginário far west americano.

2 – Ler, por exemplo, Bruce Chatwin, En Patagonie, Grasset, Paris, 1979.

3 – O mate é uma planta da América do Sul da qual se faz uma infusão das folhas para elaborar uma bebida com go



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