Na Síria, uma investigação interminável da ONU
O governo francês acusa formalmente o regime de Bashar al-Assad pelo ataque químico contra uma cidade da província de Idlib. Segundo o chefe da diplomacia francesa Jean-Marc Ayrault, essa responsabilidade é comprovada por um relatório dos serviços de inteligência que asseguram que Damasco ainda mantinha agentes químicos bélicos. De seu lado, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) classifica como “irrefutáveis” as evidência de emprego de gás sarin nesse bombardeio. Em colaboração com a ONU, essa instância continua a investigar a Síria, sem contudo, apontar um culpado
Conselho de Segurança da ONU se reúne para discutir o uso de armas químicas em bombardeio contra a cidade de Khan Shaykhun | Crédito: Un Photo/Evan Schneider
Em 4 de abril de 2017, no início da manhã, um ataque com armas químicas contra a cidade de Khan Shaykhun provocou a morte de 87 pessoas, a maioria civis, e feriu quase seiscentas. Ao mesmo tempo que reconheciam ter realizado um ataque aéreo, mas no meio do dia, contra essa localidade da província de Idlib, situada a 20 quilômetros da linha de frente que separa o exército regular e as forças rebeldes, as autoridades sírias negavam o uso de gás venenoso. Elas lembraram que tinham se comprometido a parar de usar armas químicas desde setembro de 2013 e afirmaram que os estoques e locais de produção do regime foram destruídos pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) entre o fim de 2013 e meados de 2014. Damasco acusou a Frente Fatah al-Cham – o novo nome da antiga Al-Nusra, ligada à organização Al-Qaeda, que teria manipulado a opinião pública. Em entrevista concedida à Agência France-Presse (13 abr. 2017), Bashar al-Assad classificou esse ataque como “100% fabricado”, falando de uma “história montada […] pelos Estados Unidos”. Ao mesmo tempo que acusava o Ocidente de cumplicidade com “os terroristas” – fórmula usual para referir-se à oposição armada –, Assad também denunciou os bombardeios decididos em represália pelo presidente norte-americano Donald Trump sobre o aeroporto militar de Chayrat, de onde, de acordo com Washington, o avião responsável pelo bombardeio químico teria decolado.
Esse episódio lembra o ataque com gás sarin contra Ghouta, um subúrbio de Damasco, em 21 de agosto de 2013 (entre 300 e 2 mil mortos, segundo as fontes, entre elas a organização Médecins du Monde). Contrariamente ao que se acredita, a investigação realizada no final de agosto de 2013 pela ONU não indicou nenhum culpado: inspetores enviados para o local – com a anuência do governo sírio – certamente indicaram o uso “em escala relativamente grande” de gás sarin; mas seu mandado não se destinava a apurar nenhuma responsabilidade. Em janeiro de 2014, Richard Lloyd, ex-inspetor da ONU, e Théodore Postol, professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicaram um relatório que acusava os rebeldes sírios e eximia o regime de culpa. Apesar de bastante criticado por muitos especialistas,1 esse documento serve, equivocadamente, de argumento carimbado com o rótulo da ONU para os partidários de Al-Assad. Porque, como explicou um diplomata árabe lotado em Washington, que pediu anonimato, “no caso do ataque químico de Ghouta, a ONU não acusou nenhuma das partes. Por outro lado, isso poderia ser diferente em relação ao bombardeio de Khan Shaykhun, porque, agora, ela pode, em teoria, indicar os culpados”.
De fato, desde o compromisso assumido por Damasco de destruir seus estoques e sua capacidade de produção de armas químicas, a Opaq intervém na Síria para assegurar o respeito às promessas. Ganhador do Prêmio Nobel da Paz por “seus esforços intensos para eliminar as armas químicas”, essa instância também deve identificar “indivíduos, entidades, grupos ou governos que perpetraram, organizaram ou patrocinaram o uso como arma, na República Árabe Síria, de produtos químicos, aí incluídos cloro ou qualquer outro produto tóxico”,2 por meio de um “mecanismo de investigação conjunto Opaq-ONU” criado pela resolução 2235 do Conselho de Segurança (7 ago. 2015). É verdade que esse mecanismo de investigação conjunta não tem mandato para “agir e operar como um órgão judicial ou parajudicial”; e não é “investido da autoridade ou da competência, seja direta ou indiretamente, de tomar uma decisão judicial oficial ou constrangedora que estabeleça a responsabilidade penal de qualquer pessoa”.3 Mas, como explicou novamente nosso diplomata em Washington, “trata-se de uma instância que gera dossiês. O que ela recolhe no local, como informações, pode ser incluído amanhã em um dossiê de indiciamento que um eventual tribunal poderá usar ad hoc. E isso será muito mais concreto que as alegações norte-americanas contra o regime de Saddam Hussein na véspera da invasão do Iraque em 2003. A ironia da história é que as armas que não foram encontradas no Iraque na época estavam de fato no vizinho sírio…”
O mecanismo de investigação conjunto Opaq-ONU não tem poderes judiciais, mas suas intenções não são tão claras. Em seu primeiro relatório, publicado em fevereiro de 2016, a instância advertiu assim que “todos os indivíduos, grupos, entidades ou governos que desempenham o mínimo papel que seja para tornar possível o uso de produtos químicos como arma […] devem compreender que serão identificados e terão de prestar contas desses atos hediondos”. Depois do ataque de Khan Shaykhun, a Opaq abriu, portanto, uma investigação e qualificou de “alegação crível” as acusações de uso de gás venenoso. O governo sírio e seu aliado russo solicitaram que os investigadores da instituição pudessem se movimentar pelo local, ao mesmo tempo que apelavam para a “imparcialidade”.
Oficialmente, entre as duas partes, a cooperação foi “permanente e intensa” até 2016, e novas reuniões de alto nível estão previstas para o mês de maio, a pedido da Opaq. Sujeitos a uma exigência estrita de confidencialidade, os membros das equipes do mecanismo de investigação conjunta, divididos entre Nova York e Haia, fogem da mídia; sabemos pouco sobre suas investigações. No entanto, a leitura dos relatórios periódicos que o conselho executivo da Opaq dirige ao secretário-geral das Nações Unidas traz elementos de informações. Primeiro, a “estrutura leve”, prevista desde 2014 e que deveria acomodar os investigadores do mecanismo de investigação conjunto de maneira mais ou menos permanente em Damasco ainda não existe, apesar das solicitações da ONU (apenas um investigador está atualmente baseado na Síria). Em segundo lugar, parece que as autoridades sírias respeitaram os compromissos assumidos após a aprovação do “quadro de referência para a eliminação das armas químicas sírias” (ler a cronologia abaixo), em 14 de setembro de 2013, em Genebra, pela Rússia e pelos Estados Unidos. Assim, de acordo com a Opaq, “todos os produtos químicos declarados pela República Árabe Síria que tinham sido retirados de seu território em 2014 foram agora destruídos”. Da mesma forma, no final de 2016, a organização confirmou que “24 das 27 instalações de armas químicas” declaradas em 2013 por Damasco tinham sido destruídas.4 Portanto, hoje só restam três instalações, entre elas um hangar de aviação cujo acesso é proibido ao pessoal da Opaq porque as autoridades sírias afirmam não serem capazes de garantir sua segurança.
Onde se encontram essas instalações que não foram destruídas? Mistério. Estão elas muito perto de zonas de combate, ou quem sabe nas mãos de um grupo rebelde qualquer? Também não se sabe, mas essa suposição alimenta a propaganda do lado pró-Assad: ela lhe permite afirmar que as forças contra o governo dispõem dessas armas químicas e podem, portanto, utilizá-las. No entanto, o argumento pode se virar contra o regime se vier a se comprovar que ele não tomou todas as medidas para destruir a tempo esses locais e seus estoques. Com efeito, dentro das suas prerrogativas, o mecanismo de investigação conjunto Opaq-ONU deve procurar determinar “se indivíduos em posições de liderança se encarregaram de tomar as medidas necessárias e razoáveis para impedir a utilização como arma de produtos químicos”. Uma formulação vaga, que permite questionar, no mínimo, negligências em alto nível em matéria da segurança dos locais de armamentos químicos diante da ameaça rebelde.
Mais importante ainda, um discreto braço de ferro opõe a ONU ao regime sírio. De acordo com vários documentos da Opaq, a base sobre qual repousa todo o processo de desarmamento químico é questionável. “Não foi possível no momento verificar plenamente se a declaração e outras informações apresentadas pela República Árabe Síria são exatas e completas”, observou um relatório endereçado ao secretário-geral das Nações Unidas na época, Ban Ki-moon (28 mar. 2016). Em outras palavras, a lista dos estoques e dos locais de produção de armas químicas transmitida com urgência por Damasco para a Opaq em setembro de 2013 pode estar incompleta. Desde a primavera de 2016, os documentos e relatórios da organização insistem nas “lacunas, incoerências e contradições” contidas na declaração síria. Pouco se sabe sobre essas críticas, a não ser que uma delas tem a ver com o papel exato do Centro Sírio de Estudos e Pesquisas Científicas (Cers). Para a Opaq, a declaração a ele relativa é incompleta; ela não reflete a magnitude e a natureza das atividades dessa estrutura no desenvolvimento do programa de armamento químico.
Os críticos da Opaq deixam a porta aberta a todas as especulações e, em última análise, permitem todos os tipos de exploração. Uma mentira comprovada seria de início uma violação da resolução 2118 do Conselho de Segurança (27 set. 2013), que proíbe a todas as “partes sírias”, quer se trate de atores estatais ou não estatais, de portar, adquirir, produzir, transferir ou usar armas químicas. Isso colocaria também a Rússia em uma situação constrangedora, porque Moscou tinha conseguido a façanha de evitar, em agosto de 2013, uma escalada militar entre os Estados Unidos, a França e a Síria, ao tomar a iniciativa de propor o plano de desmantelamento imediato do arsenal químico sírio e de sua capacidade de produção.
Seja como for, o mecanismo de investigação conjunta continua seus trabalhos sem que surjam por enquanto quaisquer informações que permitam questionar esta ou aquela parte. Antes mesmo que ocorresse o bombardeio de Khan Shaykhun, a imprensa árabe já estava esperando possíveis revelações, ou mesmo acusações específicas, relativas a outro ataque químico, aquele sofrido pela cidade de Darraya, na periferia de Damasco, em 15 de fevereiro de 2015. Infelizmente, a missão da Opaq observou um “elevado grau de probabilidade de que algumas pessoas, em algum momento, tenham sido expostas ao [gás] sarin ou a uma substância semelhante”, mas foi incapaz de “determinar como, quando e em que circunstâncias a exposição ocorreu”. Até a presente data, a organização identificou mais de cem casos alegados de utilização de armas químicas em violação da resolução 2118 e desencadeou mais de trinta investigações. Em 17 de novembro de 2016, o Conselho de Segurança decidiu prorrogar por um ano o mandato concedido ao mecanismo de investigação conjunta. Ainda não se sabe se essa instância é incapaz de identificar os responsáveis pelos ataques químicos ou se ela se recusa a tornar públicos os resultados de suas investigações.
Cronologia
17 de junho de 1925. Adoção do protocolo relativo à “proibição da utilização em guerra de gases asfixiantes, tóxicos ou similares e de meios bacteriológicos”. Este texto, ou Protocolo de Genebra, não proibia a fabricação dessas armas.
22 de novembro de 1968. Adesão da República Árabe Síria ao Protocolo de Genebra.
13 de janeiro de 1993. Assinatura em Paris, da convenção sobre a proibição do desenvolvimento, produção, armazenamento e utilização de armas químicas e sobre sua destruição (o texto tinha sido aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Genebra em 3 de setembro de 1992).
29 de abril de 1997. Entrada em vigor da Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas e nascimento da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), com a sede em Haia e o laboratório em Rijswijk (Holanda).
Segundo semestre de 2012. O regime sírio e a oposição armada se acusam mutuamente de recorrer a armas químicas.
27 de março de 2013. A Opaq se preocupa oficialmente com a utilização de armas químicas no conflito na Síria.
21 de agosto de 2013. Ataque com armas químicas no Ghouta, um subúrbio de Damasco. O regime de Bashar al-Assad e a oposição armada se acusam mutuamente
14 de setembro de 2013. Por iniciativa de Vladimir Putin, a Rússia e os Estados Unidos adotam em Genebra o “Quadro de Referência para a Eliminação de Armas Químicas Sírias”. O governo sírio se compromete a respeitar a convenção sobre a proibição do desenvolvimento, produção, armazenamento e utilização de armas químicas e sobre sua destruição. A adesão da Síria a essa Convenção seria efetivada em 14 de outubro de 2013.
16 de setembro de 2013. As Nações Unidas e a Opaq confirmam o uso de gás sarin no ataque ao Ghouta, mas sem indicar nenhum responsável.
19 de setembro de 2013. O governo sírio transmite à Opaq informações detalhadas sobre seu armamento químico (estoques, nomenclaturas, meios de produção, meios de pesquisa e de desenvolvimento etc.).
1º semestre de 2014. Fim da destruição dos estoques de armas químicas e dos locais de produção declarados pela Síria.
29 de dezembro de 2016. A Opaq anuncia que todos os produtos químicos e instalações e produção declarados pela Síria foram destruídos, mas considera “incompletos” os documentos que lhe foram transmitidos.
4 de abril de 2017. Ataque químico contra a cidade de Khan Shaykhun
*Akram Belkaïd é jornalista.