Na sombra do muro de Sharon
Enquanto o exército israelense continua a matar (160 palestinos em abril e maio) e a destruir casas, segue a construção do muro, ao lado do qual se instalarão zonas industriais que cortarão o Estado palestino em quatro pedaços, privando-o de qualquer viabilidadeMeron Rapoport
Em Airtah, um vilarejo próximo a Tulkarem, os camponeses ainda podem enxergar suas terras desde suas casas localizadas em cima da colina, mas não podem usufrui-las há mais de um ano. Estão impedidos pelas fossas, os muros e as cercas de arame farpado que materializam a barreira conhecida como “de separação”. Mas não é só isso. O exército israelense confiscou seus 500 dounams 1 perdidos. Mas que seja, uma coisa está quase certa: o destino destas terras está selado. Uma área industrial será construída aqui dos dois lados da barreira, com a ajuda das autoridades israelenses e de empreendedores palestinos.
Os camponeses, privados de suas terras, não terão outra escolha a não ser trabalhar nas fábricas. O salário mínimo atingirá um terço daquele em vigor em Israel. Tulkarem não constitui uma exceção. Por certo a construção da “barreira” está longe de ser acabada: 200 quilômetros sobre os 700 previstos. No entanto o ministro israelense da indústria, do comércio e do emprego, o Sr. Ehoud Olmert, está lutando pela construção de uma cadeia de parques industriais ao longo do muro. Certos setores do exército – inclusive os encarregados da vigilância dos territórios palestinos – consideram este projeto como a continuação do muro. «Vocês verão, vai ser muito bonito», lança o comandante da coordenação militar de Tulkarem, ao inspecionar a porta no muro (que penetra cerca de 3 quilômetros dentro do território palestino). «Vamos instalar aqui um distrito industrial e tudo vai melhorar. A população e a Autoridade palestinas realmente precisam destes empreendimentos», afirma o Sr. Gabi Bar, diretor geral dos assuntos do Oriente Médio, do ministério da indústria. Mas a insegurança impede a construção destas áreas em Nablus: seria melhor implanta-las ao longo da “barreira”.
Idéia ressuscitada
A idéia em si não é nova. Após os acordos de Oslo em 1993, funcionários públicos israelenses e palestinos se entenderam a respeito da criação de nove parques industriais na beira da Linha Verde2, na Cisjordânia e em Gaza. Desde Jenin no norte e Rafah no sul, estes últimos forneceriam trabalho para cerca de 100.000 palestinos. Este plano foi engavetado por causa da Intifada. Uma multidão de palestinos irados queimou, desde os primeiros dias do levante, o embrião de parque israelense – batizado de “Brotos da paz” – perto de Tulkarem. O distrito industrial de Erez, nos arredores da barragem como o mesmo nome, em cima da fronteira entre a faixa de Gaza e Israel, sofreu ataques contínuos de combatentes palestinos.
Com dificuldade, estes dois distritos continuam funcionando: cerca de 4500 palestinos trabalham em Erez, 500 nos “Brotos” de Tulkarem, mas ninguém até agora nem sonhou em construir uma nova área industrial na Linha verde. A construção do muro ressuscitou esta velha idéia.
Mão-de-obra sem riscos
A Autoridade palestina é o terceiro parceiro comercial de Israel, após a União Européia e os Estados-Unidos
O muro agravou, do lado palestino, o desemprego, já muito elevado (45% na Cisjordânia, 60% na faixa de Gaza). Pois os 120.000 palestinos que trabalhavam em Israel antes do ano 2000, legalmente ou ilegalmente, não podem mais cruzar a fronteira. Além disso, milhares, ou até centenas de milhares de camponeses não têm mais acesso às suas terras, que se encontram do lado “israelense” da barreira: estes, de facto, não têm mais emprego. Cinicamente, poderíamos dizer que o muro representa dois elementos necessários ao sucesso dos distritos industriais comuns israelo-palestinos: segurança (para os executivos israelenses) e emprego (para os operários palestinos).
O Sr. Olmert diz claramente: “Os distritos industriais resolverão no mesmo tempo o problema do desemprego palestino e do custo elevado da mão de obra para os industriais israelenses – que estão transferindo atualmente sua produção para a Ásia – e isto sem nenhum risco, pois os palestinos não cruzarão a Linha Verde3.” O ministro até expôs, em dezembro de 2003, uma visão próxima a da, quase esquecida, do Sr. Shimon Perez a respeito do «novo Oriente Médio», durante uma conferência em Jerusalém, em que participava o Sr. Saeb Bamya, um alto funcionário do ministério palestino da economia nacional: “Não permitirei que a política interfira no desenvolvimento das relações econômicas com nossos vizinhos palestinos”, lançou o Sr. Olmert, esquecendo que foi o próprio governo israelense que rompeu as relações oficiais com a Autoridade Palestina no meio do ano de 20014.
Baixos salários
Segundo o relatório da FAO, desde março de 2004, cerca de 40 % dos palestinos passam fome e 60 % vivem debaixo da linha de pobreza
Em janeiro de 2004, o Sr. Olmert era convidado para participar de uma conferência organizada pelo Sr. Stef Wertheimer, um industrial israelense famoso, que lançou um programa de construção de 100 distritos industrias no Oriente Médio. Segundo este, “é melhor ocupar as pessoas com o trabalho que deixá-los entregues ao terrorismo”. Altruísmo? Desejo de paz? “Por que vocês pensam que a área industrial de Erez ainda está atraente para 200 fábricas, que permaneceram apesar dos ataques terroristas?, pergunta o Sr. Gabi Bar, do ministério da indústria. O motivo mais importante é o baixo salário dos trabalhadores: cerca de 1.500 shekels [1030 Reais], comparados aos 4.500 shekels [3080 Reais] de salário mínimo em Israel. Além disso, os empregados não são submetidos à legislação do trabalho de Israel”. O Sr. Bar complementa explicando que existe um plano visando a criação de “enclaves palestinos” em território israelense, onde as leis israelenses do trabalho não seriam aplicadas. Mas a Histadrout, o grande sindicato israelense, recusa qualquer tipo de apartheid entre operários palestinos e israelenses.
Os israelenses poderiam de fato ter mais um bom motivo para investir debaixo do muro. A maior fábrica do distrito industrial perto de Tulkarem, Geshuri, está especializada nos agrotóxicos e outros produtos químicos. Até 1985 estava localizada numa cidade praiana de Netanya. Mas seus vizinhos reclamaram do mau cheiro que emitia. Daí a decisão de desloca-la para uma outra unidade, na Cisjordânia. A autoridade palestina exigiu, sem sucesso, que Geshuri seja afastada de Tulkarem. O Sr. Raanan Geshuri, diretor geral da fábrica, convidou qualquer um que desejasse para vir constatar por si mesmo que a fábrica era segura. Já que não tinha convencido seus vizinhos israelenses de Netanya, há poucas chances que consiga persuadir os de Tulkarem? Muitos industriais israelenses poderiam, como ele, ficar tentados a deslocar algumas de suas fábricas poluentes para áreas onde as leis ambientais israelenses, muito rigorosas, não serão aplicadas.
Salvar a economia palestina e a israelense
O Sr. Bar insiste sobre o fato que, apesar de tudo, os palestinos terão a ganhar com estes parques: “De qualquer forma, um palestino recebe mais em Erez do que em Gaza”. Ele provavelmente está certo. Segundo o relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), desde março de 2004, cerca de 40% dos palestinos sofrem de insegurança alimentar (ou seja, estão passando fome), e 60% vivem debaixo da linha de pobreza, estimada pelas organizações internacionais em 2,10 dólares por dia. Os palestinos só podem alegrar-se com o trabalho que lhes permitirá alimentar suas famílias. Mas em que condições? O Sr. Abdel-Malek Jaber, um homem de negócios, dirige a Palestinian Estate Development Management Company (Piedco)5, ator essencial da criação de distritos industriais. Próximo, segundo ele, do ministro palestino da indústria Maher Al-Masri, o Sr. Jaber está empenhado em recolher os fundos necessários para a construção destes dois primeiros parques, única solução para salvar a economia palestina – útil também para a retomada em Israel. Pois as duas estão inextricavelmente ligadas: em 2001, um ano após o início da Intifada, 86% das importações dos territórios palestinos provinham de Israel, e 64% de suas exportações lhe eram destinadas; a Autoridade palestina é o terceiro parceiro comercial de Israel, após a União Européia e os Estados-Unidos.
Os custos de produção nestas zonas industriais seriam 70% menores do que em Israel, em função dos baixos salários e do aluguel barato
“Para que a taxa de desemprego na Palestina fique em seu nível atual, já muito elevada, a economia palestina deverá se desenvolver num ritmo de 7% a 8% por ano, o que é impossível, explica o Sr. Jaber. Deveríamos ir um pouco além e por isso estou chegando à idéia de parques industriais na fronteira. Israel é um país desenvolvido, integrado à economia globalizada. Podemos aproveitar disto. Estamos avançando numa velocidade de 100 quilômetros por hora para o inferno. Eu quero, portanto, dar esperança para o povo”. Seus dois primeiros parques serão construídos em Jalama, no norte de Jenin, e na frente da aldeia de Irtah. O Sr. Jaber indica que “comprou terras particulares de palestinos”, e que já identificou outras perto de Belém. Está projetando construir mais dois outros parques: um em Rafah, no sul da faixa de Gaza; o outro em Tarkumia, perto de Hebron (Al-Khalil), no sul da Cisjordânia. Cada um fornecerá pelo menos 15.000 empregos, e o projeto global poderá criar 100.000 (a população ativa da Cisjordânia é estimada em 560.000 pessoas).
A questão da “segurança”
Os investidores já parecem estar interessados – “Eu não gastaria 40 milhões de dólares se eu não tivesse nenhum cliente”, assegura o Sr. Jaber. Ele espera que, daqui a 18 meses, o primeiro parque comece a funcionar. Segundo seus cálculos, os custos de produção seriam 70% menores do que em Israel, em função dos baixos salários e do aluguel barato. O Sr. Jaber faz o possível para que os israelenses se sintam em segurança. “Eu não sou ingênuo. Para que estes parques possam funcionar, será preciso concluir acordos de segurança diferentes”.
Sobre a natureza destes, o Sr. Gabi Bar quer ser mais explícito. “A condição fundamental é que a segurança destes parques seja exclusivamente assegurada pelos israelenses. Pois, se uma fábrica estiver localizada num setor que controlamos nós mesmos, poderemos dizer que esta fábrica está em Israel. Suas mercadorias não precisarão ser tão controladas quanto as de uma fábrica implantada em Nablus”. A responsabilidade em matéria de segurança é uma das principais mudanças em relação aos planos de antes da Intifada. Na época, segundo o Sr. Reuven Horesh, diretor geral do ministério da indústria no governo Barak, os palestinos deveriam ter assumido a inteira responsabilidade por estas áreas, a tecnologia sendo simplesmente transferida de Israel para a Palestina. Agora os israelenses terão a plena responsabilidade da segurança, mesmo que a terra e a gestão permaneçam palestinas. “Tais declarações não nos ajudam”, confessa o Sr. Jaber, com uma ponta de raiva na voz, consciente da “sensibilidade” palestina.
Aí está o coração do problema: ou estes parques figurarão, como o muro, entre as inumeráveis ações unilaterais dos israelenses impostas aos palestinos, ou resultarão de uma verdadeira cooperação. Mas a primeira opção parece a mais provável. Os sinais não enganam. Em 29 de fevereiro de 2004, o ministério do interior israelense anunciou, pelo intermédio de um jornal árabe, aos camponeses de alguns vilarejos no noroeste de Jenin o confisco, dentro de 15 dias, de cerca de 6 000 dounams de suas terras “para corrigir a organização regional do distrito industrial de Shahak”. Em outras palavras, novas terras palestinas serão tomadas de seus proprietários para ampliar esta área, localizada do lado “israelense” do muro, mas dentro dos territórios ocupados em 1967.
Realidade mascarada
“Cinqüenta famílias são privadas de suas terras, para que cinqüenta outras trabalhem nas fábricas?”
O Sr. Gabi Bar não está a par destas ordens de confisco. Ele admite no entanto o “grande interesse” que representa, para Israel, a ampliação desta área industrial e os “primeiros contatos” feitos com o palestinos com este objetivo. Os agricultores das aldeias de Silat Al-Harithia e de Tura A-Sharkia juram que ninguém os avisou – os funcionários públicos palestinos simplesmente lhes disseram que não sabiam de nada.
A situação é a mesma perto de Tulkarem. O Sr. Faiz Al- Tanib, membro da União dos Agricultores, indica que camponeses de Irtah e de Farun receberam uma carta das autoridades militares anunciando a tomada pelo exército dos 500 dounams que possuem do lado “israelense” da barreira. Antes, umas cinqüenta famílias viviam nestas terras: agora, por causa do muro, não podem mais usufrui-las. Provavelmente o distrito industrial de Tulkarem será implantado nestes 500 dounams, no pé da colina onde fica Irtah. É o que os responsáveis do exército falaram para os camponeses. E, segundo o Sr. Al-Tanib, empresários palestinos estão propondo comprar de volta ou alugar alguns destas terras. O nome da Piedco, a empresa do Sr. Jaber, foi mencionada. “Em que a construção do distrito industrial vai nos ajudar?, se pergunta o Sr. Al-Tanib. Cinqüenta famílias são privadas de suas terras, para que cinqüenta outras trabalhem nas fábricas. Não serve para nada”.
Assim os parques industriais parecem ser uma nova etapa unilateral nas relações israelo-palestinas. O Sr. Gabi Bar desmente, afirmando que, se um só destes parques fosse construído unilateralmente, este seria imediatamente atacado. Mas acrescenta em seguida que um acordo poderia ser concluído num nível local, sem envolver a Autoridade Palestina. O Sr. Jaber pensa também que a instalação dos distritos não implica necessariamente num acordo político entre Israel e a Autoridade. Ele espera, no entanto, uma conclusão rápida: não é que a Autoridade modificou a lei sobre os investimentos estrangeiros, para que nada limite estes nos distritos industriais? Chefe da Iniciativa nacional da Palestina, um novo movimento de esquerda, o Dr. Mustafa Barghouti demonstra ser muito mais cético: “Estes projetos não funcionaram no período após Oslo, e não funcionarão mais agora. Trata-se de mascarar a horrível realidade. Estes empresários palestinos não se preocupam com o desemprego de seus conterrâneos; preocupam-se com o deles. Este plano faz sentido apenas para o lado israelense: porque consolidará a apartheid6, em que os palestinos podem ser apenas um povo de escravos. Mas isto não vai dar certo.”
(Trad.: David Catasiner)
1 – Um dounam equivale a um décimo de hectare.
2 – Nome dado à lin