Nada é pra já
Mas é tempo de acabar com a naturalização da exploração do trabalho em condições incompatíveis com a condição humana
Guerras como sempre, crises como nunca. O noticiário dos últimos tempos está repleto de novas velhas notícias, incluindo conflitos armados cujas causas, danos e lutos são conhecidos. Outros relatos têm assombrado pelo que já causam e pelo perigo que representam, como os efeitos das mudanças climáticas, incluindo enchentes e incêndios na temporada de verão do hemisfério norte. Em meio a tantas notícias, um relato de um passado que ainda se faz por demais presente pouco foi notado, merecendo mais atenção pelo que tem a ensinar sobre nossos dias.
O noticiário internacional repercutiu um importante achado arqueológico em Civita Giulana, perto de Pompéia, que teria sido identificado como um “Quarto ‘usado por escravos’”. As descobertas chamaram a atenção pelo que encontraram no local – e também pelo que não acharam.
Chamou a atenção dos pesquisadores as características que revelavam a precariedade de condições em que viviam os habitantes dos cômodos, inclusive vestígios de ratos e camundongos. As evidências revelavam as “condições de precariedade e falta de higiene”, disse o Ministério da Cultura italiano, que destacou também algo que não foi encontrado: não havia vestígios de grades, fechaduras ou correntes que restringiam a liberdade de locomoção dos habitantes.
“Parece que o controle foi exercido principalmente através da organização interna da servidão, em vez de barreiras e restrições físicas”, declarou o diretor do Parque Arqueológico de Pompeia.
A notícia veio algumas semanas antes da divulgação dos resultados da Operação Resgate III, que retirou no Brasil mais de quinhentos trabalhadores de situações caracterizadas como escravidão moderna – trabalho em condições análogas às de escravo, de acordo com a legislação brasileira. Um problema que, infelizmente, é global, com 27,6 milhões de vítimas no mundo, de acordo com as estimativas mais recentes divulgadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Organização Internacional para Migrações (OIM) e pela organização Walk Free.
Seja aqui ou lá fora, a maior parte desses casos não conta com restrições físicas à liberdade de locomoção como meio de coerção. Por outro lado, a submissão a condições degradantes em meio ao abuso de uma posição de vulnerabilidade são marcas frequentes da exploração do trabalho em condições incompatíveis com a dignidade humana.

Em meio a tantos achados da exploração de ontem e hoje, é de se perguntar, sobretudo em um mundo premido pelas mudanças climáticas, o que dirão aqueles que, no dia em que o Rio será alguma cidade submersa, tentarem decifrar vestígios de estranhas civilizações? Que dirão quando, em meio a resquícios de condomínios urbanos, tiverem dúvidas sobre o que eram aqueles compartimentos minúsculos, alguns sem janela e muitas vezes menores que suas “varandas gourmets”, em que seres humanos “viviam” enquanto trabalhavam? Ou sobre alojamentos precários utilizados por trabalhadores de empreendimentos rurais, não raro de grande porte econômico e tecnológico?
Sabe-se que os achados do sítio arqueológico de Pompéia remontam, no geral, há cerca de 2 mil anos (uma erupção em 79 d.C. soterrou a cidade). Por outro lado, a comunidade internacional comprometeu-se a erradicar a escravidão moderna, o trabalho forçado e o tráfico de pessoas até 2030. É certo que no lento caminhar da humanidade ao longo da história, pode-se dizer que nada é pra já – mas já é tempo, afinal, de acabar com a naturalização da exploração do trabalho em condições incompatíveis com o respeito à condição humana.
Que os achados da arqueologia nos ensinem o que deve ser apenas relíquia e memória – e não sinais de exploração em pleno século XXI.
Thiago Gurjão é procurador do Trabalho e mestre em Direito Internacional pelo Geneva Graduate Institute.