Não à naturalização da barbárie
Vivemos uma crise civilizatória, que questiona nosso modo de vida, de produção e de consumo, nossa relação com a natureza, a distribuição da riqueza produzida, as estruturas de poder que organizam a vida social. Também podemos dizer que vivemos múltiplas crises simultâneas, que caracterizam um momento de ruptura com o passado e nos jogam na incerteza do que será o futuro próximo.
No século XX, o petróleo e os motores a combustão foram as alavancas do crescimento econômico. Um crescimento acelerado, se comparado com os ritmos dos períodos anteriores. Um crescimento predatório, de destruição dos recursos naturais, em uma velocidade em que é impossível garantir a reposição do que foi destruído ou apropriado. Está em curso um processo de extinção de milhares de espécies vivas, desertificação de territórios, aquecimento dos mares, ocorrência de secas e inundações cada vez mais radicais, epidemias. Intensificam-se as migrações de populações inteiras, expulsas de suas terras pela crise climática, por guerras, por uma crescente polarização social e política.
Essa crise é a expressão de um capitalismo selvagem, que não encontra mais os limites impostos pela democracia e pela legislação que protege o interesse comum. O Estado está capturado pelos grandes grupos financeiros e tecnológicos e se submete à sua vontade, melhor dizendo, à sua ganância. Na fase atual, com Trump e Milei à frente, a proposta vai além: é o desmonte do Estado em todas as suas funções de interesse público, como é o caso da Educação e da Cultura, e o fim do controle da sociedade sobre as redes sociais.[1]

Nesse cenário crítico, no qual a desigualdade e a pobreza são cada vez mais expressivas, cresce a revolta para aqueles que ainda conseguem se indignar e a apatia e a resignação para os que não veem mais alternativas. É o momento propício para as ideologias radicais de extrema direita, que jogam toda a culpa no sistema, nos políticos, nos governos democráticos. É o momento do crescimento do crime organizado, das milícias, da violência. É o caminho para a barbárie.
No bojo de todo esse processo está o neoliberalismo como ideologia. A valorização do sucesso individual do empreendedor, do individualismo, da competição, da destruição de seu oponente ou concorrente, da violência contra os demais. São mais de quarenta anos que nossa mente recebe esses valores como referência, os quais, com a ajuda da mídia, dos algoritmos e das redes sociais, se tornaram dominantes. Eles vieram substituir os valores democráticos e as políticas públicas implementadas pelo Welfare State, preponderante nos países centrais do capitalismo até os anos 1970.
Essa tendência democrática e de defesa dos interesses comuns não chegou a ser muito expressiva nos países do chamado Sul Global, onde a democracia, mesmo precária, abriu um campo de disputas pelo alargamento de direitos que envolveu distintas formas de pressão das maiorias. Esse alargamento de direitos é intolerável para a extrema direita, que não aceita disputa política e usa da repressão para calar seus oponentes, como podemos ver nos últimos acontecimentos tanto nos Estados Unidos quanto na Turquia.
A disputa política é a essência da democracia. É por meio dela que as vozes dissidentes e das minorias apresentam suas críticas e proposições. Eliminar o espaço da negociação política, assim como a presença e atuação dos dissidentes nos espaços públicos, é negar direitos e impor pela força a vontade dos governantes.
Para conter a pressão dos debaixo – que ocuparam o espaço público na forma de greves, passeatas, atos públicos, bloqueio de ruas e estradas, ações judiciais, debates, mídia contra-hegemônica –, foi organizado, de maneira sistemática, o combate aos sindicatos, aos movimentos sociais, a ONGs, a todos os coletivos que se organizam na defesa de direitos. Líderes populares são assassinados, militantes são presos, as críticas são criminalizadas, o terror se afirma como forma de governar – as favelas que o digam.
Enfrentar esses ataques significa se contrapor não só às políticas que os expressam, mas também aos valores que os sustentam. Como pensar em uma democracia solidária sem enfrentar o individualismo e contrapor a ele a vontade coletiva?
Nosso maior inimigo é a aceitação da situação presente, a naturalização da barbárie, como se não houvesse alternativas, é isso que os ideólogos do neoliberalismo querem nos fazer crer. Se acreditamos que não há alternativa, estamos derrotados de saída.
Há experiências do passado e do presente que nos mostram novos caminhos. Experiências que buscam soluções coletivas para problemas comuns. Experiências que colocam a vida das pessoas em primeiro lugar, deslocando dessa prioridade o lucro das empresas.
São inúmeras as experiências que nos indicam caminhos, mas, para ficar nos tempos atuais, podemos citar as 450 mil famílias assentadas do MST, maior produtor mundial de arroz orgânico; a Articulação do Semiárido (ASA), que, com seu programa, construiu 1 milhão de cisternas para enfrentar a escassez de água nas secas; as 2.400 cozinhas comunitárias, que oferecem mais de 1 milhão de refeições por mês; o manejo das florestas pelas populações indígenas; e os milhares de experiências de economia solidária mapeadas por Paul Singer. Se quisermos continuar essa listagem, vai longe…
A construção de uma democracia solidária, porém, não atende somente a questões econômicas; mais que tudo, ela se propõe a reconhecer e restaurar a dignidade das pessoas que foram aviltadas por seu empobrecimento. E isso começa com a implementação de políticas públicas para esse resgate da dignidade. Como políticas públicas que asseguram direitos, o Sistema Único de Saúde é o melhor exemplo de tratamento que acolhe e trata a todos, respeitando o direito à saúde como um direito universal. Não se trata de um favor, mas de um direito. As cotas para negros nas universidades são outra expressão dessas iniciativas.
E a demanda por direitos, assim como os espaços de conflitos, cresce com a organização social. Os movimentos sociais contra o racismo, pela igualdade de direitos da mulher, pelos direitos LGBTQIA+, contra a escala 6×1 e contra o Marco Temporal são expressões dessas lutas de resistência e afirmação de direitos. São essas lutas que garantem nossa democracia.
É uma disputa de poder na qual é importante o funcionamento de um sistema democrático reformulado. Democratizar a democracia e dar poder aos dominados. Um trabalho contínuo de fortalecimento de laços de solidariedade e autonomia junto às populações empobrecidas e suas representações coletivas. Um trabalho para toda a cidadania, especialmente para partidos políticos, que também precisam se democratizar no sentido radical do termo.
[1] Ver “Project 2025”, Heritage Foundation.
Ótima análise, Silvio! Muito grato pelas luzes. A minha sugestão é, no mínimo : aproveitar os próximos orçamentos para destinar o maior volume possível de recursos em experiências como as que você citou… mais cisternas, mais cozinhas comunitárias, mais economia solidária, mais creches, mais alimentos básicos para população, mais assentamentos regularizados…