Desobediência civil: não aceitar o inaceitável - Le Monde Diplomatique

Solidariedade

Não aceitar o inaceitável

por Jorge Barcellos
1 de abril de 2020
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O presidente pede que retornemos às ruas. Numa democracia crítica, elegemos governantes, mas não somos passivos a ele. Devemos interrogar a política com nosso poder de juízo, nossa capacidade de pensar. A diferença de opiniões é cívica e deve alastrar-se como um vírus, deve ser contagiosa, pois as pessoas têm o direito à vida frente aqueles que defendem o intolerável. Não atender ao pedido do presidente é uma declaração de humanidade.

Primo Levi dizia que monstros existem, mas são pouco numerosos para serem realmente perigosos: mais perigosos são os homens comuns dispostos a acreditar e obedecer sem discutir. Assim inicia a obra Desobedecer, de Frédéric Gros (Ubu Editora, 2018), uma defesa da desobediência civil às avessas. Para Gros, o problema não é a desobediência civil, que a lei proíbe, mas a obediência civil, a razão pela qual as pessoas não se revoltam.

Gros mostra através de exemplos históricos o problema das pessoas obedecerem aos ditames impostos pelos dirigentes. Obedecer tem sido ao longo do tempo aceitar a guerra, a pobreza, a fome e a estupidez que assolam o mundo, o capitalismo desenfreado que produz vítimas humanas para constituir uma elite rica, enfim, a desigualdade. Obedecemos quando nos mostram os números dos reflexos econômicos que justificam tudo, inclusive o desespero social e mortes. O efeito é que acabamos perdendo nosso senso de justiça e nossos ideais “O formalismo matemático apenas inocenta aquele que colhe os benefícios”, diz Gros.

É difícil parar as cidades porque a imagem veiculada por todo o lado é que só há sentido na vida com o consumo desenfreado. Daí a aceitação do intolerável, a degradação do meio ambiente que leva a emergência de epidemias, a inaceitável exploração capitalista do mundo natural e a especulação financeira que desqualifica o trabalho, disparada suicida que tira o futuro das gerações. Se atendermos o pedido do presidente de voltar às ruas, podemos aceitar as mortes decorrentes das epidemias? Diante do conflito de orientações ficaremos de braços cruzados frente à iminência da catástrofe?

O presidente pede que retornemos às ruas. Numa democracia crítica, elegemos governantes, mas não somos passivos a ele. Devemos interrogar a política com nosso poder de juízo, nossa capacidade de pensar. A diferença de opiniões é cívica e deve alastrar-se como um vírus, deve ser contagiosa, pois as pessoas têm o direito à vida frente aqueles que defendem o intolerável. Não atender ao pedido do presidente é uma declaração de humanidade.

Desobediência civil para salvar vidas, é preciso ficar em casa. (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Desobediência civil para salvar vidas, é preciso ficar em casa. (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
A guerra contra o vírus

Estamos em guerra contra o coronavírus: nossa casa é o novo bunker na cidade que se tornou espaço sanitário-militar. Aqui, tudo se torna ponto de referência na guerra contra o vírus. Deixamos de cruzar a linha Maginot para deixar de cruzar a rua para evitar aglomeração. Substituímos as fortificações pelos hospitais, pontos de referência em meio ao caos.

A valorização da casa e do hospital é a base deste pensamento sanitário-militarizado. Hoje, o Bunker Archéologie, primeira obra de Paul Virilio, serve de inspiração para a nova cidade de concreto erigida pela pandemia, composta de farmácias, hospitais e mercados, futuro da cidade se não pararmos a destruição dos habitats naturais. O que vem primeiro nas cidades brasileiras: o comércio ou a guerra? Para a maioria dos historiadores, nossas capitais litorâneas eram produto de seus portos comerciais. Mas para alguns, entre os quais me situo, nossas cidades nascem da guerra, como em Porto Alegre, onde seu êxtase é Guerra Farroupilha.

Estamos sempre nos preparando para a guerra. No passado, Porto Alegre isolou a cidade dos farroupilhas. Hoje, isolamos nossas cidades dos vírus. “O fenômeno geral não é a economia, é a guerra”, diz o arquiteto Sylvere Lotringer. Mas tanto ontem como hoje, a logística transforma a economia e por essa razão, o que conta não é a batalha, mas sua preparação.

Por isso as próximas duas semanas são essenciais. Não voltar às ruas, como pede o presidente, mas ao contrário, ficar em casa, resguardar-se. É nossa preparação para a guerra contra o vírus. Não é notável que o próprio ministro da Saúde use a mesma estratégia da guerra antiga, onde, diz Paul Virilio, a defesa não consistia em acelerar, mas em retardar? É isso que queremos com o isolamento, retardar o avanço do vírus para preservar a nossa verdadeira fortaleza, nosso sistema de saúde. Se a muralha que cercava Porto Alegre até 1845 caracterizava a cidade como fortificação, seu equivalente só encontra paralelo na imagem das antigas Santas Casas de Misericórdias das cidades e suas enfermarias.

Esperança

Mesmo neste período de grande dor, existe uma esperança. O coronavírus é uma ameaça à vida, mas ele também mostra como ela pode ser. No meio da pandemia, dezenas de iniciativas de cuidado, ações de pessoas desconhecidas que estão à procura do que faz bem, sinalizam uma orientação ética em um momento de perigo.

Em primeiro lugar, descobrimos a importância de cuidar dos idosos. Aqui a ética está no desejo de promover uma vida boa e não o lucro, desenvolvendo posturas que condensam o cuidado: sentimo-nos responsáveis, compartilhamos o essencial com o outro.

Você está em perigo mas sente-se responsável pelo outro. Respondere significa responder a um chamado, a uma necessidade. Aprendemos a ficar disponíveis, o bem-estar do outro importa. Você se preocupa com seu vizinho, você está atento se seu comportamento representa perigo para ele e para os demais. Você sabe da fragilidade do outro, sua vulnerabilidade em seu corpo doente e em sua mente ansiosa.

Em segundo lugar, descobrimos que só a troca contínua de cuidados torna a vida possível, como diz Luigina Mortari em “Filosofia do Cuidado” (Paulus, 2018). O cuidado é o pedaço ontológico que liga o existir como coexistir. Cuidar é uma necessidade do ser. Somos todos frágeis e precisamos compartilhar essa condição. Tivemos a vida toda para isso, mas foi preciso o coronavírus para dar a oportunidade de agir pelo outro.

Vivendo este momento difícil da existência, o cuidado é vivido como atenção à doença. Ajudamos o outro a sobreviver, e com isso, descobrimos as possibilidades do outro, do vizinho, do amigo, do familiar e do desconhecido. Só há uma coisa que supera a paixão pelo lucro que nos trouxe a este abismo social da desigualdade: a paixão pelo bem, fonte e energia propulsora que se alimenta pelo sentir-se tocado pelo outro. Você dispensa sua empregada e mantém seu salário, se preocupa com o que está ocorrendo numa comunidade da periferia.

Pensávamos que estávamos afogados no neoliberalismo, no seu egoísmo para com o outro. O consumismo é incomparável à empatia e compaixão. Após o coronavírus, ninguém poderá duvidar que é a solidariedade, e não o dinheiro, que tem valor na existência. Na guerra do passado, a cidade capturada era uma cidade exterminada. Na guerra sanitária atual, a sobrevivência depende da capacidade de médicos orientarem as decisões políticas, da inteligência sanitária exercer o poder e da ampliação de nosso senso de solidariedade em relação ao outro. O momento é difícil, mas há esperança. Nossos cidadãos, nos próximos dias, devem cumprir com seu papel com a pólis, e ao contrário do que diz o presidente, devem ficar em suas casas, ajudar ao próximo e cuidarem de si.

Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus, 2018). É colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.



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