Não às patentes de seres vivos
Apesar de acossados por dívidas e pressionados pelo lobby das transnacionais da biotecnologia, os países africanos acabam de aprovar uma lei-modelo que rejeita a transformação dos seres vivos em mercadorias. O debate internacional sobre o tema vai esquentar ainda maisFranck Seuret , Robert Ali Bric de la Perrière
Esta é uma história doce que deixa um gosto amargo. Uma história de patentes que se torna de pirataria. Em 1995, a Universidade de Wisconsin depositou quatro patentes sobre a brazeína, uma proteína super-açucarada que pesquisadores isolaram da vagem de uma planta encontrado no Gabão. A partir de então ela passou a negociar licenças de exploração com diversas empresas de biotecnologia. Um de seus objetivos é o de vir a introduzir em frutas e legumes um gene produtor da brazeína a fim de obter alimentos de gosto adocicado, porém mais pobres em calorias. Anunciam-se magníficos lucros. Menos para os camponeses do Gabão que não verão um único centavo proveniente da exploração da planta. Planta cujas propriedades eles conhecem de longa data, da qual eles sempre se utilizaram e que por conta de seus modos de vida e práticas culturais, contribuíram a preservar, de geração a geração.
O caso do brazeína não tem nada de excepcional. A cada ano, patentes são depositadas por empresas ou universidades dos países do Norte sobre plantas cultivadas ou utilizadas em países do Sul. Sem acordo entre as partes envolvidas nem qualquer contrapartida financeira. É para por um fim a esta biopirataria que a Comissão Científica, Técnica e de Pesquisa da Organização da Unidade Africana (OUA) redigiu uma “lei-modelo” sobre “a proteção dos direitos das comunidades locais, dos agricultores e extratores e sobre as normas de acesso aos recursos biológicos”.
Um esquema para unificar posições
A legislação introduz um “sistema apropriado de aceso aos recursos biológicos, aos conhecimentos e tecnologias das comunidades, sob a ressalva de um consentimento formal prévio por parte do Estado e das comunidades locais envolvidas” bem como “mecanismos visando a uma divisão justa e equânime” das vantagens obtidas da utilização comercial destes recursos.
Esta lei cria, de maneira original, uma relação entre o recurso e a inovação, definindo, paralelamente às normas de acesso e aos direitos dos camponeses, um sistema visando proteger os direitos de propriedade intelectual dos selecionadores de variedades vegetais que as tenham criado. Um sistema muito menos exclusivo que a patente e que garante direitos também aos utilizadores das variedades vegetais protegidas. A lei foi concebida como um esquema que permite aos Estados africanos unificarem suas posições. Discutida e adotada numa reunião da OUA em Addis-Abeba (Etiópia), em novembro de 1999, uma versão definitiva foi recentemente apresentada, e servirá de base a um debate entre os Estados, organizações regionais (Organização Africana da Propriedade Intelectual, Agência Africana de Biotecnologia etc.) e organizações não-governamentais.
Convenção sobre a biodiversidade
O avanço das biotecnologias acabou transformando os países do Sul em gigantescas áreas de prospecção. Suas terras são verdadeiras minas de genes de interesse, que são a matéria-prima para empresas norte-americanas, européias ou japonesas… mas não africanas. Pois se uma grande parte dos recursos genéticos interessantes se encontram no Sul, a tecnologia, as plataformas genômicas e as patentes são elaboradas no Norte. Existem todas as condições para que se pratique de novo uma relação de trocas desigual. E foi para tentar reequilibrar os termos desta relação de trocas que a OUA redigiu a lei modelo.
Uma legislação cujo fundamento jurídico se apóia na Convenção sobre a Biodiversidade (CDB) adotada em 1992, no Rio, por ocasião da Cúpula da Terra. A convenção define três eixos fundamentais. Primeiro, reconhece aos Estados o direito de soberania sobre seus recursos biológicos e genéticos, até então considerados patrimônio comum da humanidade, e estipula que o acesso aos recursos será submetido ao consentimento prévio por parte dos Estados envolvidos. Segundo, exige dos signatários que protejam e garantam os direitos das comunidades, dos agricultores e dos povos autóctones sobre seus recursos biológicos e seus sistemas de saber. Terceiro, pleiteia uma partilha equânime dos benefícios obtidos com a utilização comercial dos recursos biológicos e dos conhecimentos das comunidades nativas. E este pode ser o principal interesse desta convenção: reconhecer, enfim, o papel maior dos agricultores comuns na preservação da biodiversidade.
Direitos de propriedade intelectual
A lei modelo da OUA foi concebida com esse espírito, que estipula que o “acesso a todos os recursos biológicos e/ou conhecimentos ou tecnologias das comunidades locais em todas as partes do país deverá ser submetido a um pedido para obtenção do consentimento formal prévio e uma autorização escrita”. Esta licença será concedida por uma “autoridade nacional competente”, desde que o Estado e as comunidades locais envolvidas tenham ambos dado seu assentimento. O texto prevê igualmente que a “autoridade” fixará uma quantia de royalties devidos pelo selecionador que irá desenvolver uma variedade a partir de um recurso biológico do país. Os royalties, calculados com base no resultado das vendas desta nova variedade, serão destinados a um fundo que financiará projetos elaborados pelas comunidades locais com um objetivo de “desenvolvimento, de conservação e de utilização durável dos recursos genéticos agrícolas”.
A legislação da OUA não se contenta em regulamentar o acesso aos recursos biológicos. Define igualmente um sistema de proteção de direitos de propriedade intelectual dos selecionadores de novas variedades vegetais. A implementação desta lei responde às exigências do Acordo sobre Aspectos Comerciais do Direito de Propriedade Intelectual. Esse texto internacional, assinado em 1994 em Marrakesh, obriga os países da Organização Mundial do Comércio (OMC) a se equiparem com um sistema de proteção desses direitos. “Uma patente poderá ser obtida para qualquer invenção de produto ou procedimento” estipula o artigo 27.1. É claro que a OMC permite aos Estados a possibilidade de “excluirem do sistema de patenteamento vegetais e animais que não sejam microorganismos”. Mas exige que seja prevista “a proteção das variedades vegetais por patentes, ou por um sistema sui generis [ou seja, um sistema adaptado a cada circunstância específica] eficaz, ou pela combinação de ambos”.
O “privilégio do lavrador”
Se é assegurado aos selecionadores a proteção de seus direitos sobre a propriedade intelectual, o sistema sui generis definido pela OUA é muito menos exclusivo que o das patentes. Contrariamente a este último, reconhece ao agricultor o direito de conservar uma parte de sua colheita para replantá-la no ano seguinte sem ter que pagar qualquer licença: “o privilégio do lavrador”. Esse espécime pode também ser utilizado livre e gratuitamente como recurso genético por pesquisadores que queiram criar um novo espécime: é a isenção da pesquisa.
O sistema sui generis proposto pela OUA é portanto bem mais adaptado à situação africana que o da patente ou o do direito de obtenção vegetal da União para Proteção de Obtenções Vegetais (UPOV), outro sistema sui generis ao qual aderiram diversos países, ocidentais em sua maioria. Na realidade, enquanto os agricultores dos países industrializados, tecnicamente bem assessorados, se acostumaram a armazenar sementes, a cada ano, junto a fornecedores, a imensa maioria dos camponeses africanos, que não dispõem de qualificação técnica nem de meios financeiros para adquirir os insumos, reservam parte de suas colheitas para o ano seguinte. Portanto, eles têm necessidade de conservar “o privilégio do lavrador”. Ainda mais porque, nos países em via de desenvolvimento, são principalmente os próprios camponeses, pequenos lavradores ou mesmo a pesquisa pública que seleciona e melhora as sementes, e não grandes grupos dos quais são dependentes os agricultores do Norte. Daí a importância de conservar uma “isenção da pesquisa” forte.
Hostilidade norte-americana
Resta saber se este sistema sui generis será reconhecido como “eficaz” pela OMC. Os países africanos esperam aproveitar a revisão do Acordo sobre os Aspectos Comerciais de Direitos de Propriedade Intelectual, previsto para este ano, para fazer evoluir o texto da OMC no sentido de uma melhor adequação à sua lei modelo. Não se contentam com a possibilidade de excluir do patenteamento os vegetais e animais conforme permite o artigo 27.3. Querem que o acordo da OMC proíba as patentes sobre seres vivos. “O processo de exame deveria permitir especificar que vegetais e animais, bem como os microorganismos e todos os outros organismos vivos, assim como suas partes, não possam ser patenteados”, afirmam, num comunicado dirigido ao secretariado da OMC. [1]
O grupo africano deseja também obter mais garantias sobre a possibilidade de implantar seu próprio sistema sui generis. Avaliam que o termo “eficaz”, que consta do artigo 27.3b, é muito genérico, e exigem que “o acordo especifique que toda lei sui generis possa conter dispositivos visando proteger as inovações de comunidades autóctones e de comunidades agrícolas nativas dos países em desenvolvimento (…) e preservar as práticas agrícolas tradicionais, entre elas o direito de conservar e de negociar as sementes, bem como de vender suas colheitas”. Essas posições encontram a hostilidade de vários países industrializados, com os Estados Unidos à frente. Seu objetivo final: conseguir a supressão da cláusula do acordo sobre os ADPIC que permite “excluir do patenteamento os vegetais e animais”. Enquanto aguardam, desejariam já poder contar com a garantia de que somente o direito de obtenção vegetal (DOV) da UPOV pudesse ser reconhecido pela OMC como sistema sui generis “eficaz” para os espécimes vegetais.
O rolo compressor das patentes
Ao longo dos dois últimos anos, o lobby das patentes — cujos mais ardentes defensores são os Estados Unidos, a indústria das “ciências da vida” e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) — multiplicou contatos e reuniões para persuadir os países africanos a aderirem ao UPOV. Não sem sucesso. Na verdade, a UPOV foi adotada pelos representantes dos países francófonos da Organização Africana da Propriedade Intelectual, em anexo aos acordos de Bangui de fevereiro de 1999, uma legislação muito próxima do DOV. Esta adoção apressada — sob a pressão dos países do Norte — não se coaduna com a lei-modelo da OUA. Ela é bastante contestada e a maioria dos países membros da OAPI não a ratificaram.
Face ao rolo compressor do sistema de propriedade intelectual, que procura desenvolver a expansão e a unificação do sistema da patente em todo o planeta, o projeto de lei da OUA poderia parece insignificante. Os países africanos estão exauridos, atolados em dívidas, às voltas com conflitos internos… Seus representantes são normalmente esquecidos em negociações internacionais, deixados do lado de fora do green room da OMC, onde se dão as discussões sérias…
Uma posição de vanguarda
E no entanto, os acontecimentos dos últimos meses permitiriam supor que a OUA representa a vanguarda. Não apenas por oferecer uma ocasião única de elaborar uma posição comum a todo o continente, útil nos grandes fóruns internacionais. Mas também porque, estipulando que “as patentes sobre forma de vida e sobre procedimentos biológicos não são reconhecidas”, ela afirma uma forte posição moral dos governos africanos face a uma deriva do direito internacional que não pode mais ser contida. [2] Vinte anos depois que a Corte Suprema dos Estados Unidos rompeu o tabu reconhecendo o patenteamento de uma bactéria, a corrida ao controle dos direitos exclusivos sobre os produtos de biotecnologia estendeu-se aos organismos vivos e está a um passo de alcançar o ser humano.
A posição da OUA e do grupo africano da OMC em favor da exclusão do campo de patenteamento de todas as formas de vida é a única coerente. O código genético não é universal? Como se poderia pretender limitar a patente a uma categoria de organismos — como o faz a OMC, que deixa aos países-membros a possibilidade de excluir os vegetais e os animais do patenteamento, porém não os microorganismos, nem, sob certas reservas, os espécies vegetais — enquanto a engenharia genética faz apagar barreiras entre as espécies, entre os reinos?