“Não há nada de errado conosco, vamos planejar algo juntas”
Entrevista exclusiva com os professores Fred Moten e Stefano Harney, autores do livro Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro, lançado no Brasil, em 2024, pela editora Ubu
A presente entrevista é um convite para a leitura e a socialidade suscitada pelo livro Sobcomuns: planejamento fugitivo e estudo negro, de Fred Moten e Stefano Harney, publicado em 2013 nos Estados Unidos e, após uma década, lançado no Brasil, em 2024, numa edição cuidadosa da editora Ubu.

Créditos: editora Ubu
Fred Moten e Stefano Harney são, sobretudo, professores universitários. O primeiro, doutor em Letras pela Universidade da Califórnia, é professor na Universidade de Nova York. O segundo, doutor em Ciências Sociais e Políticas pela Universidade de Cambridge, é professor na European Graduate School, tendo ambos passado por diferentes instituições universitárias. Também transitam fora da universidade, com destaque para a participação em diferentes grupos de estudo, incluindo o Le Mardi Gras Listening Collective, mas é a universidade o ponto de partida ou território existencial de suas análises dialógicas, sendo o livro Sobcomuns sua obra inaugural, fruto de uma amizade iniciada ainda quando eram estudantes de graduação na década de 1980 em Harvard.
Os ensaios que compõem o livro começaram a ser escritos em 2003, em confluência com o movimento antiguerra diante da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, sendo concluídos em 2012, num momento de grande revolta frente ao assassinato de Trayvonn Martin na Flórida, além das manifestações e acampamentos insurgentes desse mesmo período. O livro foi publicado em 2013, ano de deflagração do movimento internacional Black Lives Matter, Vidas Negras Importam.
Nesse sentido, Sobcomuns foi gestado para refletir sobre o que estava acontecendo naquele período nos Estados Unidos, sem se limitar a esse Estado-nação. Essa análise passa a ser situada pelo simples fato de a universidade ser o local de trabalho em que estavam quando essas coisas aconteciam, ao mesmo tempo em que se propuseram a pensar as condições do trabalho acadêmico, procurando sobretudo entender como a universidade “nos profissionalizou, nos isolou e nos capturou”, evocando uma passagem da entrevista. Nas palavras de Denise Ferreira da Silva, “Sobcomuns é uma intervenção poderosa e necessária que nos convida a imaginar e realizar a vida social e a configuração neoliberal da universidade atual de outra maneira”.
Em entrevista exclusiva ao Le Monde Diplomatique Brasil a respeito da publicação do livro Sobcomuns no Brasil, Fred Moten e Stefano Harney falam sobre a tradição radical negra, o contexto de criação do livro, o fundamento do trabalho colaborativo, os conceitos mobilizados, os perigos da individuação, a abolição da universidade, a tradução de seus livros, as continuidades e descontinuidades entre eles, bem como os projetos em curso e porvir, com destaque para o educador Paulo Freire.

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Sobcomuns é o primeiro livro de vocês, fruto de uma amizade de longa duração e que se insere na chamada tradição radical negra norte-americana. Vocês poderiam introduzir, para o público brasileiro que têm em mente outra tradição radical negra, os termos desse pertencimento considerando o arcabouço conceitual mobilizado por essa obra inaugural?
Obrigado por essas perguntas instigantes, Paulo. Nós pegamos o termo tradição radical negra de um de nossos mentores, Cedric Robinson. No entanto, de onde ele extrai o termo? Se olharmos para a vida e trabalho de Robinson, podemos compreender essa questão. Ele era um internacionalista dedicado e pan-africanista e, portanto, também um anti-nacionalista. Para ele, e para nós, as tradições nacionais são artefatos coloniais. Em sua obra magistral Black marxism: the making of the black radical tradition, Robinson inicia seu estudo na Irlanda, traçando a história do racismo europeu que seria epidermalizado no comércio de escravizados do Atlântico. Essa virada perversa do racismo europeu cristaliza e denomina uma nova forma de negritude, agora ligada aos povos da África subsaariana. Essa negritude, que era tão internacional e anti-nacional e antenational quanto seu povo desde o início, torna-se a forma central de resistência no mundo moderno, ao que Robinson chama de capitalismo racial. Torna-se, como às vezes dizemos, a alternativa presente.
Se continuarmos com o estudo de Robinson, descobriremos três figuras internacionalistas, W.E.B. Du Bois, C.L.R. James e Richard Wright. Du Bois é uma figura proeminente no movimento pan-africanista pela libertação. James era trindadense e, como seu amigo de infância George Padmore, outra figura proeminente no pan-africanismo. E, como Du Bois, James foi ao mesmo tempo um dos pensadores mais importantes do século XX sobre o marxismo e as lutas pela libertação. Du Bois inicia sua carreira nos Estados Unidos, em si um construto colonial que tenta negar sua própria multinacionalidade, multilinguismo e multiculturalismo internos, e encerra sua longa vida na recém-independente Gana. James deixa o Caribe pela Grã-Bretanha, depois para os Estados Unidos e eventualmente retorna para se organizar em Trinidad, antes de passar seus anos em Londres. A terceira figura, Richard Wright, escreve The colour curtain, um relatório envolvente e entusiasmado da Conferência de Bandung, na Indonésia. Ele viveu sua vida na França e, apesar das imensas pressões, permaneceu firmemente anti-americano. Em relação ao próprio Robinson, ele não apenas viveu e trabalhou parte de sua vida na África do Sul, mas foi explícito em encontrar seu termo chave, capitalismo racial, nesse ambiente. Ele foi uma figura central na revista britânica Race and Class e, juntamente com sua parceira Elizabeth Robinson, uma jornalista radical, Robinson fundou e dirigiu o Third World News por décadas, um órgão que promovia o internacionalismo e a solidariedade anti-nacionalista.
Tudo isso para dizer que o termo tradição radical negra não denota um arcabouço nacionalista, seja nos Estados Unidos ou no Brasil, para aqueles que o utilizam. Porque não pode. E não pode precisamente porque respeita as diferenças no tom e tenor da alternativa radical presente, como fazemos, e, de certa forma, a ideia de uma tradição nacional nunca pode. Temos o maior respeito pelas várias manifestações da tradição radical negra no Brasil e sempre queremos aprender mais sobre ela, mas fazemos isso contra a ideia de uma tradição radical negra “brasileira” ou “americana”.
Antes de retomarmos o arcabouço conceitual mobilizado por vocês, gostaria de perguntar algo sobre a composição heterogênea deste livro, que se esforça, dentre outros, em pensar a universidade e suas personagens, a partir dos Estados Unidos atentando para o sequestro e gerenciamento do campo da educação por aquele da logística, dos negócios e do capital. Como ele foi imaginado e porque tomou essa forma? O livro é dedicado ao mentor e professor de vocês em Harvard na década de 1980, Martin L. Kilson (de quem retirei parte do título dessa entrevista: “não há nada de errado conosco”) e se inicia com um prefácio (ou capítulo zero, na edição original), escrito pelo ativista e filósofo Jack Halberstam. Seguem seis ensaios escritos de forma colaborativa por vocês, com destaque para aquele intitulado “A universidade e os sobcomuns” e termina com uma longa e vibrante entrevista com Stevphen Shukaitis, do coletivo editorial Autonomedia. Como se deu esse ajuntamento coletivo, nada usual nem casual, em forma de livro? Destaca-se ainda que a presente edição brasileira (2024) foi acrescida de um posfácio de Denise Ferreira da Silva, além de uma importante Nota da tradução assinada pelas tradutoras.
As pessoas que você menciona nesta questão tornaram esse pensamento e este livro possível para nós de uma forma ou de outra, e fizeram isso, antes de tudo, como nossos amigos. Todos eles não apenas nos mostraram outra forma de viver, mas nos permitiram nos aperfeiçoar nesses caminhos. Por exemplo, o professor Martin L. Kilson e sua parceira Marion Kilson nos acolheram não apenas em suas casas, mas no modo como viviam suas ideias, paixões e compromissos. Eles nos fizeram dizer simplesmente: é assim que devemos viver.
O livro em si é mais um relato do campo — ou, como James Baldwin já disse, “território ocupado” — do que uma monografia. Foi escrito no meio de uma luta em andamento e não na contemplação distante. E a luta se moveu, sua linha de frente mudou. Quando começamos a relatar, pensávamos que nosso adversário era a universidade, conforme a experimentamos no contexto específico colonial e imperial de um Estado-nação que tinha a arrogância de se chamar Estados Unidos da América. Mas nesse ponto, Stefano já estava lecionando em Londres e terminaríamos o livro enquanto ele lecionava em Cingapura, então os contextos colonial e imperial variaram até mesmo naquela época. Na primeira fase dessa luta — que nada mais era do que a nossa parte nas longas guerras contra a subsistência, contra a memória e contra a contra-insurgência, como nossos amigos Manolo Callahan e Annie Paradise sempre nos lembram — procuramos entender como a universidade nos profissionalizou, nos isolou e nos capturou. A forma que colocaríamos isso agora é perguntando: como o estudo negro se tornou estudos negros? Ou seja, como essas práticas de reunião insurgente, sensível e intelectual que Clyde Woods chamou de “universidades do blues”, e que nós chamamos de estudo negro, foram reduzidas a, ao se tornar um objeto de, uma disciplina acadêmica? E como poderíamos deixar de ser agentes disso? Contudo, gradualmente nosso foco mudou, e vimos que a luta não era lutar contra a universidade, ou pelo menos não mais do que era absolutamente necessário, mas sim como recriar aquelas universidades do blues em nossas circunstâncias, circunstâncias em que tínhamos sido alienados delas, como as conhecíamos desde a infância. E vimos que o principal mecanismo dessa alienação era nossa individuação. E, por sua vez, essa individuação nos colocou na posição estrutural do que agora chamamos, segundo o grande pensador e (des)organizador guianense Andaiye, de traição. A individuação se tornou para nós um lugar de luta neste livro e ainda mais em nosso próximo livro, enquanto buscávamos evitar essa traição dada na estrutura de nossa posição.
É provável que vocês sejam sempre indagados sobre o fato de escreverem juntos, isto é, realizarem um trabalho colaborativo que desloca um certo individualismo que impregna o trabalho autoral e individual frequentemente associado à escrita literária e acadêmica (com exceções). Sobre a amizade, o estudo, a troca de ideias e o risco da escrita compartilhados, na entrevista com Stevphen Shukaitis, Fred Moten afirma que tudo que Stephano Harney diz funciona para ele também, ecoando uma frase enigmática e belíssima de Zora Neale Hurton: “minha língua é a boca do meu amigo”. Vocês poderiam comentar algo sobre essa prática bicéfala que vocês têm planejado e experimentado?
Olhando para trás, sempre houve algo estranho sobre nossa amizade. Hoje, provavelmente diríamos que essa qualidade inquietante era uma intuição sobre a importância de ajudar um ao outro a permanecer incompleto, como diria Cedric Robinson, inacabado no sentido de Paulo Freire, não de estar a caminho de ser concluído, mas de permanecer na humildade do inacabado. Algo que compartilhávamos nos impedia de reivindicar nossa propriedade individual. Todavia, ao mesmo tempo, também nos impedia da brutalidade de imaginar que éramos iguais. A prática da escrita é uma extensão dessa condição. É frutífera por nos ajudar a evitar a individuação, dadas as estruturas e instituições nas quais lutamos. Mas também é instrutivo, às vezes, ver a resistência à nossa prática. Alguns querem nos separar, nos distinguir, talvez porque isso os deixe desconfortáveis com seus próprios projetos de individuação e identificação. Não podemos dizer ao certo, mas vemos isso frequentemente. Mais generosamente, as pessoas muitas vezes compartilham conosco suas próprias práticas comuns, coletivas ou multifacetadas, e isso é um presente.
Um dos pontos a ser considerado após a leitura do livro diz respeito ao modo como todo um arcabouço de conceitos é mobilizado, digamos, a contrapelo e, como vocês sugerem, ao modo de uma caixa de ferramentas ou de brinquedos. Destacam-se, em primeiro lugar, o conceito de “antagonismo geral” que atravessa o trabalho de vocês e parece ser uma das condições para a existência de outros conceitos, dentre eles, sobcomuns, planejamento, fuga, negridade, estudo negro e embarcados, além de conceitos que deverão ser desmobilizados e desfeitos a contraponto, por exemplo, governança, diretivas (policy) e logística, dentre outros. Após treze anos desde a formulação desses conceitos, como eles têm envelhecido, sei que a tarefa não é fácil nem prazerosa, mas vocês poderiam re-apresentar os conceitos de “antagonismo geral” e “sobcomuns” na economia geral do livro para que o público brasileiro deseje engajar na leitura e socialidade que o livro suscita?
Muitas vezes nos perguntamos se foi necessário criar o termo sobcomuns, e se causa mais confusão do que vale a pena, especialmente por parecer designar um lugar. Entretanto, na época estávamos tentando mobilizar algo, como você disse, contra um contexto intelectual específico, e em busca de nossas universidades do blues. Havia a ideia de que a modernidade produzira o público e o privado dividindo os bens comuns em e entre a propriedade e o Estado. Mas e aqueles excluídos, mas necessários a essa divisão? Pareceria improvável que um retorno aos bens comuns fosse a solução, como pareceria para aqueles que foram exaltados e reduzidos por seu status como cidadãos ou trabalhadores. No entanto, não queríamos pensar nos sobcomuns apenas como exceção, ou como o efeito de um estado de exceção constante. Também queríamos mobilizar uma longa tradição, ubíqua mesmo em seu enterro. Mais precisamente, queríamos deixar que ela nos mobilizasse. E assim pensamos nos sobcomuns e sua prática acompanhante de estudo negro como um lugar de ensaios e revisões fugazes e intermináveis, não apenas de um modo de viver diferente, mas de um modo de ser diferente juntos, entrelaçados a ponto de o ser ser inseparável do ter, e o ter desaparecer na partilha.
De forma mais geral, os termos que você menciona têm sido incrivelmente recompensadores, porque geraram tantas conversas, amizades e encontros. Dessa forma, nunca nos cansamos deles. E continuam gerando coisas para nós. Por exemplo, o termo antagonismo geral, que é credor, mas desviante, da distinção de Frank Wilderson entre antagonismo e conflito, nos levou recentemente a fazer outra distinção entre violência – ou antagonismo geral – e brutalidade, uma interdição viciosa contra a proliferação do antagonismo geral. Em vez de aceitar o acordo colonial e burguês que coloca coisas como cuidado e violência ou amor e ódio em lados opostos, queremos seguir a tradição radical negra ao dizer que cuidado e violência estão ligados um ao outro, já que o cuidado envolve esforços às vezes violentos para ajudar uns aos outros a se desintegrarem diante das demandas psicóticas da individuação e suas fantasias. Ao mesmo tempo, a brutalidade pode ser distinguida como o cumprimento da individuação, produzindo o corpo individual (morto). Portanto, os termos, graças àqueles com quem interagimos, continuam a funcionar para nós.
Voltemos às universidades para que também possamos sair delas. Vocês costumam dizer que começaram a pensar a universidade porque se formaram e estavam trabalhando nela, se interessavam portanto em pensar as próprias condições do trabalho acadêmico em que estavam inseridos, mas também devido a uma espécie de desconforto geral. Dentro e contra a universidade, nos termos de vocês. Treze anos após a publicação do livro, qual é o clima (de trabalho e estudo) nas universidades estadunidenses hoje, algo mudou, piorou? Ainda que a universidade tenha sido o ponto de partida de seus estudos, vocês também estiveram ou estão engajados em projetos e coletivos que transitam fora dela. Vocês poderiam falar um pouco sobre esse trânsito entre o dentro e o fora da universidade?
Começamos os ensaios que compõem este livro em 2003, em meio ao movimento anti-guerra contra a iminente invasão do Iraque pelos Estados Unidos e seus aliados, e terminamos o livro em 2012, o ano em que Trayvon Martin foi assassinado em um ato de vigilantismo na Flórida. De muitas maneiras, a universidade era apenas o local de trabalho em que estávamos enquanto essas coisas e muitas outras aconteciam. Quando dissemos que devemos estar dentro e contra a universidade, também dissemos que devemos estar com e a favor dos estudantes, em uma espécie de opção preferencial por qualquer um que tentasse estudar juntos. Entretanto, eventos recentes nos ajudaram a perceber que estar a favor dos estudantes talvez fosse um erro em nossa prática. Subestimamos o grau em que mantivemos o papel de gerentes dos estudantes em nome da universidade, incluindo, ou talvez principalmente, quando tentávamos estar a favor dos estudantes. E agora sabemos que ainda éramos gerentes, porque nossos trabalhadores entraram em greve! A recente proliferação de acampamentos insurgentes – que não é mais apenas um fenômeno americano; a proliferação do modelo universitário liberal/fascista corporativo é que é um fenômeno americano – nos demonstrou que os estudantes não precisavam que estivéssemos a favor deles. Eles precisavam que saíssemos do caminho, e só então poderíamos ter a chance de estar com eles. Podemos agora admitir que toda tarefa, toda nota, mesmo as notas A, toda leitura obrigatória é uma ferramenta de gestão e é experienciada assim pelos estudantes, independentemente do conteúdo da aula. A forma é gestão e nenhuma quantidade de literatura libertadora, “atribuída” com as melhores intenções, pode evitar esse destino totalmente liberal. Então, isso mudou para nós. Portanto, estar engajado em projetos e coletivos fora da universidade, como você corretamente nota, tem sido parte de nossa peregrinação em busca de uma prática melhor, uma busca constante e experimentação com nossa forma de reunião e dispersão, nossa forma de estudo.
O posfácio de Denise Ferreira da Silva na edição brasileira nos permite vislumbrar a confluência, com e a favor, que os sobcomuns são e serão capazes de empreender com o que já acontece e o que está por vir no Brasil a partir da tradução tardia mas comemorada do primeiro livro de vocês. Destaco o trabalho da multiartista e escritora Jota Mombaça e seu livro Não vão nos matar agora (Cobogó, 2021) que, de certa maneira, antecipou, como parte da tradição radical negra no Brasil, essa provável confluência com o planejamento e estudo negro proposto por vocês. Creio que Stephano Harney conhece melhor o contexto ou o racismo brasileiro que Fred Moten, vocês guardam alguma expectativa em relação à recepção dos livros e ensaios de vocês quando publicados em outros países? E no Brasil?
A tradição radical negra nos ensina que a comparação pode ser prejudicial, promovendo tanto a individuação quanto a desmaterialização. Então, gostaríamos de falar sobre isso de outra maneira, o que é um desafio dado às convenções. E gostaríamos de abordar essa questão como internacionalistas, retornando à discussão anterior. Nas diferentes manifestações da tradição radical negra, há diferentes perigos e diferentes resistências. Stefano tem aprendido com seus amigos no Brasil e somos, há muito tempo, estudantes de nossa amiga Denise Ferreira da Silva, e não apenas neste aspecto. Pensando sobre o perigo – a confluência da colonialidade e da antinegritude – no Brasil, uma coisa nos chama a atenção, que é a reivindicação mais geral que muitos brasileiros “brancos” fazem sobre a herança africana do Brasil, e não apenas através do Carnaval. Este é um perigo insidioso porque é a verdade. É verdade tanto no sentido específico quanto no geral. Especificamente, que a cultura e a vida social brasileiras são em grande parte derivadas da vida social, cultural e espiritual africana, apesar dos esforços incessantes do colonizador, e é verdade em geral porque, como Wilderson coloca de forma sucinta, “sem escravo, sem mundo”. Porém, essa verdade é constantemente falsificada pela brutalidade policial e miliciana contra os negros brasileiros, pela imposição brutal da pobreza sobre os negros brasileiros e pelo fetichismo libidinal, especialmente contra os corpos das mulheres negras brasileiras.
Enquanto o perigo do fetichismo parece ser diferente do perigo da negação, que é mais enfático e típico do Estado-nação em que nascemos, sua mistura assimetricamente variada pode gerar um terceiro perigo que reconhecemos, na medida em que tanto o fetichismo quanto a negação da negritude são compatíveis com a insidiosa negação da anti-negritude. Em resposta a esse perigo, os negros aqui e ali podem reivindicar a negritude como propriedade exclusiva, sujeita às formas de individuação, extração, mercantilização e securitização às quais toda propriedade é suscetível. Há muito tempo vemos, e para nossa consternação há muito tempo estamos envolvidos, como as artes são especialmente terreno fértil para esse desenvolvimento plantation – por mais que se pretenda ser contra-plantation. Assim, embora raramente se ouça a reivindicação de pessoas “brancas” nos Estados Unidos de que os Estados Unidos são realmente uma nação negra ou que a influência africana está em toda parte, essa verdade é a brutalidade condensada e distorcida – tanto lá quanto no Brasil – através da qual artistas individuais e obras de arte apropriam e expropriam práticas sociais e estéticas negras e/ou dos sobcomuns. A reação, que é sempre absolutamente justificada e sempre absolutamente errada, redobra o que significa negar em sua demanda intencional de possuir a parte em vez de compartilhar o todo. Cada contexto colonial é mortalmente e enfurecidamente único à sua maneira, mas reivindicações de propriedade e posse são uma armadilha. A tradição radical negra é, entre outras coisas, uma rejeição completa da propriedade, da posse e da pertença.
Gostaria de perguntar algo sobre a tradução de seus livros e ensaios. A primeira edição de Sobcomuns, como já revelado, é de 2013. Quando começaram a surgir as primeiras traduções e como tem sido a lida com cada nova inflexão na translação de ideias, palavras e conceitos para outras línguas e contextos? Como tem sido a tradução de seus livros e ensaios para o português e a troca de ideias com as pessoas que assumem essa difícil tarefa? Chamo novamente atenção para a Nota da tradução incluída na edição brasileira de Sobcomuns na qual as tradutoras, Mariana Ruggieri, Raquel Parrine, Roger Farias de Melo e Viviane Nogueira, afirmam terem optado por uma tradução coletiva, tal qual um mutirão, e expõem diversas dificuldades e soluções encontradas nessa tarefa compartilhada, que parece, de fato, ter se tornado uma verdadeira atividade de estudo e tradução.
Sim, sentimos um verdadeiro senso do que você chama de “esforço coletivo”. E somos profundamente gratos à nossa editora Florencia Ferrari por nos reunir com os tradutores. Dissemos aos nossos colaboradores duas coisas que frequentemente dizemos aos tradutores: pensem em nosso livro como já sendo uma tradução, talvez até uma tradução ruim na presença dos antecessores, mas na ausência de um original, e, em segundo lugar, agora é o seu livro e estamos felizes em conversar sobre como ele se torna seu projeto e o de seus leitores. E conversamos sobre isso, aprendemos muito e estamos muito felizes que parte desse processo esteja refletido no ensaio dos tradutores. Agradecemos novamente por sua amizade e nosso estudo comum.
Sua pergunta também é uma oportunidade para notar o problema do desequilíbrio e do subdesenvolvimento da tradução. Com isso queremos dizer, a imposição de acordos comerciais injustos pelos quais os estudos negros baseados nos Estados Unidos estão sendo traduzidos e circulados com mais recursos e atenção do que os estudos negros baseados no Brasil estão sendo traduzidos e circulados nos Estados Unidos e na Europa e, talvez, até no Brasil. Ao longo do caminho, os estudos negros baseados no Caribe são ignorados enquanto os Estados Unidos usam seu poder cultural imperialista para inundar os mercados do Sul Global com produtos. Precisamos lutar juntos para mudar isso.
Considerando o campo educacional como um espaço social em disputa. Em Sobcomuns, o contraste ou diferença entre o que vocês chamam de educação crítica, na qual se destaca o trabalho do acadêmico crítico e a educação profissional é questionado. Já em Tudo incompleto, segundo livro de vocês, publicado em 2021 e traduzido em 2023 para o português pela Glac Edições, é o contraste entre uma educação total e uma educação parcial que ganha fôlego. Vocês poderiam falar um pouco sobre as continuidades e descontinuidades entre um livro e outro?
Sua pergunta é novamente muito perspicaz. Na transição do primeiro para o segundo livro, nos afastamos mais, e esperamos que mais claramente, dos ideais do intelectual crítico ou subversivo e do ativista por duas razões. Primeiro, eles continuam reproduzindo a figura individual do crítico ou ativista que, segundo, continua trabalhando arduamente para reproduzir a universidade. As universidades prosperam com críticas devidamente preparadas e entregues. É como um shake de proteína para elas. E o acadêmico individualizado prospera com a ideia de preparar e entregar essa crítica. Infelizmente, o ativista, não muito diferente do professor, prospera ao falar por aqueles em nome de quem ele afirma entregar e realizar a crítica. Então, buscamos mais enfaticamente abandonar a universidade, abandonando a crítica a ela, o que sempre implica uma demanda, o que sempre implica reforma. A universidade é nosso local de trabalho. É só isso. Recebemos nosso salário dela, porque precisamos do emprego; enquanto trabalhamos para a abolição dela, como os revolucionários trabalham para abolir qualquer local de trabalho. E notamos que os trabalhadores acadêmicos brasileiros estiveram em greve este ano contra seus locais de trabalho, que os estudantes brasileiros estão ocupando seus locais de trabalho, porque é isso que a universidade é para os estudantes, que fazem a grande maioria de seu trabalho, quase todo não remunerado e sob a vigilância disciplinar da gestão, ou seja, do corpo docente. Assim, quando o corpo docente entra em greve, ele também faz greve para sua própria abolição como gestores. Como Silva coloca, “há diferença sem separabilidade”. Trabalhamos para a proliferação dessas diferenças, para o antagonismo geral, mas com o conhecimento de nossas condições inseparáveis, entrelaçadas e compartilhadas.
A primeira vez que li algo sobre os sobcomuns, devo dizer, senti uma conformidade, um conforto, nada confortável, uma espécie de descompressão que me fez sentir acolhido, pois de algum modo sentia que já experimentava uma variação do espaço social aberto pelos sobcomuns. Vocês poderiam falar um pouco sobre esse sentimento de identificação, conformação, adequação, conforto, essa sensação de um espaço seguro e criativo, para, digamos, 99% das leitoras, esse espaço social aberto pelos sobcomuns, sua socialidade possível frente a este mundo moderno e disfórico? Dysphoria mundi, a fim de evocarmos o último livro de Paul Preciado. Cheguei até a pensar, enquanto relia Sobcomuns, que não há nada de errado comigo! Gostaria ainda de registrar que, durante um estágio pós-doutoral no departamento de performance da Universidade de Nova York (NYU) tive a chance de assistir algumas aulas de um curso ofertado por Fred Moten no outono de 2018 sobre performance e a cidade de Nova York que girou em torno de uma autobiografia do escritor estadunidense Samuel Delany. Destaco o modo cordial como fui recebido quando solicitei assistir como ouvinte (não matriculado) suas aulas e uma lembrança contagiante de como elas eram conduzidas.
Talvez haja algo um pouco utópico sobre a familiaridade da disforia compartilhada. Participar do reconhecimento comunitário do inviável, em vez de ser relegado ao confinamento solitário que geralmente aguarda aqueles que querem que tudo seja diferente. Esta comuna em formação não é bem – e não pode ser reduzida a – familiaridade ou reconhecimento mútuo. Como você sugere, o que sentimos neste fazer é algo como o que Kristin Ross chama de “a emergência do espaço social”. Mas há outro ritmo, também. E talvez não haja quase nada das concepções normativas de espaço e tempo que se aplicam na medida em que, neste encontro aberto interminável, que estamos felizes em acreditar que infunde nossa escrita sem se originar nela, não apenas aqueles saltos quânticos vodu hiper-dialéticos que James, pre(dis)figurando Reginald Crosley, fala como o próprio motor da insurgência, mas também as “ações assustadoras a distância” que Einstein imaginou, mas não conseguia acreditar (porque ele não teve a chance de ler Dawn lundy martin) como a própria matéria de nosso encontro e o próprio encontro de nossa matéria, reunindo na diferença o que o capitalismo racial terá separado. Novamente, estamos felizes em poder, de vez em quando, acreditar que podemos compartilhar com os outros o que nossos mentores compartilham conosco.
Para terminar, agradecemos imensamente os livros, os ensaios, os conceitos e o tempo e atenção dados à entrevista. Aproveito a ocasião para divulgar o programa pedagógico Matéria Crítica para Massa Crítica, da Casa do Povo, em São Paulo, que publicou, em 2023, uma coletânea composta por dez cadernos de ensaios, conversas e entrevistas suas que cobrem uma década (2012 a 2023), interstício que marca a publicação de Sobcomuns e os dias de hoje, disponíveis aqui. Resta uma última pergunta, podemos esperar um terceiro livro colaborativo vindo por aí? Se sim, já podem adiantar algo desse planejamento?
Você nos deu a oportunidade de reconhecer nosso estudo comum e de agradecer a todos aqueles que nos acolheram no contexto brasileiro, bem como a todos aqueles que viajaram invisíveis conosco. Fomos muito calorosamente recebidos por nossos camaradas e novos amigos na Casa do Povo quando os visitamos em novembro de 2023. Em nossa viagem, fomos guiados com cuidado, atenção e notável intuição por nosso amigo Amilcar Packer, que organizou e ajudou a traduzir os ensaios e entrevistas que você menciona, junto com nossos amigos Victor Galdino, viniciux da silva e Hilário Zeferino. Esperamos que as entrevistas, em particular, que eles traduziram, nos ajudem a nos explicar com o objetivo de entrar em mais conversas no Brasil. E continuamos a trabalhar com Amilcar, Victor e viniciux em vários projetos e agora nos consideramos parte de um conjunto contínuo no Brasil.
Em breve, haverá um novo livro baseado em duas séries de palestras que demos na Baía de São Francisco e em Frankfurt em 2022, chamado Felicity Street. Mas estamos, de muitas maneiras, tentando estar mais a serviço de nosso estudo comum, respondendo a solicitações, perguntas e convites. Estamos tentando nos afastar, com a ajuda de nossos amigos, do que resta em nós dessa ideia de um programa de pesquisa ou de um corpo de trabalho ou, pior, de uma escola de pensamento. Queremos ser o que Paulo Freire e Ivan Illich chamavam a si mesmos, “peregrinos do óbvio”. Para onde vamos, quem conhecemos, isso é o que faremos.
Paulo Maia é antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Co-fundador e curador do Forumdoc.bh — fórum de antropologia e cinema, festival de cinema realizado anualmente em Belo Horizonte (MG) desde 1997. Trabalha com ensino, pesquisa, gestão e projetos de extensão universitária na intersecção das áreas de antropologia, etnologia, pedagogia, educação escolar indígena e cinema.