Não se nasce bolsominion, torna-se bolsominion
Há uma camada mais profunda e substancial do eleitorado de Bolsonaro que deve ser considerada e disputada: os trabalhadores e trabalhadoras que estão enfrentando uma dura realidade imposta por mudanças no capitalismo brasileiro nos últimos anos
Os movimentos da política que flui no cotidiano das cidades são quase sempre mais interessantes do que os bastidores da política nacional. Eles dizem muito sobre as expectativas, medos e demandas de um eleitorado tão complexo e volátil como o brasileiro. Com o eleitorado de Jair Bolsonaro, não seria diferente.
Dias atrás, sentado no banco de uma universidade em Blumenau (SC), observei um homem jovem, mais jovem do que eu. Como ainda acredito na irresistível força ancestral que rege uma boa e despretensiosa conversa, acabei por puxar papo. Em poucos segundos, e com uma espontaneidade tão admirável quanto contagiante, meu novo e simpático amigo informou que: de origem paraibana, ele trabalhou recentemente como servente nas obras da transposição do Rio São Francisco e agora veio trabalhar em Blumenau, onde estava muito feliz com a conquista de um emprego com carteira assinada na indústria local. Para minha surpresa, após a contagiante apresentação, ele logo emendou: “E esse ano, vai votar em quem? Bolsonaro?”
Como a antropologia do cotidiano me ensinou ao longo da vida, ouvir é um exercício de aprendizagem muito mais profícuo do que argumentar. Sendo assim, despistei meu colega alegando que eu estava indeciso e logo devolvi o questionamento para ouvir mais do que ele tinha a dizer: “E você, vai votar nele?”
Ele afirmou que estava convencido em votar no militar da reserva, mas, deu uma risada ao relativizar: “Ele é muito doido para governar um país, não é? Não dá para resolver tudo no grito…”. Ainda assim, alegou que Bolsonaro seria “o único capaz” de acabar com “essa roubalheira toda” que tomou conta do país, elegendo na sua fala os políticos como os principais inimigos da nação.
Com enorme entusiasmo, ele passou a explicar seu sonho para um Brasil melhor. Neste, o dinheiro desviado pela corrupção seria repatriado, o que permitiria o desenvolvimento de uma malha ferroviária que cruzaria todo o país. Justificou a importância da rede de transportes para a economia a partir da sua experiência de trabalho em obras que precisavam parar por dias até o material chegar. Para tornar a situação ainda mais complexa, o rapaz realizou um relato tão edulcorado quanto emocionado dos tempos de pleno emprego na sua cidade na Paraíba, proporcionados pelas obras da transposição do Rio São Francisco durante os governos Lula e Dilma, ao ponto que sua fala poderia ser utilizada para comover eleitores em uma campanha petista.
Na minha escuta atenta dos seus projetos, era notória a presença de um imaginário nacional-desevolvimentista, capaz de remeter às políticas de Vargas, JK ou mesmo Lula, quem sabe até Ciro Gomes, mas, curiosamente, jamais lembraria a figura de Jair Bolsonaro.
Contraditório? Talvez. Mas não surpreende num país complexo e de proporções continentais como o Brasil. Os sonhos das pessoas de verdade são passíveis de abraçar contradições que a nossa vã ciência política luta por explicar.
Assim, não nos deixemos levar somente pelo barulho que grupos de apoiadores de Bolsonaro fazem nas redes sociais ao exaltar os comentários arcaicos do deputado federal sobre os direitos trabalhistas e individuais das mulheres, sua visão deturpada da realidade das comunidades quilombolas, ou mesmo sua narrativa idealizada e deliberadamente distorcida acerca da ditadura militar brasileira. Há uma camada mais profunda e substancial deste eleitorado que deve ser considerada e disputada. São trabalhadores e trabalhadoras que estão enfrentando uma dura realidade imposta por mudanças no capitalismo brasileiro nos últimos anos e estão em busca de novos representantes na política para ouvir e solucionar os seus problemas. E, caso as esquerdas esqueçam da necessidade de disputar este eleitorado, o mesmo pode vir a ser seduzido pela retórica enérgica e autoritária de Bolsonaro, que lhe oferece soluções aparentemente simples para questões que tanto afligem as camadas populares, como a corrupção e a segurança pública.
De acordo com dados do IBGE, o desemprego saltou de uma média anual de 6,8%, em 2014, para 12,4% no segundo semestre de 2018. Se o mercado informal era o destino de 30,01% da população empregada no Brasil em 2014, no segundo trimestre de 2018 o quadro mudou para 45,95%.[i] O instituto também demonstra que há um processo de reestruturação do perfil da força de trabalho brasileira: em 2003, 31,8% dos trabalhadores formais da cidade de São Paulo estavam empregados no setor industrial, historicamente responsável por pagar os melhores salários devido a necessidade de capacitação técnica dos profissionais; em 2014, o número caiu para 24% na capital paulista. Em escala nacional, os dados demonstram que, a partir de 2012, o setor de serviços (onde a mão de obra especializada é menos requisitada) passou a empregar mais que o setor industrial.[ii]
Os impactos dessas mudanças nas relações de trabalho no Brasil e no mundo parecem profundos, pois geram instabilidade social e ausência de perspectivas para o futuro, abrindo brechas para soluções autoritárias descartarem a eficiência das democracias representativas, bem como o fascismo responsabilizar determinados grupos sociais marginalizados por problemas estruturais do capitalismo contemporâneo. Para se realizar um paralelo, esta conjuntura de precarização do trabalho e desesperança demonstrou ter sido decisiva para a ascenção de Donald Trump à presidência dos EUA nas eleições de 2016. Sendo assim existiria uma lição a ser aprendida na derrota eleitoral das frentes progressistas nos EUA?
Os deserdados pela globalização: o Cinturão da Ferrugem apoia Trump
Uma mirada nas eleições de 2016 nos EUA pode suscitar importantes reflexões para se pensar o caso brasileiro. Durante a campanha eleitoral estadunidense, muitos ativistas anti-Trump combateram, e com razão, os impropérios de seus tweets e declarações polêmicas em comícios, mas não deram tamanha atenção às suas promessas de remover a ferrugem do Cinturão da Ferrugem, região do nordeste norte-americano marcada pelo desenvolvimento industrial e que passou a ser denominada assim a partir dos impactos da desindustrialização na década de 1980. Num provocativo artigo publicado na revista Dissent após a eleição de Trump, a filósofa feminista Nancy Fraser declarou que a vitória do candidato republicano significou a derrota do neoliberalismo progressista.
Por neoliberalismo progressista, a autora compreende uma forma de alinhamento político colocada em prática pelo Partido Democrata a partir da gestão Bill Clinton (1993-2001) e que teve seguimento na de Barack Obama (2009-2017), abarcando pautas multiculturalistas em prol da diversidade, dos direitos das mulheres e das minorias raciais, ao mesmo passo que se afastava das frentes sindicais e praticava políticas econômicas de austeridade fiscal e desindustrialização. Esse movimento teria contribuído para fomentar o ódio, a misoginia e a xenofobia de um setor da população branca de baixa renda que habita as zonas industriais do país e que sofreu com tais medidas, ao ponto de se considerarem esquecidos pela elite do partido Democrata e aclamados pela campanha de Trump – que foi vitoriosa nos Estados do Cinturão da Ferrugem. Ainda segundo Fraser, para essa parcela do eleitorado de Trump, “as feministas e Wall Street eram pássaros de uma mesma plumagem, perfeitamente unidos na pessoa de Hillary Clinton”.[iii]
O texto de Fraser gerou um dos debates mais interessantes na academia norte-americana nos últimos anos. Em um artigo de resposta, publicado na mesma revista, a socióloga, socialista e ativista do movimento feminista Johanna Brenner criticou o que considerou ser uma abordagem generalizante e deliberadamente confusa que Fraser teria adotado para responsabilizar os movimentos feministas, anti-raciais e multiculturais de terem contribuído, em alguma medida, para a ascenção do neoliberalismo.
Na leitura de Brenner, Fraser toma o feminismo e o multiculturalismo liberal como as únicas expressões destes movimentos sociais e acaba “atacando a ‘política de identidade’ em favor da ‘política de classe’. Enquanto sua conclusão é que, claro, a esquerda deve abraçar o anti-sexismo e o anti-racismo – sua análise implica o contrário – ela é claramente suspeita do multiculturalismo e da diversidade”.[iv]
Por sua vez, o texto de Brenner gerou uma contra-resposta de Fraser, em que a autora alegou não ter sido bem compreendida, e propôs que a sua ideia visa fomentar um contraprojeto hegemônico de resistência pautado pelas propostas da campanha de Bernie Sanders. Para ela, “ao invés de uma aliança progressista-neoliberal de financiarização mais emancipação, ele [Sanders] nos deu um vislumbre de um novo bloco ‘progressista-populista’ que combina a emancipação com a proteção social”.[v] Fraser ainda termina o seu texto destacando que esta opção deveria tentar incorporar os trabalhadores e trabalhadoras do Cinturão da Ferrugem e de zonas industrias do Sul dos EUA que votaram em Trump, pois estes também possuíam grande afinidade pelos projetos de Sanders. De acordo com a autora, este projeto seria mais apropriado do que investir em um discurso polarizado que buscasse aumentar a tensão entre os setores progressistas de um lado e os ‘deploráveis’ partidários de Trump do outro.
A despeito das explícitas divergências teóricas e políticas das autoras, um dos pontos mais ricos deste vívido debate entre dois expoentes do feminismo norte-americano é que ambas concordam no seguinte ponto: embora a eleição de Trump tenha demonstrado algumas fragilidades das frentes progressistas norte-americas, é nesta conjuntura de crise que novos caminhos podem ser construídos. Neste sentido, ambas intelectuais enfatizam a importância de uma reaproximação entre frentes trabalhistas, anti-racistas e feministas no combate à gestão Trump.
As deserdadas pelo ‘mito’: as trabalhadoras contra Bolsonaro?
Bolsonaro não é Trump. Mas, a comparação entre as duas realidades nos leva a identificar um possível calcanhar de Aquiles da campanha do militar que a distingue substancialmente da do magnata. O discurso de Bolsonaro não é voltado para os trabalhadores deserdados pela globalização e pelo capital financeiro. Inclusive, faz questão de enfatizar que o trabalhador brasileiro deverá escolher entre mais direitos ou mais empregos, e as propostas do seu principal economista – o ultra-liberal Paulo Guedes – prometem deteriorar ainda mais o frágil e instável quadro das relações de trabalho no Brasil.[vi]
Não é mero acaso que, enquanto a candidatura de Lula não havia sido indeferida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o maior inimigo de Bolsonaro era o capital político do lulismo e a viva memória do segundo mandato do ex-presidente, com níveis altos de crescimento na economia, geração de empregos e expansão de crédito aos mais pobres. As pesquisas de intenção de voto para presidente realizadas pelo instituto Datafolha e publicadas no dia 22 de agosto apontaram que, ao se adotar o critério de renda, Bolsonaro superava Lula apenas no eleitorado com renda familar mensal de 5 a 10 salários mínimos (32% x 23%), ou mais de 10 salários mínimos (30% x 20%), e era derrotado pelo ex-presidente em todos os outros quadros, com ampla margem entre as famílias que recebem até 2 salários mínimos (11% x 49%).[vii]
Todavia, é significativo registrar que, desde a publicação desta pesquisa, dois eventos alteraram consideravalmente as dinâmicas deste processo eleitoral: a rejeição da candidatura de Lula no TSE no dia 31 de agosto e o atentado contra Jair Bolsonaro no dia 6 de setembro. Após estes ocorridos, Bolsonaro aparece como líder em todos os critérios de renda nas pesquisas recentes publicadas pelo Datafolha e IBOPE no dia 11 de setembro; com menor vantagem entre o eleitorado com renda familiar mensal composta por menos de um salário mínimo (14% x 13% de Ciro Gomes no IBOPE) e maior entre o que recebem de 5 a 10 salários mínimos (38% x 14% de Ciro Gomes no Datafolha).[viii] Mesmo assim, dois dados parecem significativos: 1) em ambas as pesquisas Bolsonaro seria derrotado com maior vantagem em um eventual segundo turno pelo trabalhista Ciro Gomes (45% x 35% no Datafolha e 40% x 37% no Ibope); 2) sua rejeição é alta entre trabalhadores com renda familiar mensal composta por menos de um salário mínimo (46%).
Apesar dos fatores econômicos e de classe fornecerem bases materiais muito sólidas para se compreender algumas das pressões estruturais que exercem suas forças perante o eleitorado brasileiro, eles não podem ser analisados de forma isolada ou determinista. De acordo com a cientista política Rachel Meneguello em entrevista para a revista Pesquisa FAPESP no ano de 2015: “Se os eleitores percebem que a economia vai bem, votam no governante X. Se vai mal, pensam: ‘Vou perder meu emprego, não tenho expectativa econômica’, e votam no candidato Y. Mas não é só isso. As pessoas têm ideologias, crenças e valores políticos”.[ix] Além destes fatores, há de acrescentar que as pessoas também possuem raça e gênero.
Para os cientistas políticos Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli, existem benefícios analíticos em se trabalhar com categorias como classe, raça e gênero de forma interseccional. Segundo estes autores, “qualquer análise que tenha a ambição de estabelecer relações entre os limites das democracias contemporâneas e as desigualdades sociais precisa incorporar como problema as hierarquias que se constituem na convergência entre os três eixos”.[x] A abordagem interseccional surge como uma possibilidade para se compreender certos fenômenos sociais de forma mais complexa. Nesta acepção, as desigualdades do capitalismo, por exemplo, não seriam passíveis de serem explicadas somente pelos conflitos de classe, mas devem incorporar nas suas equações as relações desiguais entre gêneros e raças nas relações de trabalho.
Se cruzarmos os dados previamente citados das pesquisas eleitorais por critério sócioeconômico com a grande rejeição que Bolsonaro possui no eleitorado feminino (50% das mulheres entrevistadas pelo Ibope não votariam de jeito nenhum no deputado) é possível perceber não somente a necessidade das esquerdas buscarem os votos dos trabalhadores, mas o papel ainda mais central do diálogo com as demandas das trabalhadoras brasileiras. Há de se registrar que Bolsonaro lidera entre o eleitorado masculino com grande margem (32% x 14% de Ciro no Datafolha e 35% x 12% de Ciro no IBOPE), mas a diferença é consideravelmente menor entre o eleitorado feminino (17% x 12% de Ciro e Marina no Datafolha e 18% x 11% de Alckmin no IBOPE). Deve-se frisar também que as mulheres compõem 52% do eleitorado brasileiro.
Outro dado válido diz respeito ao fato de que a liderança de Bolsonaro é mais proeminente entre o eleitorado branco (35% x 9% de Ciro e Alckmin) do que entre o eleitorado preto/pardo (22% x 12% de Ciro) e ainda menor entre aqueles que declararam pertencer à outras raças (20% x 11% de Marina Silva). Portanto, ao entrecruzarmos todos estas referências, é possível considerar a hipótese de que o perfil do eleitorado que pode derrotar Bolsonaro nas urnas é formado por trabalhadoras não-brancas de baixa renda. Ou seja, uma articulação eficiente entre categorias como classe, gênero e raça parece ser um caminho promissor para que a tragédia da eleição de Trump não se repita por aqui. Todavia, os atuais números mostram que há muito trabalho para ser feito, pois Bolsonaro segue como líder nas pesquisas em todos os critérios de renda, sexo e raça.
Uma postagem recente de uma página progressista no Facebook fez uma provocação: Você quer saber quantas pessoas medíocres, misóginas, racistas e homofóbicas existem no Brasil? Basta você contar o número de eleitores do Bolsonaro. Não será com uma esquerda surda pelo seu moralismo vanguardista que os setores progressistas poderão triunfar contra Bolsonaro. Pelo contrário, este tipo de atitude alimenta a legitimidade e a força da personagem do “mito” perante seus inimigos. É importante lembrar aos desavisados que ninguém nasce bolsominion, mas torna-se bolsominion.
Um dos caminhos para o combate preventivo contra as soluções autoritárias de frase fácil reside também na escuta atenta dos medos e sonhos de parcela da população, eleitores de Bolsonaro ou não, que está impedida de projetar qualquer perspectiva sólida de vida para os próximos anos em mundo cada vez mais instável e amedrontador. Meu colega de Blumenau teme que a quase centenária empresa onde ele trabalha na indústria local não suporte uma nova crise e ele perca o seu emprego. Eu, como professor, tenho receio que os constantes desmontes na educação precarizem ainda mais as condições de trabalho em uma área vital para o desenvolvimento do país. Ao retornarem dos seus expedientes, trabalhadoras brasileiras temem pelo crescimento da violência contra a mulher nas ruas enquanto trabalhador negros/as temem que o racismo estrutural da nossa sociedade permita que eles/as sofram as consequencias de serem relacionados/as de forma indevida com a criminalidade. E, afinal, quem de nós, neste alvorecer de século XXI, detém o privilégio de não ter medo?
Ricardo Duwe é historiador. Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realiza pesquisas na área de História Política, História Contemporânea e Brasil Republicano, com ênfase em culturas políticas, eleições, partidos políticos e ditadura militar.