Não seja você mesmo
Ora, quem seria você mesmo e no que o mesmo de você nos pode ser oportuno diante dos impasses e dilemas da vida, diante dos apuros civilizatórios desse tempo que nos cabe?
Sempre tive dificuldades com o bem intencionado seja você mesmo. Assim, desse jeito, com adjunto adnominal no masculino e suas vontades de universalização. Autossuficiente e lacrada para qualquer saída coletiva, a sentença atraca nas conversas como recurso terminal. Decide-se então pelo despacho seja você mesmo, o slogan diante das crises sob o governo de um você conservador. Ou um excesso de você que deve ser consumido a todo custo, ainda que tal prática seja insustentável. Qualquer semelhança com o modo de subjetivação neoliberal talvez não seja mera coincidência. Isto posto, o título desse texto pode ter como efeito tanto a aquisição de mais um lema da autoajuda quanto, na melhor das hipóteses, produzir algum incômodo. Vale o risco.
Ora, quem seria você mesmo e no que o mesmo de você nos pode ser oportuno diante dos impasses e dilemas da vida, diante dos apuros civilizatórios desse tempo que nos cabe? E se o você mesmo for justo aquilo que está colapsando porque caduco diante das novas paisagens? Pois bem, imaginemos duas situações, no esforço de compreender o sucesso dessa reiterada sugestão que vagueia pelo último século.
Um menino de 11 anos passa as tardes na frente do espelho de casa reproduzindo e criando passos da dança contemporânea. No entanto, nas aulas de educação física de seu colégio municipal, em vez de usar a sala do ginásio para saudar a experiência de que seu corpo é capaz, se submete às imposições de gênero, como se houvesse somente dois deles. Resignado, se posiciona no meio da quadra, junto aos outros meninos, para ser escolhido por um dos times de futebol. Entendo que o conselho seja você mesmo pressuponha que o verdadeiro você em questão seja aquele que desfruta do próprio corpo em movimentos inesperados e dissidentes na frente do espelho, e não aquele que se rende triste e silenciosamente à norma tácita do corpo designado menino para fazer coisas ditas de menino.

Seja você mesmo aposta nos confins de uma personalidade, no que está por trás do manifesto, no verdadeiro você que ainda não emergiu. Uma história contada do ponto de vista de um futuro que olha para trás até pode editar os fatos dessa maneira. É um recurso possível narrar e ficcionar o próprio percurso, ordenando as sensações e os fatos de modo que se desenhe uma lógica, um argumento, uma moral (da história). Ao fim, assumi meu verdadeiro eu – diria um – aquele que sempre lá esteve. Já Walter Benjamin (1940/1985) diria que essa é apenas a versão contada por quem venceu, mas, a todo momento, existem outras narrativas possíveis. A semântica do imperativo seja você mesmo parte do presente e aponta para um (in)determinado futuro. E o presente, no caso, é sofrer nas aulas de educação física. E o futuro que se quer, no caso, urge trair o presente desse você para então dar lugar a outro acontecimento, um com condições e estofo para sustentar realizações e desaprovações.
A psicanálise, na pluma de Freud, foi a primeira grande formalização sobre o engodo em torno do reinado absoluto do eu (e dos demais pronomes pessoais, arrisco propor). O sujeito psicanalítico é aquele que estranhamos, não o reconhecemos de pronto; mais claudicante e evanescente do que qualquer aspiração supremacista gostaria. Por um lado, o eu, com suas promessas de segurança e previsibilidade, proporciona a um vivente a possibilidade de sustentar certo trânsito pelo tumulto da vida. Por outro lado, esse mesmo eu, caso consista demais e se empanturre de definições, pouco deixa espaço para dúvidas e perguntas que despontam quando as explicações sobre o sofrimento se mostram insuficientes. Um eu ou um você muito robustos, eis uma encrenca quando se trata de dar passagem a outras versões de si e de mundo através dos encontros com o outro.
Outra situação. Uma menina branca silencia diante dos insultos e sabotagens que os colegas, também brancos, investem contra uma das únicas colegas negras da escola particular onde estuda. Nas aulas de história, aprendem a se horrorizar com a falta de humanidade da escravidão enquanto prática sistemática, organizada e de grande escala como um dos pilares do que entendemos por Idade Moderna. Olham para os antepassados como se fossem distantes, rudes morais e se aliviam ao tomar distância daqueles brancos longínquos. Assim, alunas e alunos brancos não teriam qualquer responsabilidade pelos atos cometidos no passado. O professor de História opta por não promover a reflexão sobre o óbvio: todos aqueles mensalistas, de alguma forma, usufruem das vantagens materiais, simbólicas e sociais herdadas de seus tataravós. Prosperidade de famílias que se deu às custas da exploração de mão-de-obra de um grupo que foi racializado e identificado como menos humanos, justificando, assim, o domínio de territórios e de forças de trabalho. Antes que argumentem sobre os brancos que possuem suas raízes na miséria, a tese de doutorado de Lia Schucman (2012) nos ajuda a avançar no debate. Um dos seus entrevistados, um morador de rua branco, relata que era poupado nas batidas policiais e, inclusive, inúmeras vezes, era orientado a deixar o local. Refere também que, mesmo sem pedir, ganhava mais dinheiro do que seus colegas negros, como se sua situação de pobreza não fosse natural e gerasse mais comoção de quem passava na calçada. A partir desse e de outros exemplos, conclui-se que há privilégios simbólicos (Bento, 2002) bastante significativos em função do marcador cor de pele, mesmo entre os mais pobres do Brasil.
Compreender as condições que levaram cada um a ocupar a posição social que ocupa não tem como meta conduzir os brancos para as águas viscosas da culpa paralisante. Com sorte, desenodar as linhas históricas que nos trouxeram até aqui pode nos fazer capazes de entender o que se exige de nós coletivamente daqui para diante. Que outras condições e pontos de largada podem ser produzidos? Como podemos redistribuí-los?
Tomemos em conta que a manifestação do sofrimento é real, cotidiana e incide sobre um corpo dançarino que se recolhe de fato. O que nos leva a conceber tal vida como inexistente, ilusória, protagonizada por um falso você? Não acreditamos em seu conflito, em seus dias, no medo que também o constitui? Se tomamos a omissão da menina branca como um mero ainda-não-ruptura que nada diz sobre quem ela é hoje e sobre quem a circunda, desconsideramos as violências que ocorrem justamente por conta do pacto narcísico e silencioso da branquitude, fenômeno analisado por Maria Aparecida Bento (2002). Tais dias são realmente vividos e exigem um cálculo complexo de elementos que levam ou não à integridade física (do menino dançarino). Que levam ou não a um pertencimento social, simbólico e até material garantido pela manutenção de privilégios sutis e às vezes inconscientes (no caso da sóciomenina omissa). Políticas que afirmam a multiplicidade de existências criam as circunstâncias para a ação dos envolvidos. Elas podem ou não ser adotadas pela escola onde estudam, pela cidade e pelo país onde vivem. Ou seja, se formos nós mesmos, teremos condições de suportar as insurreições que esses jovens provocariam se resolvessem ter a coragem de não ser os tais eles mesmos de hoje por nós criados e educados? Aos que não acreditam que sejam essas as melhores versões de laço social de que somos capazes: não sejamos nós mesmos.
Camila Maggi Rech Noguez é psicóloga, trabalha com Psicanálise e Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Referências
Bento, M. A. da S. (2002). Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, São Paulo. Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento_do_2002.pdf
Benjamin, W. (1940/1985). As Teses sobre o Conceito de História. In Obras Escolhidas (Vol. 1, pp. 222-232). São Paulo: Brasiliense.
Freud, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917). In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 147-153. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17).
Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.