Não somos deste mundo
Não podemos mais nos permitir explorar o planeta como temos feito. O desequilíbrio ambiental, instituído pelo sistema capitalista, notadamente, em sua versão hipermoderna, o neoliberalismo, é uma desgraça só negada por quem se beneficia num curtíssimo prazo
“Existe uma Economia da Necessidade e uma Economia do Desejo” Eduardo Moreira, economista brasileiro
Não quero escrever sobre política, diretamente, por mais importante que ela seja, e é. Quero escrever sobre vida – não obstante, como verão, ambas estão interligadas, só que muitos ainda insistem em não ver esse fato óbvio e em ficar irritados e agressivos com quem tenta mostrar que Política não é apenas sua expressão mais conhecida, a partidária, mas sim a negociação de semelhantes e contrários, em busca de consensos, para a realização de ações viáveis e o mais universalizantes e democráticas possíveis. Política se faz em casa, na família; Política se faz no trabalho; Política se faz na sociedade.
Estamos em um momento muito grave da História humana. Não é apenas uma pandemia, perigosa por si mesma, é também, em certa medida, mas não de modo determinístico, no sentido ser algo inevitável, um freio da natureza e um alerta para todos nós.
Nosso modo de vida mesquinho, egoísta, ganancioso, desonesto, autoritário, pouco solidário, carente de generosidade, insuficiente de respeito à diversidade humana e predador da própria vida, tem que acabar! Este mundo não pode mais existir; queremos, independente de raça, credo, classe social ou ideologia, que o mundo seja outro; é imperativo que seja outro. Contudo, como só temos este mundo para viver, então, que o transformemos. Urgentemente.
Não podemos mais nos permitir explorar o planeta como temos feito. O desequilíbrio ambiental, oriundo de um modo de vida corrosivo, instituído pelo sistema capitalista, notadamente, em sua versão hipermoderna, o neoliberalismo, é uma desgraça só negada por quem se beneficia num curtíssimo prazo, em termos econômicos e de poder social, mas ainda não percebeu que está cavando a própria sepultura ou por quem ainda não se deu conta de que, criar sua bolha de conforto e só lembrar do outro, que não a tem, nos momentos de crise, cada vez mais frequentes, além de extremamente cruel e, no linguajar comum, desumano, não tem como dar certo, sob qualquer ponto de vista.
Quando falo em desequilíbrio ambiental, esqueça a formiguinha do parquinho, o urso polar do Ártico ou o córrego ao lado da sua casa. Sim, eles são importantes e devem ser preservados, mas não é disso que se trata, prioritariamente, em nível macro. Não é disso que estou tratando aqui, neste artigo. Por isso, prefiro lançar mão de outro conceito: o de Desequilíbrio Vital, quer dizer, o desequilíbrio de nosso modo de vida – e por vida, entendamos a vida como um todo, em todas as suas formas, porém, claro, prioritariamente, a vida humana e não porque seja mais importante, mas porque é a vida que pode, com sua inconsequência, destruir todas as demais vidas, como temos, efetivamente, feito.
Nosso planeta finito, com o que convencionamos chamar de “recursos naturais”, não pode continuar a ser infinitamente explorado e depredado no nível que tem sido e essa mudança tem que ocorrer tanto no nível das questões físicas quanto nas existenciais, especialmente, em termos da cultura humana, que doravante deveria ser compreendida não apenas como o conjunto de hábitos e valores artísticos, mas também como a expressão sensorial e sistematizada de nossos hábitos e valores políticos e econômicos, sendo estes últimos, consequência direta dos primeiros. O momento atual é testemunha dessa afirmativa. Estamos sujeitos a periódicas crises sanitárias, porque novos organismos, ou mutações de organismos, vivos ou não, já existentes, estão emergindo, em face de alterações várias que estamos a realizar.
Tudo considerado, assumir e trabalhar o conceito de Desequilíbrio Vital é uma forma de homenagear as pessoas que resistem ao modo de vida capitalista selvagem, que tem no neoliberalismo financeiro sua forma estrutural mais cruel e corrosiva, e também auxiliar na denominação e na realização de táticas coletivas que busquem ações concretas, as quais poderão nos conduzir a nova estratégia que deveria ser a prioridade de todos os povos: buscar políticas públicas que tenham, efetivamente, como resultado, a (re)construção de sociedades muito, mas muito diferentes das que temos tido, histórica e geograficamente, ao menos, na Era Moderna para cá, ou seja, desde mais ou o menos a Revolução Francesa e a Industrial, de meados do século XVIII, processos ainda em curso.
Como disse o economista Eduardo Moreira, privilegiamos apenas a “Economia do Desejo”, mas de muito poucas e cada vez menos pessoas. É mais do que chegada a hora de começarmos a construir uma sociedade que trabalhe, primeiro e prioritariamente, a “Economia da Necessidade”. Depois que todos, sem exceção, tiverem um mínimo de dignidade, conforto e meios de sobreviver, aí sim, podemos retomar, para quem quiser, se esforçar e tiver condições estruturais e competência individual, concatenada à viabilidade coletiva, a “Economia do Desejo”.
Concretamente, podemos buscar o imperativo legal dessa “Economia da Necessidade” no Artigo 1º da Constituição Federal do Brasil, que se assenta sobre o Estado Democrático de Direito buscando, dentre outros fundamentos, em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana e no Artigo 3º da Constituição Federal que diz o seguinte em seu caput: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Temos isso? Nem de longe.
Da sociedade do Desequilíbrio Vital, temos que passar, com urgência para a sociedade do Equilíbrio Existencial. Não é possível que continuemos a nos preocupar, sobretudo, com o livro caixa dos governos e com as planilhas eletrônicas que expõe, sobre a vida humana e planetária, os lucros do sistema financeiro e das grandes empresas do sistema produtivo. O capitalismo opera com o lado mais sórdido do ser humano, com a busca por dinheiro e poder, acima de tudo e de todos e sem se importar com os demais membros da espécie que jogo são eliminados, desde o nascimento ou, muitas vezes, literalmente. O capitalismo opera no nível consciente, da busca pelo prazer efêmero do consumo desenfreado, mas também no nível do inconsciente, da busca pela supremacia do “eu” sobre o “nós. Chega de “apenas eu”, não dá mais; temos que construir a sociedade do “nós todos”.
Carlos Fernando Galvão é geógrafo e pós-doutor em Geografia Humana, [email protected]