Nas pegadas de Washington
A tentativa de criminalizar a revolta popular e armar contra ela uma grande coalizão conservadora tem precedentes. Desde os anos 60, a direita norte-americana serve-se deste expediente, para esvaziar a democracia e transformá-la em um rito ocoSerge Halimi
Em 6 de novembro de 1962, Richard Nixon anunciou sua retirada da vida política norte-americana. Batido dois anos antes, por um punhado de votos, na corrida para a Casa Branca, acabava de ser vencido pelo democrata Edmund G. (“Pat”) Brown, nas eleições para governador da Califórnia. Em 1964, um outro republicano, Barry Goldwater, foi escorraçado por Lyndon Johnson, eleito presidente dos Estados Unidos com 61% dos votos. Em matéria de direitos civis e de “guerra contra a pobreza”, ele marcou de maneira favorável à história de seu país. Soube responder favoravelmente à pressão do movimento pelos direitos civis, e de milhares de militantes de esquerda, muitas vezes jovens e brancos, que foram ao Sul apoiar os partidários de Martin Luther King. A segregação institucional foi desmantelada, a “guerra contra a pobreza” lançada, a política progressista parecia instalada por uma geração.
Em 1966, Ronald Reagan massacrou “Pat” Brown e se tornou governador da Califórnia, graças ao eleitorado popular branco
A ilusão não durou muito. Embora a sociedade norte-americana fervilhasse nos anos 1960 (movimento negro, movimento estudantil, movimento feminista, movimento pacifista, movimento homossexual), um backlash (retrocesso) conservador abateu-se rapidamente sobre cada um destes campos, ou quase todos. Em 1966, Ronald Reagan massacrou “Pat” Brown para surpresa geral, e se tornou governador da Califórnia, graças ao eleitorado popular branco, que acabava de conseguir, num referendo, a anulação de dispositivos favoráveis à miscigenação racial nas moradias. Dois anos mais tarde, Richard Nixon, aparentemente incapaz de renunciar à política, venceria o vice-presidente escolhido por Lyndon Johnson – Hubert Humphrey — e se instalaria na Casa Branca.
A virada à direita de uma parte da base democrata (operários, empregados, rurais) explica o resultado eleitoral. Na Califórnia, Reagan conseguiu descolar os “pequenos brancos” do partido do governador, que deixava o cargo, acusando-o de ter pecado por fraqueza quando dos tumultos de Watts (Los Angeles), em agosto de 1965 — mas também de ter pactuado com a contestação de uma “minoria neurótica” de beatniks, instalada na Universidade de Berkeley. O conservadorismo da burocracia sindical da AFL-CIO, o fato de ter abandonado os combates contra a segregação racial, o militarismo (guerra do Vietnã) e as discriminações sexistas permitiram que agissem as forças corrosivas de uma recaída conservadora. Dez anos mais tarde, o conjunto do movimento operário pagaria o tributo econômico e social.
Um racismo silencioso
Em escala nacional, Richard Nixon tirou também proveito dos temas referentes à “lei e à ordem”. Em 1968, os levantes de Chicago e do Harlem ainda estavam frescos na memória. Quarenta e três pessoas, negras em sua maioria, haviam sido mortas (em muitos casos pela polícia, pela guarda nacional e pelo exército), durante os enfrentamentos de Detroit em julho de 1967. Ele conclamou seus compatriotas a ouvir “uma outra voz, uma voz tranqüila no tumulto dos gritos. É a voz da grande maioria dos Americanos, os Americanos esquecidos: aqueles que não gritam, aqueles que não se manifestam. Eles não são nem racistas, nem doentes. Eles não são culpados dos flagelos que infestam nosso país 1 “.
Nem racistas? Em 1963, 59% dos Brancos declaravam-se ainda favoráveis à proibição de casamentos inter-raciais; 55% não queriam viver ao lado dos negros; 90% recusavam que sua filha saísse com um deles, e mais da metade dos brancos imaginavam que eles riam muito mais, eram menos ambiciosos e tinham um cheiro diferente2 … Eles não riam muito quando eram interpelados pelas forças da ordem, quase exclusivamente brancas. Aliás, foi um caso comum de brutalidade policial que desencadeou os tumultos de 1965, em Watts. Eles duraram cinco dias, envolveram cerca de 50 mil pessoas (sendo 16 mil guardas nacionais), fizeram 34 mortos e 1 mil feridos.
Desde o fim dos anos 50, o FBI e as autoridades locais do Alabama, de Arkansas e do Mississipi explicavam as «desordens» questionando os “agitadores” vindo do exterior. Para desacreditar o movimento negro, divulgava-se que estava infiltrado por comunistas. Cartazes instalados ao longo das estradas do Sul chegavam a proclamar que Marthin Luther King teria freqüentado um campo de treinamento revolucionário e teria sido encorajado por uma fração dos comunistas muito mais chineses que russos. Com Malcom X, preferia-se evocar as influências perniciosas do islã terceiro-mundista. O próprio Lyndon Johnson imputou os levantes urbanos a alguns “promotores de desordens entre negros”, antes de compreender o caráter espontâneo e popular da explosão.
Há poucas semanas, a Fox News falava de uma “insurreição muçulmana na França”, que tinha ganhado “ferocidade” em razão da recusa do governo em “lançar mão do exército”
Ainda hoje, a direita norte-americana continua a associar espontaneamente agitação social, “subversão” e inimigo “exterior”. Há algumas semanas, o canal republicano Fox News falava de uma “insurreição muçulmana na França”, que tinha ganhado “ferocidade” em razão da recusa do governo em “lançar mão do exército”.
Nos Estados Unidos, o recurso à tropa é habitual. Mas o aumento de violência que isso desencadeia não provoca necessariamente um grau mais agudo de tomada de consciência coletiva. Em abril-maio de 1992, por exemplo, os conflitos de Los Angeles (mais de 50 mortos e de 10 mil prisões, depois da absolvição de um policial filmado quando agredia, selvagemente, um automobilista negro, Rodney King) só perturbaram a campanha presidencial em curso por alguns dias. Os três principais candidatos (George H. Bush, William Clinton e Ross Perot) estavam preocupados, principalmente, em seduzir as classes médias e não em solucionar problemas dos guetos.
Solidariedade ou ilusões?
Quase sempre, os levantes urbanos reativam a demagogia securitária da direita norte-americana, que aproveita a oportunidade para se “proletarizar” sem nenhum custo. Há quarenta anos, ela consegue isso no registro que parece ter inspirado Alain Finkielkraut quando certos subúrbios franceses pareciam pegar fogo, e o ensaísta multimídia opôs a indignação dos “automobilistas pobres do 93” à “simpatia pelos vândalos”, que ele atribuía aos “afetados ecologistas que andam de bicicleta por Paris3 … “.
No início dos anos 1960, o jornalista de esquerda Andrew Kopkind, assim como muitos outros, entre os quais Marthin Luther King, esperava o nascimento de um movimento inter-racial dos pobres, unindo os rendeiros negros do Mississipi e os brancos indigentes dos Apalaches. Em 1968, os que combatiam as leis racistas nos Estados Unidos ganharam. Mas a solidariedade inter-racial parecia mais distante que nunca.
Porque o sonho da mobilidade social dos operários e dos empregados brancos escapou exatamente nesse instante. Os culpados foram logo localizados. Ao entrevistar um operário branco de Chicago, “100% a favor da polícia”, Kopkind pode constatar o progresso das idéias autoritárias no seio de um “lumpen-proletariado jovem que fracassou em seu acesso à classe média e que se sente encerrado na condição operária”. Para este “lumpen-proletariado branco”, a integração racial significava, em primeiro lugar, a ameaça de ver negros se instalarem em seus bairros.
“As pessoas”, exclamava em 1995 David Frum, conselheiro do presidente Bush no início de seu mandato, “estão cansadas desta lamentação constante que ouvem a respeito dos pobres
Os levantes urbanos somavam, a esse temor de ser desclassificado, a exigência do retorno à ordem: “Não sou contra as pessoas de cor, sou contra os enfrentamentos”, declarava a Kopkind o mesmo operário de Chicago. Vinte anos mais tarde, em 1988, o discurso havia mudado pouco. Procurando explicar a virada à direita de um marceneiro branco da cidade, Thomas e Mary Edsall citam suas palavras: “a maioria dos que têm necessidade de auxílio são negros. E a maioria dos que ajudam são brancos. Estamos sem paciência pelos conjuntos habitacionais de Chicago cujos aluguéis são mínimos e pelos transportes em comum que nós não utilizamos4 “.
O que fazer, e quem deve pagar? O discurso da direita norte-americana é circular: segundo ela, a questão está mal colocada: toda ajuda incomoda àqueles que a recebem5 .
A imitação francesa
“As pessoas”, exclamava em 1995 David Frum, um ensaísta republicano conselheiro do presidente George W. Bush no início de seu mandato, “estão cansadas desta lamentação constante que ouvem a respeito dos pobres. Os contribuintes que pertencem às classes médias avaliam que pagam sempre mais por outros, e que estes não param de se comportar cada vez da pior maneira.”
Empregando palavras um pouco diferentes, Nicolas Sarkozy também atribuiu ao braço secular do mercado os elementos mais vulneráveis da sociedade: “A verdade é que há quarenta anos aplicamos uma estratégia errada para os subúrbios. De certa forma, quanto mais consagramos recursos à política da cidade, menos resultados obtivemos6 “.
Isto cai bem: tais recursos, tanto na França quanto nos Estados Unidos, deveriam ser, segundo a direita, reservados a outros usos: por exemplo, a redução dos impostos diretos. Inconsciência? De maneira nenhuma: a história recente sugere o sucesso político das orientações nada igualitárias que individualizam, ou “caracterizam por etnia”, as relações sociais — para poder mais facilmente reprimir os maltratados por tais relações, quando se revoltam.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – Discurso feito na Convenção Republicana em Miami, dia 8 de agosto de 1968, citado no livro Le Grand bond en arrière: Coment, l’ordre liberal s’est imposé au monde, Editora Fayard, 2004, pag 131.
2 – Pesquisa do Newsweek citado por Thomas Byrne Edsall e Mary Edsall: Chain Reaction: The impact of race,rights and taxes on American Politics. Editora Norton, New York 1991.
3 – Ler Le Figaro, 15/11/2005.
4 – Thomas e mary Edsall, op.cit. Ler também: « A Universidade de Chicago, um pequeno pedaço do paraíso no coração do gueto». Le Monde Di
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).