Nasce a Europa S.A.
O documento final da reunião do Conselho Europeu em março, em Lisboa, deliberou sobre as futuras estruturas políticas do bloco. Trata-se, numa definição curta e grossa, do atrelamento do futuro da Europa à camisa de forças do liberalismoBernard Cassen
Nada como os aniversários de cinco ou de dez anos para suscitar retrospectivas e balanços. Os 50 anos da declaração de Robert Schuman, a 9 de maio de 1950, justificam a prática: tratava-se, na época, de um acontecimento verdadeiramente precursor. Redigida por Jean Monnet, então ministro das Relações Exteriores, a proposta sugeria a criação concreta de uma Alta Autoridade Supranacional encarregada de administrar a produção de carvão e de aço pela Alemanha e pela França. A proposta se concretizaria, menos de um ano depois, a 8 de abril de 1951, com o Tratado de Paris, que criava a Comunidade Européia de Carvão e Aço (Ceca), que incluiria, além da Alemanha e da França, os três países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo) e a Itália. [1] Em 1985, o dia 9 de maio foi escolhido, logicamente, como a Jornada da Europa.
Meio século mais tarde, aquele acontecimento ainda serve de padrão para avaliar o avanço da construção européia. No dia 9 de maio de 2000, a atmosfera era, no entanto, de certa tristeza na imprensa francesa, a ponto da comemoração parecer mais uma lamentação: a Europa “sem rumo” ou “em busca de um rumo” para uns; sofrendo de “banzo”, para outros; ou mesmo “num impasse”, para outros mais. E o euro sem sair da estagnação, sob o peso do dólar. Estávamos nessa situação… quando chegou Joschka Fisher.
O “centro de gravidade”
No dia 12 de maio, o vice-chanceler, ministro alemão das Relações Exteriores e principal liderança dos Verdes, lançou um apelo à “refundação institucional” da União Européia, que deveria acabar desembocando numa federação composta por um “pequeno número” de países desejosos de se transformar no “centro de gravidade” da Europa — com uma Constituição própria, um Parlamento de duas Câmaras e um presidente eleito pelo sufrágio universal — sem ficar esperando por todos os outros que continuariam caminhando no ritmo comunitário de um cruzeiro de férias. [2]
Nem tudo foi inteiramente original: as “cooperações reforçadas”, por exemplo, primeira etapa rumo a esse “centro de gravidade” — também conhecido por “núcleo rígido” — já constava do Tratado de Amsterdã, de 1997. Quanto à idéia de uma Europa Federal, ela já estava presente — sem termos que evocar os Estados Unidos da Europa que propunha Victor Hugo — na Ceca de 1951, e depois no projeto para a Comunidade Européia de Defesa, em 1952, recusado pelo Parlamento francês em 1954.
Uma Europa “vencedora”
Na realidade, o êxito e a badalação obtidos pela proposta de Fisher nos meios de comunicação se devem menos ao conteúdo do que ao momento em que foi formulada: precisamente em meio a uma conferência intergovernamental encarregada de elaborar um novo tratado europeu e às vésperas da França assumir a presidência da União Européia. Também pesou a importância do autor da proposta: um ministro alemão em pleno exercício do cargo, pretensamente exprimindo-se “em nome pessoal”, que relançava o permanente debate entre supranacionalidade e soberanias nacionais.
Era o que faltava para que o tempo, até ali considerado fechado, se tornasse subitamente limpo e radiante e que, do alto de suas colunas de opinião na imprensa, cada qual passasse a buscar uma definição com relação ao texto em discussão. Resumindo: em apenas três dias, a dinâmica da União Européia ganhava um novo alento. E a encomenda de mísseis europeus Meteor pela Inglaterra, bem como a aquisição do portal eletrônico norte-americano Lycos pelo grupo espanhol Telefónica, se tornariam provas referenciais de uma Europa “vencedora”. Se o que realmente se procura é “um sentido” para a construção comunitária, não é necessário fazer projeções antecipadas de vários anos (o documento do ministro Verde sugere apenas perspectivas institucionais a médio e longo prazo): basta ler as conclusões da reunião de cúpula realizada na capital portuguesa, que datam de algumas semanas.
Um hino à “nova sociedade emergente”
Numa avaliação com um mínimo de prudência, há uma distância gritante entre a efervescência provocada pela declaração de Fisher e o tratamento muito mais discreto dado ao assunto pelo Conselho Europeu de Lisboa, nos últimos dias 23 e 24 de março. Nada de manchetes escandalosas nem de reações políticas de perplexidade geral: business as usual, poderiam ter dito Anthony Blair e José Maria Aznar, os heróis do encontro. E no entanto, o que ali foi decidido tem um significado muito mais importante para a vida cotidiana dos cidadãos, e muito mais concreto para as perspectivas da União Européia, do que debates sobre futuras estruturas políticas: trata-se, numa definição curta e grossa, do atrelamento do futuro à camisa de forças liberal.
Assim como o hino à “nova sociedade emergente” — numa alusão à “nova economia”, apenas algumas semanas antes do mini-crack da Bolsa da Nasdaq… —, algumas passagens que constam das resoluções dessa reunião de cúpula, como por exemplo na área da educação, deveriam ter merecido mais destaque. A missão dos sistemas educativos reduz-se, no documento, à adaptação “tanto às necessidades da sociedade do conhecimento quanto à necessidade de se elevar o nível de emprego e melhorar a sua qualidade”, sendo os professores relegados a meros usuários da Internet. Veja-se que programa humanista! Quanto à proteção social, ela deve ser “modernizada” (uma palavra-chave frágil) “dando especial atenção à viabilidade dos regimes de aposentadoria com diferentes prazos, até 2020, e mais além, se necessário”. Um modo transparente de falar dos fundos de pensão preservando os melindres político-semânticos de Lionel Jospin.
A ordem é liberalizar
Os serviços públicos também não foram poupados: pede-se à Comissão Européia, ao Conselho e aos Estados membros que “seja acelerada a liberalização em setores como gás, eletricidade, serviços postais e transportes. Também no que se refere à utilização e gestão do espaço aéreo, este Conselho convida a Comissão a apresentar propostas assim que possível”.
O restante das conclusões de Lisboa vai pelo mesmo caminho. Por outro lado, não há qualquer vestígio da proposta do governo português de determinar junto à União Européia objetivos sociais quantificados previstos para 2010: redução do desemprego na Europa de 8,8 para 4% e do índice de pobreza, de 18 para 10%. Já os redatores do Tratado de Maastricht mostraram-se bem mais voluntaristas quando se tratou de fixar critérios de convergência draconianos — quantificados em até menos da quarta parte de 1% — para a passagem à moeda única. Também o pacto orçamentário adotado em Amsterdã em junho de 1997 não brinca em serviço com esses índices restritivos.
Então, quem poderia dizer que a União Européia não tem prioridades claras ou que lhe falta o famoso “sentido”? No momento preciso em que o secretário-geral do Partido Comunista Francês reivindicava, em Martigues, durante o congresso do partido, “uma guinada à esquerda por parte do governo”, Jacques Chirac, lado a lado com Jospin e seus ministros, declarava, com absoluta legitimidade, na abertura dos trabalhos do Conselho Europeu: “Deixou de existir debate ideológico.” Entenda-se por isso que todos os governos, incluindo, evidentemente, o francês, homologaram o modelo liberal como modelo europeu.
“Um fio condutor de bom senso”
Sentimento esse confirmado pelo Financial Times — especialista no assunto — que, entusiasmado com os resultados da reunião de cúpula, dava a seguinte manchete no dia seguinte: “Um plano empresarial para a Europa S.A.”. O jornal da City londrina explicava que “por seu estilo, o encontro de chefes de governo que acaba de terminar em Lisboa parece muito mais um conselho de administração de uma empresa que qualquer dos conselhos europeus que o antecederam. Um fio condutor de bom senso deu coerência ao comunicado final: a economia de mercado, o reconhecimento explícito que os principais motores do desempenho econômico devem ser as empresas bem-sucedidas e os mercados liberalizados. Os governos devem confinar-se cada vez mais à tarefa de facilitar, enquanto a União deve agir como catalisador”. [3]
É bom relembrar aqui o papel que cabe aos Conselhos europeus: orientar e incentivar a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e os Estados membros, o que implica em toda uma mecânica. A partir das conclusões de Lisboa, por exemplo, a Comissão irá propor diretrizes ou outras formas de atos legislativos comunitários, os ministros — restritos pelos compromissos assumidos pelos chefes dos governos — irão acatá-los e os Parlamentos não terão escolha senão transformá-los em leis nacionais, uma vez que “a palavra de seu país já foi dada”.
Nova função para os Parlamentos
Dessa forma, medidas que iriam deparar com uma oposição veemente por parte de representantes eleitos caso fossem propostas por seu próprio governo, serão agora obrigatoriamente votadas “em nome da Europa”. Um exemplo: Jean-Claude Gayssot, ministro dos Transportes e filiado ao PCF, corre o risco de ter que adotar, no Conselho de Ministros Europeu, uma diretriz no sentido de “liberalizar” (entenda-se: privatização parcial ou total) a gestão do tráfego aéreo, para que depois ele próprio a submeta à aprovação dos deputados de esquerda, entre os quais os do Partido Comunista Francês…
Portanto, a União Européia funciona como uma máquina de liberalizar “de cima para baixo”, independente da opinião dos cidadãos, de seus representantes eleitos e mesmo dos governos, timidamente reticentes (como, neste caso, o de Jospin), mas que não se querem ver “isolados”. Não que estes se preocupem em ficar isolados de seus concidadãos, mas fazer voz dissonante de Blair, Schröder ou Aznar é altamente preocupante. Passo a passo, com seus parlamentos cada vez mais restritos a funções cartoriais, emerge uma Europa bastante real que se distancia cada vez mais do “modelo” que lhe cabia desempenhar, a ponto do semanário ultraliberal The Economist poder, com todo o direito, questionar “para que serve uma Europa que se revela ser uma cópia dos Estados Unidos”. [4]
Uma “França a partir da Europa”
Este mecanismo — que evita a opinião popular, à qual são impostas goela abaixo soluções nunca reivindicadas, e menos ainda votadas — foi bem (e imprudentemente) descrito por Alain Touraine, que revelou a nudez do rei: “Na França, a palavra liberalismo sempre foi impronunciável; então, criaram outra: Europa.” [5] Jacques Delors não dizia outra coisa quando falava — citando o título de um de seus livros — de fazer “a França a partir da Europa”.
Será que honestamente se poderia propor um debate sobre as futuras estruturas da União Européia sem colocar sobre a mesa de negociação as estruturas existentes, que permitem não se tomar sequer conhecimento da opinião dos cidadãos sobre que tipo de sociedade desejam? A resposta deveria logicamente ser “não”. No entanto, na agenda da Conferência Intergovernamental (CIG) — que terminará em dezembro de 2000, em Nice, por ocasião da última reunião do Conselho Europeu sob a presidência francesa — só constam, oficialmente, as reformas institucionais destinadas a permitir o funcionamento de uma Europa de 27 Estados (já que se contam, atualmente, 12 candidatos à adesão, excluindo a Turquia).
A limitação do número de comissários (atualmente, 20, mas que passariam a ser 33, mantidas as normas atuais), um novo critério de ponderação dos votos para as eleições de maioria qualificada (que coloca o problema delicado do equilíbrio entre Estados “grandes” e “pequenos”) e a extensão da área de aplicação dessa maioria qualificada, restrita, até agora, a setores onde conta com a unanimidade (política fiscal, por exemplo) são, é claro, pontos de referência de grande importância. Mas se referem apenas ao procedimento, e não ao conteúdo.
FMI para a Europa Oriental
Tudo se passa, na realidade, como se o conteúdo em questão já tivesse sido definitivamente conseguido, e portanto fora de discussão: liberalização na lei ou na marra para os quinze países da União Européia, imposição de programas de ajuste estrutural à moda européia, tomando por base os do Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países da Europa Oriental (leia o artigo de Catherine Samary nesta edição).
Seja ou não Verde, Joschka Fisher não faz, em sua declaração, qualquer alusão ao fato, o que seguramente não é obra do acaso. Tampouco aborda a questão o novo presidente do Conselho italiano, Giuliano Amato, que, saltitante com as propostas do ministro alemão a respeito do “centro de gravidade”, considera que, para se evitar uma via desastrosa, “é fundamental que a CIG enfrente com coragem uma revisão dos dispositivos sobre flexibilidade, ou seja, sobre as ditas ’cooperações reforçadas’, cruciais para os novos marcos de referência do processo de integração — justiça, imigração, segurança e defesa —, onde até agora nada foi feito”. [6]
Depara-se, nesta lista, com as funções coercitivas do Estado, e não com o modelo social que caberia a elas protegerem, tanto interna quanto externamente. Ou seja: a separação entre a esfera da economia e das finanças, alvo objetivo do cidadão, e a esfera do político, consagrada fundamentalmente ao papel de feitor. Neste contexto, seria interessante descobrir-se com precisão ao que poderia se estar referindo Lionel Jospin, quando disse, em 4 de maio de 2000, numa palestra a estudantes em Budapeste, que ele fará prevalecer a ambição de uma “Europa a serviço de seus cidadãos, onde o progresso social é o coração do seu projeto”. Estaria ele se referindo à reunião de Lisboa?
Salta aos olhos que os dirigentes europeus nada esqueceram das receitas liberais dos últimos vinte anos nem conseguiram compreender coisa alguma do movimento de rejeição ao que representam, que se fez presente em Seattle, contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), e três meses atrás em Washington, contra o FMI e o Banco Mundial. Podem tentar imaginar, por segurança própria, que essa rejeição é dirigida contra instituições externas, acima das preocupações materiais. No entanto, e em número cada vez maior, os cidadãos percebem uma correlação direta entre a ação dessas organizações e a da Comissão Européia e dos Conselhos Europeus.
Seria Nice a próxima “Seattle”?
Como parte diretamente interessada, a União Européia — talvez devido a um alinhamento com os Estados Unidos que vai das instituições de Bretton Woods até as políticas planetárias de ajuste estrutural — consegue ser ainda mais liberal que os norte-americanos com relação à OMC, por exemplo. Nessas condições, as reuniões institucionais dos quinze países da União Européia irão transformar-se, progressivamente, em pontos de encontro para os movimentos sociais e sindicais protestarem contra políticas que não passam de uma tradução e adaptação regionais da globalização liberal. E tudo indica que Nice venha a ser o primeiro desses pontos de encontro.
Nada mais lógico: pois se é no sigilo, a portas fechadas, das reuniões de cúpula que são decididas as orientações que, em seguida, os representantes eleitos serão convidados a ratificar sem direito a abrir a boca, então é a esse nível que a pressão deve ser exercida. E ninguém será bobo de aceitar acusações já previsíveis, do tipo “contestação anti-européia”. O fato é que as políticas postas em prática pelos atuais países da União Européia nada têm de particularmente “europeu”. Cabe, portanto, aos que as implementam pagar pela vergonha que elas provocam — e não, é claro, somente na Europa.
É desolador constatar que uma idéia que inúmeros cidadãos consideram como uma perspectiva histórica indispensável — a construção européia — reduz-se à roupagem institucional do projeto da Europa S.A., sendo que até este já está em vias de fusão com o de uma World Company. Romano Prodi, o atual presidente da Comissão Européia, já previu, por seu lado, o verniz “cultural” desse projeto: “A força da cultura norte-americana, no sentido amplo pelo qual ela se manifesta simbolicamente nos meios de
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.