Necessidades que passam despercebidas
As condições miseráveis de vida das periferias das cidades em plena expansão na África, Ásia e América Latina não são mais consideradas ameaças para o tecido social e urbano. Porém, todos os anos milhões de pessoas contraem doenças pelo contato com partículas fecais presentes no mato, nos becos e nas margens dos rios
Em um mundo cada vez mais preocupado com emissões de carbono ou poluentes químicos e nucleares, os excrementos patogênicos não parecem tão importantes. Desde o Grande Fedor de Londres (ler box), os países industrializados passaram a despender recursos consideráveis para limpar e sanear o ambiente urbano. Naqueles em desenvolvimento, o medo dos “maus ares” (mala aria) foi reduzido na medida em que se compreendia melhor as doenças originárias daí.
As condições miseráveis de vida das periferias – e às vezes dos centros – das cidades em plena expansão na África, Ásia e América Latina não são mais consideradas ameaças sérias para o tecido social e urbano. De modo geral, em todos os países, a infraestrutura médica é suficiente para impedir uma propagação em grande escala das epidemias ligadas ao saneamento – entre as quais figura em primeiro lugar a cólera.
Esgotos sem tratamento
Os banheiros com sistema de esgoto canalizado conseguiram impor a ideia de que o aprovisionamento em água corrente resolveria por si só o problema da eliminação dos excrementos. A relação entre doença e contaminação fecal foi esquecida aos poucos – a ponto de as políticas de saúde colocarem a diarreia e outras infecções associadas às excreções na categoria “acesso à água”.
Hoje, os proprietários de imóveis pagam uma “taxa da água”, para as “ligações” com o líquido vital, como se as canalizações de esgoto não existissem. Com esse truque de linguagem, o assunto desagradável é proscrito não somente da pauta da sociedade, mas também dos círculos de decisão. Em algumas partes do mundo em desenvolvimento, os rios que atravessam as cidades estão tão turvos e apodrecidos quanto o Tâmisa, o Reno e o Sena no século XIX, e igualmente incapazes de absorver os dejetos humanos não-tratados neles despejados. Mas esses “fedores” já não inspiram horror e, desde que se mantenham longe dos hotéis, das atrações turísticas e das classes altas, prevalece a negligência.
Em consequência, para 2,6 bilhões de pessoas – o equivalente a 38% da população mundial –, o problema cotidiano da evacuação dos excrementos não está resolvido. Elas não dispõem nem de banheiro, nem de ligação de esgoto. A utilização de latrinas, cujo conteúdo é despejado em um buraco ou fossa séptica, não é completada por um tratamento regular de evacuação. E, quando as casas têm canalização de esgoto, apenas 10% da matéria fecal é cuidada; os outros 90% vão parar nos rios, onde os efeitos sobre o ambiente aquático – estoques de peixes, vida vegetal – e sobre a saúde humana podem ser devastadores.
Em muitos casos, esses mesmos cursos d’água são utilizados para tomar banho, na lavagem de roupa e até na retirada de água para consumo humano e animal. Agente eficaz de absorção e evacuação dos dejetos, a água também carrega substâncias patogênicas, como os bilhões de bactérias microscópicas contidas na menor quantidade de excrementos.
Para limpar o Ganges, poluído durante anos por dejetos industriais tóxicos e águas não-tratadas, a Índia acaba de obter com o Banco Mundial um empréstimo de US$ 1 bilhão, por cinco anos1. Mas, mesmo que se consiga construir e fazer funcionar de acordo com as expectativas, estações de tratamento na saída dos esgotos situados ao longo do rio, é ilusão esperar que as ligações de esgoto cheguem aos lares mais pobres: a quase totalidade dos que não têm acesso a instalações sanitárias vive no campo (70%), em habitações muito rudimentares, ou em precárias aglomerações urbanas tentaculares (30%).
Na maioria das zonas rurais dos países em desenvolvimento, os habitantes defecam ao ar livre, no mato, e nas cidades, muitos utilizam recipientes como sacos plásticos e baldes. No passado, o sol e o vento, junto com a lavagem operada pelos fluxos e refluxos das águas, serviram perfeitamente para secar e desodorizar o ambiente, mas, em um mundo onde a densidade populacional aumentou grandemente, a defecação ao ar livre tornou-se malsã.
Contaminação de crianças
Milhões de pessoas contraem doenças devido a partículas fecais presentes no mato, nos caminhos, nos becos, nas margens dos mares, rios ou córregos. Os germes patogênicos se depositam nos pés, nas mãos, na comida, nos utensílios de cozinha, nos recipientes, nas roupas e são ingeridos por aqueles que utilizam os lagos e tanques para se lavarem ou mesmo para brincar.
Por ano, 1,5 milhão de crianças em baixa idade perde a vida por causa de infecções diarreicas. Milhões de outras sofrem, periodicamente, com febre e dores de barriga que as fazem faltar às aulas, além de afetar o crescimento e absorver os cuidados maternos e os parcos recursos familiares. As infecções parasitárias, devidas ao contato dos pés nus com as matérias fecais, são ainda mais comuns, totalizando mais de 133 milhões de casos por ano. O ascaris – verme cilíndrico, popularmente conhecido como “lombriga”, que se implanta no intestino – pode absorver um terço da comida consumida por uma criança, e com frequência leva à asma. Uma criança que vive em um ambiente muito degradado pode ser portadora de mil parasitas ao mesmo tempo.
No entanto, embora as consequências de um sistema de saneamento inadequado sobre a saúde suscitem a inquietude dos poderes públicos, o banheiro privado continua sendo percebido pela população apenas como uma comodidade pessoal do que como uma ajuda sanitária. À medida que se foi estendendo a urbanização, isolar-se para fazer as necessidades discretamente tornou-se muito mais difícil quando não há instalação reservada para isso, e a ausência de intimidade criou uma demanda entre as populações mais pobres, em particular àquelas que começam a subir na hierarquia social. Banheiros são uma marca de modernidade desejada, assim como um aparelho de televisão, mesmo em uma casa modesta.
Ao mesmo tempo, a necessidade de uma simples ducha e de canalizações para evacuar as águas usadas aumentou a demanda por “bens de equipamentos sanitários” similares aos que os europeus usam há mais de um século. Faltam, porém, o compromisso e os recursos por parte das classes dirigentes para mudar essa situação.
Aqueles que oferecem ajuda a esses países também têm sua parte de responsabilidade nesse estado de coisas. Se, por ano, eles dedicam US$ 13 bilhões a questões relacionadas a água, apenas US$ 1 bilhão vai para instalações sanitárias2. Em programas intitulados “água e saneamento”, frequentemente se omite a dotação de orçamentos direcionados à educação para a higiene, à ampliação do número de banheiros ou à construção de sistemas de evacuação das águas e excrementos, de modo que a palavra “saneamento” é puramente decorativa. Quando as Nações Unidas definiram, em 2000, os objetivos do milênio para o desenvolvimento, o saneamento não estava entre eles. Foi apenas depois de um intensivo trabalho de lobby, na segunda cúpula da Terra (Johannesburgo, 2002), que se decidiu acrescentar o objetivo de reduzir pela metade, até 2015, a proporção daqueles que, em 1990, não tinham acesso a infraestruturas sanitárias de base. Mas, de acordo com o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), quase não há esperança de que essa meta seja atingida.
A lentidão – financeira, política, institucional, promocional – dos progressos em matéria sanitária conduziu as Nações Unidas a designar 2008 como o “ano internacional do saneamento” (AIA). Houve alguns resultados: alimentação de água e o saneamento foram enfim separados no espírito dos homens de decisão.
Em muitas regiões do mundo, os banheiros que se pretende instalar nas zonas mais pobres não podem ter alimentação de água ou
dutos de evacuação. Nem os habitantes, nem as autoridades locais têm meios de investir em canalizações e fossas subterrâneas, e ainda menos nos sistemas de evacuação e tratamento de dejetos. Um grande número de países da África e do Oriente Médio, assim como da Índia e da China, sofrem restrições agudas de água. O saneamento universal estaria, portanto, fadado ao fracasso.
Como ocorre com frequência quando voltamos a um problema por muito tempo negligenciado, o AIA revelou, por um lado, progressos educativos e tecnológicos que estavam na sombra, e, por outro, situações bem piores do que se imaginava. A consideração das populações que vivem em habitações “ilegais” levou a reavaliar para cima o número de pessoas cujas condições de vida são extremamente ruins. Muitos países, por medo de causar danos a sua imagem turística, adquiriram o hábito de subestimar os casos de cólera, o que é ainda mais fácil quando, tratando-se de uma “doença suja”, a vergonha incita muitos doentes a sofrê-la em silêncio3.
Antes de constatar qualquer progresso na frente sanitária, será necessário promover tecnologias alternativas de menor custo, mais fáceis de instalar e de manter do que os sistemas convencionais de canalização de esgoto familiares ao mundo industrializado e aos bairros abastados.
*Maggie Black é co-autora de The last taboo: opening the door on the global sanitation crisis, Earthscan, Londres, 2008.