Negligência do governo com quilombolas será julgada pelo STF
Ação exige que governo federal adote medidas de proteção às comunidades quilombolas. Julgamento inicia no dia 12 de fevereiro
Com quase um ano de pandemia e mais de cinco meses de ação no Supremo Tribunal Federal (STF), a Corte deve iniciar no dia 12 de fevereiro o julgamento virtual da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 742/2020). Protocolada no mês de setembro do ano de 2020, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), junto a diferentes partidos políticos, ingressou com a ação para impedir que sigam sendo perpetradas inúmeras omissões e ações ofensivas dos poderes públicos, sobretudo instituições federais, contra a população quilombola. Em sua manifestação nos autos, a União se limitou a dizer que um Plano de Contingenciamento da Covid-19 junto às comunidades tradicionais “é objeto de discussão atual no Poder Executivo Federal”, sem nenhum cronograma, proposta ou plano de ação que considerem as vulnerabilidades específicas dessa população à situação pandêmica declarada no Brasil desde 11 de março de 2020.
Quase um ano após o início da pandemia, não há um Plano de Combate à Covid-19 voltado para a população quilombola. De fato, as comunidades quilombolas experimentam durante a pandemia uma série de ausências: ausência de monitoramento, divulgação pública e regular dos casos envolvendo quilombolas infectados; de monitoramento, divulgação pública e regular de óbitos entre quilombolas; de medidas governamentais de apoio à proteção sanitária-territorial por meio do fornecimento de equipamentos de proteção individual; de medidas de proteção da posse tradicional quilombola durante a pandemia, gerando riscos de deslocamentos forçados coletivo dessas comunidades em período de máxima vulnerabilidade; de uma instância institucional de Estado no âmbito do Poder Executivo Federal voltada à consulta e participação da entidade representativa nacional quilombola; de ações em escala e com regularidade minimamente eficazes que viabilizem segurança alimentar e nutricional, a exemplo da distribuição de cestas básicas.
As comunidades quilombolas são grupo étnico-racial minoritário, protegidas pelo Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e pelo artigos. 215 e 216 da Constituição da República de 1988, sendo importante não apenas sua proteção territorial, mas a garantia da possibilidade de manutenção e reprodução de seus modos de viver, fazer e criar, considerados patrimônio cultural brasileiro. Ao não desenvolver medidas de proteção às comunidades quilombolas no contexto da Covid-19, o governo federal, em tamanha omissão, assumiu o risco de que a pandemia chegasse a esses territórios e gerasse grande prejuízo às comunidades.
Diante do caos instaurado pela pandemia e pela forma como vem sendo conduzida pelo governo federal, todas as dificuldades enfrentadas se intensificam e amedrontam quilombos que culturalmente, estimam muito seus sábios anciões (denominados griôs). As pessoas quilombolas idosas são fonte de memória. Delas, as comunidades quilombolas retiram ensinamentos e múltiplos saberes. É por meio delas também que acontece a continuidade e a preservação das tradições.
Em 2020 a Comunidade da Rasa, na cidade de Armação dos Búzios, estado do Rio de Janeiro, por exemplo, perdeu uma de suas maiores lideranças, Dona Uia, mulher valente, mãe de 11 filhos e líder da associação quilombola. Ela faleceu aos 78 anos de idade, vítima da Covid-19, que lhe afetou de forma brutal em razão também da existência de comorbidades, tais como hipertensão e diabetes, doenças muito comuns que atingem os quilombolas. Dona Uia foi vítima da Covid-19, do desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), e do descaso de um Estado estruturalmente racista, elitista e covarde.

Múltiplas vulnerabilidades
Vale lembrar que as comunidades quilombolas vivem, ainda com intensidade, todas as vulnerabilidades que atingem o conjunto da população negra por se tratarem de comunidades localizadas, em sua maioria, em áreas rurais, de difícil acesso e que eram, até 1988, invisibilizadas de processos de garantia de direitos. Após mais de 350 anos de escravidão da população negra no Brasil, das 5.972 localidades quilombolas identificadas pelo IBGE e das quase 6.300 comunidades noticiadas pela Conaq, apenas 5, 34% delas tiveram seus territórios titulados, ou seja, direito aos seus territórios tradicionais.
O racismo que se impõe sobre essas comunidades se mostra ainda mais agravado desde outubro de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), candidato e parlamentar declaradamente anti-direitos de quilombolas. Tal processo pode ser percebido a partir do sistemático desmonte das políticas públicas voltadas para esta população. A insegurança territorial dessas comunidades se agravou com a redução de aproximadamente 90% do orçamento voltado para a política de regularização dos territórios quilombolas, ao passo que entre 2019-2020, pode-se verificar redução no orçamento para as ações de Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais específicos (as chamadas cestas básicas) (87%), e de garantia de acesso à água pela construção de cisternas (76%). Ou seja, mesmo em tempos de pandemia o governo diminuiu recursos para ações voltadas para garantir alimentos das populações mais vulneráveis.
Insegurança alimentar e nutricional dos quilombos
Como um período de restrição aos espaços de participação, agrava o quadro de vulnerabilização das comunidades quilombolas no que tange à segurança alimentar e nutricional a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), por meio da Medida Provisória 870/2020. O Conselho constituía importante espaço de participação da sociedade civil na formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações e sua extinção importa em grave retrocesso no tema dos direitos humanos.
De acordo com informações publicizadas pelo Ministério Mulher, da Família e dos Direitos Humanos houve a aquisição e distribuição de 14.618 cestas básicas, voltadas para 7.309 famílias quilombolas, sendo 02 cestas básicas por família, sem indicar para qual período isso corresponderia e sem maior detalhamento. Todas as informações até agora divulgadas pelo governo federal se mostram insuficientes e sem demonstração de qualquer regularidade das medidas, reforçando o quadro de omissão destacado pela Conaq na Arguição que será julgada pelo Supremo. Ao tomarmos apenas a questão da alimentação, é necessário perguntar – uma família consome apenas 02 cestas básicas ao longo de quase um ano de pandemia?
Além disso, soma-se ao quadro de vulnerabilidade das comunidades o processo vivenciado pelo Incra, de desmonte de sua estrutura e capacidade operativa, cujo principal marco recente consiste na extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 12 de maio de 2016, por meio da medida provisória nº 726, que alterou e revogou a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, transferindo, naquele momento, suas competências para o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e atribuições para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República (Sead) do Brasil,. Posteriormente, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República foi extinta, sendo, ao mesmo tempo, passadas as suas atribuições para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários. Essa Secretaria é liderada por Nabhan Garcia, pecuarista e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), pasta ministerial historicamente antagônica à Política Quilombola.

Vemos que atualmente o governo federal se apropria da pandemia como uma nova forma de administração da vida e da morte da população quilombola. Nem mesmo a edição da Lei 14.021 de agosto de 2020, conversão do Projeto de Lei 1.142/2020 proposto pela deputada Rosa Neide (PT) e outros parlamentares, relatado pela deputada indígena Joenia Wapichana (Rede), prevendo inúmeras medidas de apoio à povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais, serviu para constranger o governo federal a adotar ações concretas de proteção às comunidades quilombolas. Ao contrário, verificamos que o quadro posterior à vitória legislativa dos povos foi de descumprimento da lei por parte do governo federal.
Nesse contexto, as comunidades quilombolas precisaram não apenas mobilizar meios de promover seu auto-isolamento comunitário, mas também garantir que algum monitoramento fosse feito dos casos de Covid-19 entre quilombolas. Com dificuldade, a Conaq vem reunindo um mínimo de informações sobre a ocorrência da pandemia nos territórios tradicionais. Isso porque o governo federal passou o último ano se eximindo de um monitoramento dos casos. Tal desinteresse e nenhuma vontade de saber voltado para a situação concreta dessas comunidades demonstra a realização do projeto de extermínio do grupo, anunciado de forma expressa nas campanhas eleitorais, como em sua fala no Clube Hebraica, no bairro de Laranjeiras, no Rio de janeiro, no ano de 2017: “Pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência), no que depender de mim, todo mundo terá uma arma de fogo em casa, não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.
Não há como não retomar tais falas, pois quando sobreveio a pandemia o projeto de morte das comunidades já estava em curso, e a pandemia se tornou mais um meio para determinar “quem deve morrer e quem deve viver”. Assim, as comunidades quilombolas, quando ingressam no STF para se contrapor a tal projeto brutal e necropolítico, esperam do sistema de justiça uma leitura concreta do quadro de violência que vem se impondo sobre elas. Atualmente, a Conaq contabiliza 1.431 casos monitorados, 4.914 casos confirmados e 203 óbitos entre quilombolas, números, como dito, subestimados em razão da negligência do Estado.
Quilombolas e a vacinação
No último dia 16 de janeiro, o governo federal divulgou uma primeira versão do Plano Nacional de Imunização. Nele, quilombolas não estavam contemplados dentre os grupos prioritários para as medidas de imunização. Tal Plano foi objeto de crítica pela entidade quilombola no âmbito da ADPF, sendo apresentado como mais uma prova do descumprimento de preceitos fundamentais que protegem as comunidades quilombolas. Em seguida, o governo federal revisou o Plano Nacional da Imunização, entretanto, se limitou a noticiar que a população quilombola teria sido incluída dentre os grupos prioritários, sem informar a definição da fase em que seria incluída, a definição do quantitativo populacional e número de doses da vacina. O Plano também não define um calendário de vacinação para os quilombolas, como está expresso para outros grupos prioritários, nem como está sendo efetivada a Coordenação do PNI para uniformização nacional da prioridade genericamente atribuída aos quilombolas pelo plano. De fato, o Plano se limitou a indicar genericamente que quilombolas seriam vacinados apenas após a 3ª fase, sem momento preciso.
Assim, o que se verifica atualmente é um quadro de confusão produzido, de uma multiplicidade de respostas dos estados na inclusão dessa população nos seus planos estaduais de vacinação, sem que haja efetivamente uma coordenação e garantia de participação da entidade nacional quilombola nos processos de definição de prioridades e protocolos a serem adotados. A participação das comunidades quilombolas na elaboração dos planos que precisam lhes contemplar atende ao direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Reivindicações
Dentre as medidas cautelares requeridas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas estão a inclusão de quilombolas no grupo de imunização prioritária, contemplados em primeira etapa de vacinação, com adoção de protocolos sanitários, a elaboração de um Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas que preveja a distribuição imediata de equipamentos de proteção individual (máscaras e outros). A Articulação também reivindica água potável e materiais de higiene e desinfecção às comunidades quilombolas, com indicação de cronograma, medidas de segurança alimentar e nutricional que incluam ações emergenciais de distribuição de cestas básicas, indicando ações específicas e cronograma de implementação, entre outras importantes e urgentes medidas como necessária proteção da posse tradicional quilombola, em um contexto em que quaisquer medidas reintegratórias agravariam o quadro de extrema vulnerabilidade.
Por tudo isso, as comunidades quilombolas de todo o Brasil aguardam posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto às omissões e ações ofensivas do governo federal que colocam em risco a vida da população quilombola e também a possibilidade de reprodução dos modos de viver fazer e criar dessas comunidades, de modo que possa ser cessado o quadro de extrema violação.
Maira Moreira é assessora jurídica da Terra de Direitos, doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
Vercilene Dias é assessora jurídica da Terra de Direitos e da Conaq, mestre em direito pela UFG e Quilombola do Quilombo Kalunga (GO).
Gabriele Gonçalves é assessora jurídica da Terra de Direitos, pós graduanda em Direito Previdenciário pela Cândido Mendes e Quilombola da Comunidade da Rasa (RJ).