Negociar a qualquer custo com Pyongyang
Do alto da tribuna das Nações Unidas, o presidente norte-americano prometeu “destruir completamente a Coreia do Norte” em caso de ataque. De sua parte, os dirigentes franceses e russos defendem o diálogo, mas fazem da paralisação do programa nuclear uma premissa inicial, e não o objetivo da negociação. Uma abordagem já fracassada…
Martine Bulard
Para dirigentes norte-coreanos, poderio nuclear é a única garantia de possível sobrevivência
O diabo nuclear escapou da garrafa. Poderá ser enclausurado de novo? Não é de hoje que ele faz das suas na República Popular Democrática da Coreia (RPDC): o primeiro ensaio data de 1993. Mas, desde o ano passado, Kim Jong-un manda soar o alarme a um ritmo alucinante: dez lançamentos de mísseis balísticos de alcance intermediário e intercontinental em vinte meses; três testes nucleares reivindicados.
Essa animação toda veio acompanhada de um desfile militar espalhafatoso e da difusão de imagens saturadas de mísseis e tanques (em 17 de abril último), de fanfarronadas belicosas e de ameaças contra cidades norte-americanas, que o homem forte de Pyongyang ameaça “reduzir a cinzas”, tanto quanto Guam, verdadeiro porta-aviões norte-americano em pleno Oceano Pacífico. O engenho lançado em 14 de setembro percorreu 3.700 quilômetros antes de mergulhar nas águas, mostrando que essa ilha, situada a 3.400 quilômetros da capital norte-coreana, não está mais a salvo. Até agora, o Dr. Fantástico da Ásia evitou disparar naquela direção. Só os japoneses ouviram o uivo estridente das sirenes por cima de seu território, à mercê da menor falha no equipamento.
Às provocações de Kim Jong-un, Donald Trump responde com frases de efeito e “tuitadas”. A Pyongyang, o presidente norte-americano promete “fogo e fúria como o mundo jamais viu” (8 ago.); com Pequim, considerada muito hesitante, ele ameaça cortar as pontes comerciais, pois “quem negocia com os norte-coreanos não poderá mais negociar conosco” (3 set.); a Seul, manda dizer que a estratégia de “apaziguamento” do presidente recém-eleito, Moon Jae-in, “não leva a nada” (3 set.).
Já foi o tempo em que o atual locatário da Casa Branca garantia estar “pronto a discutir com Kim, dependendo das circunstâncias”.1 As demonstrações guerreiras de Pyongyang e os falcões de Washington puseram fim às boas disposições trumpianas. O Pentágono e os especialistas norte-americanos estudam o cenário de uma guerra total ou parcial, preventiva ou defensiva, e mesmo o de um assassinato do dirigente norte-coreano, embora reconheçam que “todas as alternativas são ruins”.2
Também a França possui alguns entusiastas da guerra (por trás de suas escrivaninhas). “Em se tratando da Coreia do Norte, a opção militar é a menos arriscada”, assegurou da tribuna Valérie Niquet, responsável pelo polo Ásia da Fundação para a Pesquisa Estratégica.3 Os 25 milhões de pessoas que vivem na região de Seul, a menos de 60 quilômetros da fronteira norte-coreana, devem estar felicíssimas com essa ideia. Até Steve Bannon, ex-consultor estratégico do presidente norte-americano, que ninguém colocaria no campo dos pacifistas ruidosos, reconhece: “Não há solução militar”.4 Que importa? À semelhança de um chefe de Estado-Maior, a sinóloga francesa sonha remodelar a região com uma Coreia do Norte desnuclearizada e, por terra, uma China contida em suas ambições regionais, uma Coreia do Sul em ruínas, mas satisfeita porque “seu pedido de represálias contundentes” foi ouvido, e uns Estados Unidos reconfortados em seu papel de anjos da paz… Como no Iraque, sem dúvida.
Excetuando-se alguns conservadores empedernidos, a grande maioria dos sul-coreanos sabe muito bem das consequências de apostar na opção militar. Moon Jae-in aceitou, sim, a instalação do sistema antimíssil Thaad, que ele havia interrompido quando assumiu a presidência, em 10 de maio – e isso significa apenas mais armas no arsenal. Entretanto, pediu ao presidente norte-americano que não decida nada “sem consultar Seul” (é o mínimo que Trump deve fazer). E planeja, segundo um dirigente do Ministério da Unificação, conceder ao Norte “uma ajuda humanitária de US$ 8 milhões por intermédio de organizações internacionais como Unicef e Programa Alimentar Mundial”.5 O presidente fala em adotar o que chama de “via dupla”: pressões e diálogo. Mas, ao pender para a visão norte-americana, perde inteiramente o crédito.
Oportunidades perdidas
“O presidente Moon se sentou no lugar do motorista, mas seu carro não presta”, explica com grande precisão vocabular o professor Park Sun-song, do Instituto de Estudos Norte-Coreanos da Universidade Dongguk, de Seul. “É Washington que ele deve pressionar”, para que os norte-americanos abandonem sua política de tudo ou nada. E isso porque não tem nenhuma chance de conseguir uma rendição incondicional do dirigente norte-coreano. Ninguém resolverá pacificamente as tensões sem entender suas raízes.
Por mais paradoxal que possa parecer, Pyongyang tem medo – não de Seul, mas dos Estados Unidos. Os dirigentes norte-coreanos acham que os norte-americanos são bem capazes de invadir seu país para acabar com um regime publicamente qualificado de “criminoso”. O poderio nuclear lhes parece a única garantia possível de sobrevivência – a força do fraco contra o gigante militar mundial. Por não ter essa arma temível, eles explicam a quem queira ouvir, o Iraque foi destruído pelos norte-americanos, que para isso nem precisaram do aval da ONU. Já com o Irã, foram obrigados a negociar um tratado de “desnuclearização”. A Líbia renunciou em 2003 a seu programa de armamento nuclear com a promessa de se juntar ao campo das nações respeitadas. “Vimos o que aconteceu; sabemos o que valem essas promessas”, declarou um interlocutor norte-coreano, que prefere o anonimato. “Não fizemos tantos sacrifícios por nada.” Nem se cogita ali seguir o caminho de Trípoli.
Na verdade, o problema da nuclearização não data do último rebento da dinastia Kim. Como observa o historiador norte-americano Bruce Cumings,6 “esquecemo-nos com frequência de que foram os norte-americanos que, em 1958, introduziram pela primeira vez armas nucleares na península coreana” – ou seja, cinco anos após a guerra impiedosa entre o Norte e o Sul, e menos de quinze depois dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. Começava a corrida. Discretamente e com apoio soviético, a RPDC obteve as tecnologias necessárias, ainda que tenha assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) em 1985. A queda da URSS, aliada mais próxima do regime, convenceu-a a dominar essa indústria. Após a réplica petulante de George H. Bush a Kim Il-sung, avô do dirigente atual, que propunha iniciar discussões a fim de obter um tratado de paz, além de um pacto de não agressão, a Coreia do Norte disparou seu primeiro míssil em 1993.7 De início disposto a romper com Pyongyang, o presidente Bill Clinton acabou por concluir um acordo-quadro em 1994, cujo resultado não foi nada negligenciável: interrupção da construção do reator de Yongbyon, devidamente selado na ocasião, fiscalização das instalações, criação de um consórcio formado pelas duas Coreias, Estados Unidos, Japão e União Europeia para construir duas usinas nucleares de água leve, aptas a fornecer a eletricidade de que o país precisava, ajuda em alimentos e petróleo, prosseguimento das negociações para a normalização das relações. Mas não se foi além da conversa. Assim, quando em abril de 1997 Pyongyang solicitou admissão ao Banco Asiático de Desenvolvimento para financiar seu crescimento, Washington e Tóquio vetaram o pedido. “Mal começava a se abrir e a RPDC se viu sozinha e estrangulada por sanções internacionais”, notou o jornalista Philippe Pons.8 As usinas elétricas, por sua vez, não viram a luz do dia. George W. Bush (o filho), chegando ao poder em 2001, fechou todas as portas ao fim de uma série de manipulações (vazamento de informações que se revelaram errôneas, acusação de financiamento do terrorismo montada peça por peça…).9
Os conservadores norte-americanos estão agora persuadidos de que o regime, privado da ajuda soviética e às voltas com uma fome devastadora, pode ruir ao peso das sanções. Mau cálculo. Ébria de um nacionalismo exacerbado, a população cerra fileiras em torno dos dirigentes, que anunciam com estardalhaço seu retorno ao cenário nuclear. A RPDC se retirou do TNP em 2003, recusando qualquer controle por parte dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). Três anos depois, fez seu primeiro teste subterrâneo, dando um passo decisivo em direção à bomba. Fracassou, assim, a primeira rodada de “negociações dos seis” (as duas Coreias, os Estados Unidos, o Japão, a Rússia e a China) estimulada por Pequim, que pela primeira vez se envolvia ativamente. Os líderes chineses promoveram uma segunda rodada, que levou, em fevereiro de 2007, à paralisação das obras na central de Yongbyon e à volta dos inspetores da Aiea em troca de remessas de petróleo e suspensão (parcial) das sanções. De novo, a administração Bush se mostrou inflexível: não quis considerar a Coreia do Norte um Estado normal nem reduzir o embargo. Ela então brandiu novamente sua clava nuclear e realizou um segundo teste subterrâneo (maio de 2009), iniciando outro período de tensão que redundou em 2012 num acordo (comida em troca do fim dos testes) tão frágil quanto os anteriores. Sabemos o que aconteceu. A cada etapa, os dirigentes norte-coreanos dobravam a aposta.
A partir de 1993, nada menos que doze resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas foram adotadas. Contrariamente a uma ideia enganosa, a China aprovou todas, salvo em 1993 (quando se absteve). Isso não quer dizer que aplicasse zelosamente as sanções: a prova é o aumento contínuo das trocas comerciais entre os dois países, que passaram de US$ 3,46 bilhões em 2010 para US$ 6,53 bilhões em 2013, com um pequeno decréscimo em 2016 (US$ 6,05 bilhões). Desde meados de fevereiro, as compras de carvão cessaram, em seguida as de têxteis e de pescado. Os líderes chineses, contudo, se recusaram a fechar totalmente a torneira do petróleo, conforme exigia Trump.
Estranha relação essa entre Pyongyang e Pequim, que defendeu a existência de seu vizinho durante a Guerra da Coreia (1950-1953) ao preço exorbitante de pelo menos 1 milhão de mortos; é uma relação feita de bom entendimento e ódio velado. Pyongyang se aproveitou tanto da ex-União Soviética como da China para não ceder um milímetro de sua independência. Hoje, Kim Jong-un só conta consigo mesmo. Desde sua chegada ao poder em 2011 e a de Xi Jinping em 2013, os dois chefes de Estado jamais se encontraram – fato novo na história dos dois países. O dirigente coreano decidiu até mesmo eliminar todos os que, à sua volta, eram suspeitos de alguma simpatia pelos chineses – entre eles, seu tio, Jang Song-thaek, o número dois do regime, ostensivamente preso e executado em 2013. Vale dizer: os meios de pressão de Pequim são muito menos reais do que se pensa.
Ontem verdadeiro tabu na esfera pública chinesa, a questão das relações com esse vizinho turbulento vem agora à luz. Zhang Liangui, professor da Escola Central do Partido Comunista, não tem papas na língua: “As sanções impostas pela China são precárias e sem coerência. Por enquanto, mostram-se ineficazes e muito frágeis”.10 Críticas raras para um intelectual desse nível. Outros, como o professor Shi Yinhong, da Universidade do Povo (Renmin) de Pequim, julgam que, “ante a pressão norte-americana, a China multiplicou cada vez mais as concessões… a ponto de perder quase toda a margem de manobra política”. Os meios militares, diz-se em Pequim, veriam com maus olhos o abandono de Pyongyang, com o consequente aquartelamento de tropas norte-americanas ao longo do Rio Yalu, fronteira natural entre a Coreia e a China. Às vésperas do XIX Congresso do Partido Comunista Chinês – que será aberto em 18 de outubro –, Xi Jinping vai navegando com extrema prudência. O oficialíssimo Global Times, de resto, precisou lembrar que, embora “a China e os Estados Unidos concordem com a desnuclearização da península, divergem na maneira de alcançar esse objetivo. Washington acha que a crise pode ser resolvida com mais e mais sanções econômicas. […] Pequim ressalva que isso só se conseguirá pelo diálogo”.11 Lembremos ainda a ideia chinesa de “suspensão contra suspensão” – fim das atividades nucleares e balísticas contra fim de manobras conjuntas norte-americanas-sul-coreanas. A proposta, a bem dizer, caiu no vazio.
Como resume o presidente russo, Vladimir Putin, “os norte-coreanos prefeririam comer capim” a abandonar seu programa nuclear. Menos presente na RPDC que a China, a vizinha Rússia também se inquieta com a nuclearização da península e rejeita todo “estrangulamento” de Pyongyang, que a faria implodir.12 Os russos propõem a abertura de “discussões diretas” com os dirigentes norte-coreanos. Tal é, igualmente, a posição do presidente francês, Emmanuel Macron.13 Mas a França, único país europeu (juntamente com a Estônia) a não reconhecer a RPDC, não está à altura de influir nas soluções. Como sair dessa enrascada?
Uma paz em escala regional
Lamentemos ou não, a RPDC passou a integrar o círculo das potências nucleares, como, em seu tempo, o Paquistão e a Índia. Embora não fosse signatária do TNP, Nova Déli nem por isso se viu muito pressionada por Washington e as outras nações nucleares, que suspenderam as sanções contra ela. Já seu vizinho paquistanês não foi tão favorecido. Essas decisões de geometria variável não ajudam em nada a nos convencer da sinceridade dos arautos do desarmamento. Com efeito, o TNP mostra fraqueza ao conceder a cinco países o privilégio de impor aos outros o que recusam a si mesmos. Daí a importância do Tratado de Interdição das Armas Nucleares adotado pelas Nações Unidas em 7 de julho último, cujo objetivo é forçar todos os países a um desmantelamento controlado de seus arsenais.
Enquanto isso, Pyongyang dispõe de uma força de dissuasão nuclear. Em vez de fazer de seu desmantelamento um prelúdio da discussão, melhor seria iniciar um diálogo estratégico que previsse ao mesmo tempo o reconhecimento do regime, enfim livre de seu estatuto de pária, um tratado de paz sólido, a promessa de não agressão e o desarmamento recíproco. De nada adianta tapar o sol com a peneira: a força de ataque norte-coreana abala a ordem asiática. Tóquio, atualmente sob o guarda-chuva norte-americano, poderia ter sua própria bomba, tanto quanto Seul. É, pois, necessário pensar e agir de outra forma para evitar uma nuclearização em cascata da região.
De fato, segundo Lee Heajeong, professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Chung-Ang, de Seul, “se nos ativermos unicamente ao problema da Coreia do Norte, não haverá solução. O problema é o da paz em uma região que conheceu a ocupação japonesa, a guerra civil na península, a presença de tropas norte-americanas” e se congelou no status quo da Guerra Fria. Deve-se procurar um meio de “coabitação equilibrada entre as duas Coreias independentes, o Japão e a China, e avaliar o peso e o papel da presença norte-americana”. Não se conseguirá isso disparando mísseis.
*Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.