Nem tudo está perdido
Com a excessiva financeirização do capital, se ganha muito com juros e investimentos em alta tecnologia, mas apenas, como dizia o geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001), o “homem veloz” ganha.
Para o geógrafo David Harvey, há uma taxa quase mística de crescimento para uma economia de mercado. Segundo ele, informalmente estipulada desde os primórdios do capitalismo, seria de 3%. Se mantida anualmente, por muito tempo, levaria o capitalismo a encontrar saídas para os períodos de baixa do rendimento acumulado das taxas de retorno do capital (Mais-valia), o que indica, para Harvey, um problema sistêmico do capitalismo, relativo à absorção do excedente do capital.
Onde o capitalista pode investir o capital acumulado para que continue a acumular e a se concentrar nas mãos do capitalista, sem causar a carestia (inflação) que corrói seus patrimônios? A desvalorização patrimonial, pelo sistema capitalista, que protege a propriedade acima de tudo, é evitada com medidas legais e impostas pelo Estado, que é aparelhado pelo capitalista para que ele continue tendo sucesso. Estado mínimo é balela discursiva dos pseudo-liberais que conhecem muito bem os caminhos para manter a rentabilidade do capital, às custas da exploração das pessoas.
Entre 1750 e 1850, segundo Harvey, e podemos estender o período até, talvez, um tanto depois da II Guerra Mundial (anos 1960), o problema acima exposto não era grande porque o capital estava se formando ainda e não havia grandes e disseminados excedentes. Estima-se que até meados deste século XXI, o Produto Interno Bruto (PIB) mundial possa atingir US$100 trilhões. Como manter, assim, saídas rentáveis para esse excedente todo de capital? Como não provocar uma queda brusca nas taxas de acumulação pela inundação de dinheiro que poderá levar a uma queda brusca no valor das moedas fiduciárias (títulos públicos etc.) que, se hoje em dia rendem elevadíssimos lucros aos poucos que as detém, poderão se desvalorizar sobremaneira?
O argumento de que os capitalistas re-investirão seu capital acumulado no sistema produtivo, gerando riqueza e empregos (distribuindo renda? – faz-me rir!), não procede. Ao menos no Brasil, quando isso, efetivamente, aconteceu? Senão, de modo tênue, não foi possível pelas estruturas carcomidas e viciadas do poder elitista brasileiro, em períodos pontuais de nossa História, como, em termos monetários, no governo Itamar Franco e no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, mas especialmente e sobretudo, pelas políticas sociais nos dois governos Lula e no primeiro governo Dilma Rousseff. Houve, assim, de modo incipiente e não estrutural e contínuo, em períodos esporádicos e sempre com a intervenção do poder público.
Em 2019, foram 13 milhões de desempregados; 40 milhões de subempregados e de 20 a 30 milhões na informalidade. Em 2020, estamos piorando. Com a excessiva financeirização do capital, se ganha muito com juros e investimentos em alta tecnologia, mas apenas, como dizia o geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001), o “homem veloz” ganha.
Segundo estudo da Oxfam, em 2017, 82% da riqueza mundial ficou concentrada em 1% da população e praticamente nada restou para os 50% mais pobres do mundo. A situação não mudou de lá para cá; pelo contrário, até piorou. Em números: o mundo tem, segundo a Organização das Nações Unidas, aproximadamente 7.5 bilhões de pessoas; o 1% que ficou com 82% da riqueza produzida equivale a 75 milhões de pessoas; 3.5 bilhões dividiram quase os 99% restantes da riqueza; os restantes 3.8 bilhões, ou seja, 50% da população mundial, usufruiu virtualmente nada da riqueza mundial. E isso tudo é mantido pela força das armas ou pela manipulação midiática e eleitoral.
Como podemos dormir em paz em um mundo assim? Como pensar em um mundo bom e justo, com pessoas ruins, que deixam morrer seus semelhantes, por egoísmo, ganância e, não raro, apenas por serem diferentes?
E o Brasil, nesse quadro? A austeridade pregada no Brasil, como a que promoveu o congelamento dos gastos públicos por 20 anos por meio da Proposta de Emenda Constitucional 95 e que está aprovando medidas draconianas na Previdência e em programas sociais como o Bolsa Família, provavelmente levará, segundo estimativas de estudiosos da área, até 2030, se não for revertida, a catástrofes como o aumento crescente do nível de mortalidade infantil – que havia sido praticamente erradicada nos governos petistas, o que já recomeçou, infelizmente.
E lugares como o Rio de Janeiro, nesse quadro? Para eliminar as favelas, nossos gestores públicos estão acabando com o analfabetismo, melhorando a abrangência e a qualidade do atendimento da saúde, aprofundando a assistência social e gerando empregos, além de baixar impostos? Não, estão buscando propostas como mudar a designação dessas áreas urbanas para, por exemplo, “zonas residenciais multifamiliares”. Alguns chamam “locais de moradores de baixa renda”, outros de “Áreas de Especial Interesse Social” (AEIS). Decisões como essa abriram espaço para que as favelas (áreas sem infraestrutura urbana, em termos de mobiliário e condições dignas de vida) não deixassem de ser assim classificadas e isso pode abrir caminho para arbitrariedades, como remoções forçadas.
E nós, cidadãos, nesse quadro? Se nos conformarmos com o lugar social que as elites poderosas querem nos destinar, permaneceremos subalternos eternamente, pagando boletos e agradecendo por sermos explorados. É isso o que queremos para nós e para nossos filhos e netos?
Como o escritor austríaco Karl Kraus (1874-1936) disse, “o otimista acha este o melhor dos mundos; o pessimista tem absoluta certeza disso”. Já passou da hora de acreditar, junto com os pessimistas, que este é o melhor dos mundos, ou mesmo o mundo possível: é hora de mostrarmos para nós mesmos que este mundo tem jeito e que pode ser diferente e melhor, empunhando certo otimismo realista para não nos iludirmos novamente.
Carlos Fernando Galvão é geógrafo e pós-doutor em Geografia Humana