Ninguém se prostitui por prazer
Apesar da recente adoção de medidas repressivas na França, há um importante avanço na questão do preconceito em relação à prostituição, mas a razões econômicas e sociais que levam mulheres e homens a tomar este caminho continuam sendo menosprezadasLilian Mathieu
Um dos principais progressos do feminismo foi o de retirar da prostituição muito do que, antes, a explicava por si mesma. Atualmente, do ponto de vista da “procura”, recorrer aos serviços de prostitutas já não é uma atividade anódina, um componente ordinário e banal da sexualidade masculina, mas uma verdadeira transgressão. A ponto de um país como a Suécia, em 1999, torná-la suscetível de processos judiciais. Do ponto de vista da “oferta”, isto é, das pessoas que exercem a prostituição, também evoluiu a maneira de encarar o fato: a condenação moral que afetava as “as mulheres de vida fácil” desapareceu, dando lugar a uma visão mais marcada pela comiseração. Não mais culpadas de incitar à libertinagem e de difundir as “doenças venéreas” entre a população, as prostitutas são hoje, antes de tudo, consideradas vítimas (de dificuldades sócio-econômicas, de carências psicológicas ou ainda da violência dos proxenetas).
Embora positiva, essa evolução continua sendo frágil e parcial. Frágil porque retrocessos sempre são possíveis, como demonstra a decisão recente do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, de ressuscitar o delito de aliciamento passivo, que tinha desaparecido do Código Penal em 19931.
Prostituição e precariedade social
Na França, a lógica de repressão voltou à ordem do dia, em contradição com a iniciativa de abordar o tema pela assistência, adotada desde 1960
Uma lógica de repressão volta à ordem do dia, em contradição com a iniciativa de abordar o tema pela assistência, adotada pela França desde 1960. Desde então, as conseqüências nefastas para as prostitutas (aumento de sua clandestinidade, de sua precariedade, de sua insegurança, de sua exposição à AIDS e de sua dependência em relação aos proxenetas) não deixam dúvida alguma. Essa evolução da imagem da prostituição permanece igualmente parcial, pois a maior parte dos abolicionistas2 esquece freqüentemente sua dimensão social. Este esquecimento conduz não somente a uma interpretação truncada do mundo da prostituição, como, principalmente, a tomadas de posição que não preenchem as expectativas nem acabam com as preocupações e as necessidades reais das prostitutas.
Os vínculos entre prostituição e precariedade social não apenas são esquecidos, como simplesmente negados. No texto de uma autora abolicionista, por exemplo, lê-se que “as prostitutas pertencem a todas as camadas sociais” e que “a prostituição deixou de ser o apanágio exclusivo das categorias economicamente desfavorecidas3“. Uma afirmação que, no entanto, desmente todos os estudos – mesmo aqueles pouco atentos às origens e trajetórias sociais das prostitutas. Um exemplo é a pesquisa orientada por François-Rodolphe Ingold, junto a um universo de 241 mulheres e homens prostituídos na região parisiense, que mostra uma nítida maioria (41%) de pessoas originárias “de meios sociais modestos ou muito modestos, às vezes marginais4“.
Uma manifestação brutal de dominação
A imagem da prostituição pintada pela maioria das feministas e abolicionistas esquece, às vezes, um de seus aspectos essenciais: sua dimensão social
Já a pesquisa norueguesa de Cecilie Høigård e Liv Finstad conclui que “são as mulheres da classe operária e do lumpen proletariado que são contratadas para a prostituição5“. A escolaridade das prostitutas é igualmente muito limitada, como demonstra François-Rodolphe Ingold: “Se houve uma formação profissional (em 52% dos casos), ela foi quase sempre elementar (primeiro grau ou técnico-profissional) e só raramente se traduz num diploma6.”
Da mesma forma, as condições de existência das prostitutas são as mais precárias. Um estudo feito em 1995 junto a 355 mulheres e homens prostituídos em diferentes cidades francesas revela que 61% não têm assistência médica; somente a metade dispõe de domicílio permanente, enquanto 41% vivem em hotel (2% sem domicílio fixo) 7. O estudo ressalta também a freqüência das agressões: uma terça parte das pessoas pesquisadas afirmam ter sido agredidas, ao menos uma vez, entre os meses de janeiro e maio de 1995.
Por esses dados, pode-se considerar a prostituição não somente como uma das manifestações mais brutais da dominação masculina, mas também como uma das mais extremas nas relações econômicas e sociais. Observando a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho que têm as camadas da população excluídas do ponto de vista econômico e cultural (especialmente as mulheres), é possível ver como a prostituição se explica.
Um recurso de sobrevivência
As pesquisadoras Cecilie Høigård e Liv Finstad concluem que “as mulheres da classe operária e do lumpen proletariado são contratadas para a prostituição”
Vender o corpo, ou mais precisamente alugá-lo para uso sexual, constitui um dos últimos recursos possíveis quando os meios legítimos de aquisição econômica (principalmente pelo trabalho ou pelo auxílio social) são inacessíveis. A prostituição, de certa forma, faz parte da economia informal, assim como atividades (de modo algum exclusivas) como o roubo, a venda de drogas, a mendicância, ou ainda a venda de sangue, como acontece em países como os Estados Unidos. Nesse sentido, e ao contrário do que dizem algumas organizações de prostitutas ou certas feministas que defendem a “liberdade de se prostituir”, o engajamento na sexualidade venal nunca é um ato voluntário e deliberado. Produto da ausência de meios alternativos de existência, ele resulta sempre de um constrangimento ou, pelo menos, de uma adaptação resignada a uma situação marcada pela miséria, a carência ou a violência.
Esse aspecto constrangedor faz-se sentir diretamente nas camadas mais precárias e nas mais dominadas: jovens sem rumo, a quem o RMI (programa de renda mínima) é proibido até os 25 anos, toxicômanos desesperados que necessitam dinheiro com urgência para comprar o produto de que dependem, mães de famílias isoladas ou estrangeiras, em situação irregular, para quem a prestação de ajuda social é insuficiente ou inacessível… Uns e outros não vêem, muitas vezes, outro recurso para sobreviver (e eventualmente fazer sobreviver seus filhos) além de aceitar as solicitações de homens propondo pagar por uma relação sexual.
Frustração social e conformismo
Pode-se considerar a prostituição não só uma manifestação brutal da dominação masculina, mas também das mais extremas nas relações econômicas e sociais
Mas esse constrangimento, como se sabe, não é apenas econômico; pode também ser, em graus diferentes, a mistura de chantagem afetiva e violência física que empregam os proxenetas. A recente aparição de redes estrangeiras de proxenetismo mafioso, com métodos particularmente violentos, não deve conduzir a uma oposição entre as duas lógicas. Não só o proxenetismo, mas todas as atividades que provêm do banditismo, abrem uma oportunidade de enriquecimento rápido para os homens das classes populares sem perspectivas de futuro na economia legal. E a prostituição preenche um papel similar para as mulheres que lhes são submissas. Que elas tenham sofrido abusos ou recebido falsas promessas de trabalho, ou deixado conscientemente seus países para se prostituir (subestimando a violência e a exploração a que iriam se submeter), em nada muda o fato determinante: a procura, em ambos os casos, de um futuro melhor, em um outro país, onde a economia muitas vezes está devastada e com um sistema de proteção social arruinado.
Entretanto, nem todas as pessoas que se prostituem são submetidas a constrangimentos tão diretos e brutais. A frustração social constitui uma outra importante lógica de iniciação e, principalmente, de permanência no “mercado do sexo”. A prostituição representa, efetivamente, uma das raras vias de acesso a um nível de vida ao qual uma origem social modesta e um frágil nível de competência profissional não permitem a ascensão. Tendo, sempre de modo doloroso, ultrapassado o limite e aceitado engrossar a indignidade e o estigma, algumas prostitutas não almejam deixar o meretrício, pois sabem, de maneira pertinente, que o mundo do trabalho lhes é vedado e que mesmo o acesso a um emprego “normal” não lhes permitiria manter o mesmo nível de renda.
O medo da “inexistência social”
Vender o corpo, ou alugá-lo para uso sexual, constitui um dos últimos recursos, quando os meios legítimos de aquisição econômica são inacessíveis
É entre estas prostitutas em situação relativamente favorecida que se ouvem, de maneira mais constante, reivindicações de reconhecimento de sua atividade como uma “profissão por inteiro”, um reconhecimento que, segundo elas, passa prioritariamente pelo acesso à previdência social e ao pagamento da aposentadoria da qual são, quando consideradas como tais, excluídas. Estas exigências são muitas vezes suspeitas de responderem a uma lógica de rejeição das prostitutas mais precárias, acusadas, por aquelas que se consideram como “verdadeiras profissionais”, de baixar o preço, de aceitar relações não protegidas, solicitadas por inúmeros clientes e, desta forma, estabelecer uma concorrência desleal. E não confirmam minimamente a situação de extrema precariedade de todas as prostitutas. Sua atividade lhes permite viver o dia-a-dia, assim como se integrarem, ao menos economicamente, à vida social (na melhor das hipóteses), mas todas se vêem destituídas de proteção diante das eventualidades da existência (doença, agressão, acidente…) às quais são particularmente expostas.
Nesse sentido, a prostituição se encaixa plenamente na lógica da desfiliação social tão bem descrita por Robert Castel8: colocada à parte do mundo do trabalho e de suas proteções, ela representa uma região de vulnerabilidade, que se estende entre integração e exclusão, na qual as pessoas são reduzidas a atividades degradantes, arriscadas e muitas vezes clandestinas, para não serem totalmente engolidas pela inexistência social.
Criminalizando a pobreza
É entre prostitutas em situação relativamente favorecida que se ouvem reivindicações de reconhecimento de sua atividade como uma “profissão por inteiro”
Em tais condições, compreende-se que a opção por isolar a prostituição em locais (casas fechadas) ou zonas urbanas específicas não tem sentido algum. Quando esta é exigida por associações de moradores – vítimas de “perturbações” causadas pelas prostitutas – essa opção, na verdade, revela a pura lógica NIMBY (Not in my back yard – “No meu quintal, não”). Assim como a repressão ao aliciamento tem como único objetivo expulsar a prostituição do espaço público, relegando-a a locais clandestinos ou zonas isoladas, onde as prostitutas ficarão ainda mais vulneráveis.
Caso não seja integrada essa dimensão social e exigida uma verdadeira política social em relação às prostitutas9, os partidários do desaparecimento da prostituição não poderão entender as razões lógicas que levam centenas de mulheres e homens às ruas na busca de um cliente. Prova disso é a sua dupla visão das prostitutas: dependentes de proxenetas – a quem simplesmente substituiriam e defenderiam os interesses – ou desajustadas, necessariamente vítimas de traumas psicológicos. Isto desqualifica a priori qualquer pretensão por parte das prostitutas de se manifestarem publicamente e expressarem suas reivindicações. Conseqüentemente, algumas feministas e abolicionistas seriam levadas a tomar posições inaceitáveis para as prostitutas, que vêem nelas adversários com motivações puritanas e perdem a ajuda que representaria o apoio à sua luta, tão legítima quanto necessária, contra a política de criminalização da pobreza, instituída pelo ministro do Interior.
(Trad.: Celeste Marcondes)
1 – O fato de “por qualquer meio, inclusive pela maneira de se vestir ou por sua atitude ao agir publicamente na busca de outrem para incitá-lo a ter relações sexuais em troca de uma remuneração ou de uma promessa de remuneração” será passível de uma multa de 3.750 euros (13.150 reais) e uma pena de prisão de seis meses.
2 – Se denominam assim as organizações favoráveis à abolição da prostituição, entre as quais se destacam na França o Mouvement du Nid, a Fondations Scelles e o Movimento pela abolição da prostituição e da pornografia
3 – Ler, de Claudine Lagardinier, La Prostitution, Toulouse, Milão, 1996, pág. 16.
4 – Ler, de François-Rodolphe Ingold, Le Travail sexuel, la consommation des droges et le VIH, Paris, ed. IREP, 1993, pág. 54.
5 – Ler, de Cecilie Hoigard e Liv Finstad, Backstreets, Prostitution, Money and Love Cambridge, ed. Polity Press, 1992, pág. 15.
6 – Op. Cit., pág.54.
7 – Ler, de Anne Serre et al.,