Eu sou o Teatro Brasileiro
Da vida o espelho verdadeiro…
A formação é, no mínimo, singular: entre membros do Oficina, moradores e outros representantes do Bixiga, Zé Celso é um ponto esfuziante no centro da sala abarrotada. Puxando o coro, ele dança ao redor do vereador, que assiste à cena desconcertado.
Sambando neste carnaval
Com a minha arte que é imortal
Depois de barrar na tarde dessa quarta-feira a votação do projeto de lei 805/2017, conhecido como Projeto do Parque do Bixiga, o vereador Fernando Holiday, um dos expoentes do Movimento Brasil Livre (MBL), recebeu o grupo em seu gabinete.
Durante a conversa, a cada momento o argumento que melhor lhe cabia. Ora tratava o potencial Parque do Bixiga como cena do Teatro Oficina e, veja bem, “não cabe ao Estado reconhecer nenhum tipo de cultura”. O projeto, então, não poderia passar, pois seria uma “chancela” ao grupo de Zé Celso. Ora, voltava a recorrer aos argumentos em defesa da propriedade privada, afirmando que a situação das torres do grupo Silvio Santos não é isolada e deve se tornar emblemática em relação à propriedade privada, para que se replique em quadros parecidos no restante do Brasil.
O confuso balaio em que Fernando Holiday coloca Teatro Oficina, Parque do Bixiga e Torres do Silvio Santos não é, na verdade, nada incomum nos debates e cobertura da imprensa a respeito do caso. Ou melhor, dos casos.
A autorização que o grupo Silvio Santos busca para construir dois prédios nos terrenos circundantes ao Oficina e o Projeto do Parque do Bixiga (805/2017), de autoria do vereador Gilberto Natalini (PV), são duas propostas que correm paralelamente, a primeira no executivo e a segunda no legislativo. Embora lutem pelo mesmo espaço, a associação de que o parque é uma tentativa de barrar a construção das torres é rasa. E pode ser especialmente danosa à tentativa de aprovação se colocada como única razão de ser do projeto, desconsiderando os benefícios que a implementação deste traria ao Bixiga — o bairro conta, assim como todo o centro da capital paulista, com um dos menores índices de área verde por habitante de São Paulo — e, para além do Oficina, é uma demanda dos moradores e de outras entidades de destaque da região como a escola de samba Vai Vai e centros religiosos, como os terreiros de candomblé e as igrejas católicas.
Apesar do caso ter ganho maior notoriedade do ano passado para cá, a ideia de uma área verde ao redor do Oficina, assim como a luta travada com o grupo Silvio Santos, não é recente. A arquiteta que projetou o Teatro, Lina Bo Bardi, já a previa, nomeando essa região circundante de Anhangabaú da Felicidade. Faleceu em 1992, sem ver o plano do parque executado. O Oficina já vinha há alguns anos tentando colocar o projeto em prática por outras vias, como pela Secretaria Municipal de Cultura, mas apenas no ano passado começou a correr no legislativo como de fato um Projeto de Lei. Apesar das mudanças em vias burocráticas, de Anhangabaú da Felicidade para Parque do Bixiga, a essência do espaço seria a mesma: muito distante de um Ibirapuera, a ideia é que este seja um parque voltado à produção de arte e à cultura.
Não se sabe quando o projeto voltará a ser votado, e muito menos como se dará a discussão em torno de sua aprovação, que em vista da reunião com o vereador do DEM, reunirá discenso e equívocos. “Ele sai da pauta porque ele não tem como se posicionar contra um parque. Ele legisla para o povo, como ele vai negar a construção de um parque público? Então ele decide comprar a questão das torres, em defesa do patrimônio privado”, afirma Marília Gallmeister, arquiteta do Oficina.

Enquanto isso, o projeto de Silvio Santos corre a passos largos. Um grupo do Teatro Oficina foi até a sede do Iphan em São Paulo, na tarde de hoje, entregar o recurso para tentar reverter a decisão do Instituto, que no último dia 25 deu parecer favorável à construção das torres. Para que o grupo SS possa de fato executar a obra, precisa da autorização das três instâncias perante as quais o Teatro Oficina é tombado: o Conpresp, o Condephaat e o Iphan — respectivamente representações municipal, estadual e federal. Com o parecer favorável dos dois últimos (o Condephaat já havia se decidido em outubro do ano passado), agora só resta a decisão em instância municipal.
A justificativa para a aprovação do Iphan é de que a proposta apresentada pela construtora cumpre tecnicamente os requisitos de preservação do entorno, nos moldes em que o Oficina foi tombado: delimita-se um cone visual, a partir de cada lado da parede de vidro que fica no lado oeste da construção, com abertura de 45º e que se estende por 20 metros.
O parecer, embora bastante tecnicista, é, ao ver das arquitetas Marília Gallmeister e Carila Matzenbacher, falho em diversos aspectos. Uma dessas falhas é o fato de ele não ser pensado de uma perspectiva interna e externa: quem está dentro do teatro poderia até conseguir, ainda, visualizar parte da paisagem pelo janelão de vidro, mas a obra arquitetônica de Lina não poderá mais ser contemplada de todas as perspectivas por quem a observa do lado de fora.
Para além desses fatores, a falta de diálogo também incomodou. “O tombamento do Iphan se dá no mérito do bem material e do seu valor histórico. O valor histórico da construção do Teatro Oficina é indissociável da companhia que o fundou e que ainda hoje atua nele, que tem como figura central Zé Celso”, argumenta Marília Gallmeister.
O Iphan declara que é preciso ainda que o projeto seja autorizado por outros órgãos no que tange não só ao tombamento em outras instâncias, mas em relação também às normas urbanísticas e de uso do solo. No mais, afirma que seu parecer se refere estritamente ao tombamento e sua área de entorno e, sendo assim, está tudo dentro do previsto. O Teatro Oficina segue clamando para que se pense fora do cone.
*Taís Ilhéu é jornalista