No Equador, a difícil construção de um serviço público de saúde
Nos últimos dez anos, o governo equatoriano vem tentando restaurar o poder do Estado, em particular para garantir a todos os cidadãos acesso aos cuidados médicos – uma empreitada bastante auspiciosa, mas por vezes um tanto quanto inábil
“Sigchos nos dá boas-vindas”, exclama o doutor César Molina apontando o dedo para o pico nevado que se revela ao longe sob a luz do sol. A subida demoraria uma hora, entre montanhas e encostas, até nosso veículo chegar ao hospital tinindo de novo. Desde sua abertura, em janeiro de 2017, cerca de cem pessoas estão trabalhando nesse estabelecimento de arquitetura sóbria, minimalista, moderna. Na fachada, figura o símbolo nacional instaurado pelo governo do ex-presidente Rafael Correa (2007-2017): um círculo cromático, ou a “marca do país”.
“Antes da eleição de Rafael Correa, mais de um terço do orçamento nacional era destinado diretamente a ONGs”, contava Carlos Jativa em 2010, quando ocupava o cargo de embaixador do Equador em Paris. O presidente e seu movimento político, Alianza País, prometiam uma virada de 180° e o restabelecimento do papel “fundamental” do Estado. As obras não faltaram, mas parecia um jogo de pega-varetas: quando se manipulavam algumas peças, outras podiam colapsar. Por exemplo, no campo da saúde.
“Durante os trinta anos que precederam a eleição de Correa, nenhum hospital público foi construído”, ressalta Maria Verónica Espinosa, ministra da Saúde. “Isso ilustra a importância que era dada à saúde pública neste país”, completa. A Constituição de 2008 marca uma ruptura: o texto afirma a responsabilidade do Estado de assegurar o acesso gratuito a cuidados e medicamentos. E, quando se fala em dever, também se fala em recursos: entre 2008 e 2016, o governo investiu mais de US$ 15 bilhões (a moeda utilizada no país desde 2000), multiplicando por cinco a média anual de gastos de saúde no período de 2000 a 2006. Já o número de funcionários atuando no ministério passou de 11.201 para mais de 33 mil entre 2008 e 2015, um salto acompanhado de aumentos salariais1 (ver boxe).
Cobertura social universal
O governo de Correa, porém, herdou dificuldades estruturais, como a segmentação do sistema. Na esfera pública, coexistem quatro entidades: o Ministério de Saúde Pública (MSP), o Instituto Equatoriano de Segurança Social (Iess), o Instituto de Segurança Social da Polícia Nacional (Isspol) e o Instituto de Segurança Social das Forças Armadas (Issfa). “São quatro subsistemas no setor público, aos quais convém somar o setor privado, as ONGs. E cada um tem suas próprias normas, regras e limitações”, continua Espinosa. Imaginemos um cidadão equatoriano médio antes da eleição de Correa, em 2006. Por falta de recursos, ele desiste de se filiar ao Iess (financiado por um sistema opcional de cotas patronais e salariais). De repente, adoece e deve se submeter a uma cirurgia delicada que os hospitais do Ministério da Saúde não realizam. Sem chance: as portas dos hospitais do Iess estão fechadas para ele, pois a entidade exige um mínimo de três meses de carência antes de admitir um paciente. Sem possibilidade de negociação.
Desde 2008, a Constituição impõe a busca de uma solução para essa dificuldade. Graças às receitas ligadas ao setor petroleiro, o novo poder instaura uma cobertura de saúde universal e obrigatória, assim como uma rede pública integral de saúde que assegura a admissão de pacientes e o reembolso de gastos médicos, independentemente do instituto de saúde pública ao qual o cidadão se apresente. Não contente em tornar a afiliação ao Iess obrigatória para os assalariados (e voluntária para os trabalhadores informais),2 dois anos depois o poder público estendeu a cobertura aos cônjuges e crianças sem custos adicionais. “O Iess conta hoje com mais de 3,5 milhões de inscritos [contra 2,5 milhões anteriormente], mas deve efetivamente cobrir cerca de 9 milhões de pessoas”, indica o economista José Martinez. Incapaz de atender a essa demanda, o organismo precisa transferir pacientes a clínicas, hospitais, laboratórios e profissionais privados. Entre 2008 e 2015, o instituto firmou 846 contratos com prestadores de serviço, por um montante de US$ 3,2 bilhões.3 “O Iess se tornou o cliente mais rentável do setor privado”, conclui Martinez.
Trata-se de um problema de fato? “Para uma pessoa que descobre o acesso aos cuidados, qual é a diferença se eles são oferecidos pelo Estado ou pelo setor privado?”, questiona-se Juan Cuvi, diretor da Fundação Donum. “A dificuldade é que grande parte dos investimentos realizados em saúde nos últimos dez anos terminou nos bolsos do setor privado, que, em geral, superfatura seus serviços. Dessa forma, atrasa-se o processo de tornar o Estado capaz de responder diretamente às demandas de saúde e também se facilita a corrupção”, analisa. Pela televisão, em 2 de janeiro de 2016, Correa chamava atenção para a enorme diferença entre o número de “complicações” (com custos adicionais exorbitantes) durante cirurgias realizadas no setor público e as registradas no privado: “Cerca de 20% nos estabelecimentos do Iess, e quantas no setor privado? Cerca de 80%. Há algo nisso, meus queridos compatriotas!”. Sobressalto? A transferência de pacientes diminuiu em um quarto entre 2015 e 2016 (últimos números disponíveis).
Poderia passar por uma estufa onde repousariam plantas exóticas, em vez de pacientes. Estendendo-se por uma superfície de 36 mil metros quadrados, o hospital geral da cidade de Puyo revela sua arquitetura particular à beira da floresta amazônica, no leste equatoriano. “Abrimos em março de 2013 e dispomos de uma capacidade de 125 leitos”, anuncia Christian Ruiz, que gere a instituição. A entonação de nosso anfitrião evoca a do presidente Correa na inauguração do estabelecimento: na ocasião, ele convidou a população a visitar o hospital para “sentir orgulho da nova pátria”.
ONGs sob vigilância
Durante nossa visita, contudo, os serviços destinados aos bebês prematuros estavam comprometidos por uma pane no ventilador neonatal, o único disponível. A responsável, incomodada por constatar o problema diante de um jornalista estrangeiro, pediu a transferência do pequeno paciente a outro hospital público, a duas horas dali. “Infelizmente, essas coisas acontecem em qualquer lugar”, comenta Ruiz. Qualquer pessoa que visitasse alguns hospitais franceses concordaria, sem hesitar. Mas o caso não é isolado. Para alguns observadores, ao contrário, esse tipo de falha revela um problema maior.
Antes da eleição de Correa, o Equador conheceu um período de extrema instabilidade política. Entre 2000 e 2007, o país viu desfilar quatro presidentes, dos quais apenas dois terminaram seu mandato. “A equipe de Correa precisou correr para resolver os problemas mais visíveis e assim assegurar a permanência no poder e a vitória nas eleições seguintes. Foram tomadas medidas, como construir novos hospitais, que, embora tenham sido exibidos, ainda não dispõem de recursos, materiais ou especialistas necessários para funcionamento”, explica Ivan Cevallos, ex-chefe do serviço de cirurgia do Hospital Carlos Andrade Marin (estabelecimento do Iess), em Quito.
Pediatra no setor privado, Beatriz León tem uma posição mais dura: “Definiu-se a necessidade de refazer tudo, do zero”, ironiza. Abandonar até o que não estava funcionando tão mal. Para ilustrar sua crítica, ela conta a história do Instituto Nacional de Higiene e Medicina Tropical Leopoldo Izquieta Pérez. Em 2012, por decreto presidencial, ele foi substituído pelo Instituto Nacional de Saúde Pública e Pesquisa (Inspi), sob controle do Ministério da Saúde. “Sem dúvida, nem tudo era perfeito no Izquieta Pérez. Mas veja, um médico que exerceu 25 anos de profissão, mesmo não sendo um bom médico, tem 25 anos de experiência.” O Instituto Izquieta Pérez tinha setenta profissionais com esse perfil. Seu sucessor de bochechas rosadas ainda não demonstrou eficiência. Segundo uma publicação científica da Fundação Donum, o Izquieta Pérez produzia, por exemplo, um soro antiofídico eficiente, enquanto atualmente esse tipo de medicamento está sendo importado da Costa Rica.
Reconstruir o Estado equatoriano implicava principalmente restaurar o controle sobre setores dos quais ele estava afastado. No ápice do período liberal, essa retração do Estado era prioridade, tanto no Equador como em outros lugares. Depois de organizar a incapacidade de atender os pobres (com 45% da população em situação de pobreza extrema em 1990), Quito apelou às ONGs para terceirizar a política social. O número de organizações desse tipo passou de 104 entre 1960 e 1980 para 376 nos quinze anos subsequentes.4
Essa lógica desagradava a Correa, que, jacobino de espírito, criou em 2007 a Secretaria Técnica de Cooperação Internacional (Seteci), “um exemplo inédito de regulação de atividades de ONGs estrangeiras”, entusiasma-se Gabriela Rosero, secretária de Infraestrutura entre 2009 e 2016. “Tínhamos casos de ONGs internacionais que terceirizavam certas atividades a ONGs nacionais e transferiam fundos. A que eram destinados esses recursos? Era quase impossível determinar. Era preciso criar um marco, instaurar formas de controle”, explica.
Entre as ferramentas jurídicas utilizadas, o decreto de 16 de junho de 2013 cristaliza as tensões. Ele enuncia uma série de motivos que justificam a dissolução de associações, entre os quais: “Consagrar-se a atividades políticas partidárias”, desestabilizar “a paz pública” ou “ingerir-se em políticas públicas”. Em 2014, a medida conduziu à expulsão da sulfurosa organização Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), conhecida como um dos carros-chefe do intervencionismo norte-americano. Mas também atravancou a ação de ONGs que o Estado neoliberal havia recrutado com o convite de “entrar” para o campo das políticas públicas.
Daí as tensões e certa desorganização, às vezes em detrimento dos pacientes. “Antes da chegada de Correa, nossa colaboração com o ministério funcionava melhor, estávamos mais implicados na tomada de decisão”, conta a médica Maria Elena Acosta nas instalações da associação Kimirina, que trabalha com HIV e doenças sexualmente transmissíveis. “E mais: eles estão centralizando tudo”, acrescenta. Posição antiestatal de nossa interlocutora? “De modo algum. Tudo isso poderia ser positivo, mas essa reestruturação é acompanhada de uma vontade de obter resultados imediatos. Ora, nesse campo da saúde, isso é impossível. Quando uma medida não funcionava imediatamente, ela era modificada. Continuamente. Essa maneira de proceder nos impediu de vislumbrar um trabalho de longo prazo com o ministério”, explica.
A isso, somam-se algumas divergências políticas. Quando perguntamos se poderia dar um exemplo de uma “medida considerada negativa que tenha sido desfeita”, nossa interlocutora evocou o programa Estratégia Intersetorial de Prevenção de Gravidez entre Adolescentes (Enipla). Criado em 2011, o programa se traduziu – entre outros elementos – pela abertura de uma linha telefônica gratuita com nome explícito: “Falemos seriamente, a sexualidade sem mistérios”. Em novembro de 2014, o presidente Correa nomeou para a direção do programa Mónica Hernández. Religiosa, próxima ao Opus Dei, ela redefiniu a relação das autoridades com os temas da prevenção: acabou com a linha telefônica e criou o programa Plano Família Equador, que visa “restaurar o papel da família”. Foi uma reviravolta em relação às medidas anteriores, explica Acosta, pontuando ainda que, “aqui, as primeiras experiências sexuais acontecem cedo, aos 12, 13 anos”. Na época, várias associações, como a Frente Equatoriana de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, denunciaram uma política de saúde carregada de “visão religiosa” e longe das “realidades científicas”.5
Autonomia dos povos indígenas
Por outro lado, também acontece de a máquina estatal se transformar em guardiã da autonomia das populações, notadamente indígenas. Chugchilán, província de Cotopaxi. O doutor Molina e o funcionário Segundo Pilatasig nos conduzem pelo topo enevoado de uma montanha onde reside uma minúscula comunidade indígena. Homem de pequena estatura, Pilatasig é também indígena da comunidade Guayama Grande. Trabalha no “desenvolvimento da interculturalidade no campo da saúde”.
Ao chegarmos ao destino, somos acolhidos por uma velha senhora com um chapéu e rodeada de crianças. “É a parteira do vilarejo”, explica. Agente de intermediação entre o ministério e as populações indígenas da região, Pilatasig fala espanhol, quéchua e vários dialetos. Seu trabalho consiste em “desenvolver a articulação entre as técnicas modernas de medicina e os saberes ancestrais das comunidades. No caso das parteiras, entramos em contato com elas desde sua designação pela comunidade e com elas realizamos formações sobre medidas básicas de higiene e detecção de sinais de complicação durante a gestação, para que nesses casos possamos eventualmente assumir os cuidados da paciente”. Estado centralizador? Estado erradicador de diferenças? “Pela primeira vez, a cultura indígena e suas práticas são reconhecidas e protegidas oficialmente. E atualmente isso está inscrito na Constituição”, responde ele.
*Loïc Ramirez é jornalista.
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Pulsações
Esperança de vida
2005: 74,2 anos
2015: 75,8 anos
Mortalidade infantil (por mil nascidos vivos)
2005: 33,3
2015: 17,6
Investimentos em saúde (porcentagem do PIB)
2005: 6,6
2014 (último número disponível): 9,2
Fonte: Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal).