Ser reprimido à porta da residência de um Grande Aiatolá, em pleno centro da cidade santa de Qom, é por si só um acontecimento insólito. Até porque esse prelado, o mais influente do alto clero do Islã xiita e que durante longos anos foi o delfim designado pelo imã Khomeyni no comando da República Islâmica, costumava receber os visitantes estrangeiros com muita cordialidade. Hossein Ali Montazeri, com 77 anos, caíra em desgraça em 1989, depois de ter criticado, entre outras coisas, as execuções maciças de prisioneiros políticos. Foi detido há 18 meses, após ter voltado a pôr em causa o caráter teocrático da República Islâmica, a instituição do Velayat Faguih (textualmente, o governo do jurisconsulto), que é a mais alta instância político-religiosa do Estado. Defende que o Faguih, “guia supremo” da república, não tem legitimidade divina e deveria portanto ser democraticamente designado para um mandato de duração limitada e revogável; que a sua função deveria ser essencialmente de natureza espiritual; que seria preferível escolher um leigo, respeitado pelos seus conhecimentos teológicos e pelas suas qualidades humanas, do que um membro do clero desprovido de tais atributos. O seu “crime” supremo é ter desqualificado o actual Faguih, sucessor de Khomeyni, o aiatolá Ali Khamenei, que não tem, na sua opinião, as qualidades exigidas.
O aiatolá Montazeri tem vários rivais, tanto no alto como no baixo clero, por vezes mais radicais do que ele próprio. Pelo menos outros dois aiatolás estão, tal como ele, em prisão domiciliar. Outros foram reduzidos ao silêncio, ameaçados de se verem privados dos subsídios do Estado, agredidos por membros de um grupo paramilitar, os “partidários do Hezbollah” (o partido de Deus). O baixo clero, reconhecido como sendo em grande parte contestatário, também não é poupado. Um número indeterminado de molás abertamente em dissidência foram privados de suas funções clericais, vivem miseravelmente em prisões, ou correm o risco de vir a ser muito brevemente submetidos ao terrível “tribunal dos clérigos”. Privados dos favores do poder, dos quais se beneficia apenas uma ínfima minoria de religiosos, padecendo da impopularidade que afeta o conjunto do clero — ao qual a opinião pública atribui coletivamente a responsabilidade pelos delitos do regime —, estes molás aderiram a uma visão do Islã diferente da dos potentados religiosos. Alguns deles chegam a desejar que o clero se retire do aparelho do Estado a fim de reencontrar a função moral — e eventualmente contestatária — que detinha antes da revolução de 1979.
Afastar-se dos textos santos
O movimento passou a falar mais alto a partir da eleição para a Presidência da República do reformador hodjateleslam Mohamed Khatami, em maio de 1997. O caso de Mohsen Kavidar é exemplar. Em entrevistas anteriores, este jovem molá (de 39 anos), professor de filosofia, sustentava posições pouco ortodoxas — desde que elas não lhe fossem atribuídas. Deixou cair a máscara há dois anos. Aproveitando as liberdades que tomaram algumas novas publicações da oposição, o filósofo transformou-se em militante político. Assinou crônicas polêmicas denunciando a natureza teocrática do Velayat Faguih e acusando os detentores do poder de terem restabelecido as práticas totalitárias do regime monárquico. E, citando Jean-Jacques Rousseau, clamou pela instituição de um “contrato social” regulamentando as relações entre o Estado e os cidadãos. Foi além da “linha vermelha” do tolerável quando exigiu que “toda a luz se faça” sobre a onda de assassinatos políticos do outono de 1998, dando a entender que teriam sido telecomandados por altos dirigentes, leigos ou religiosos. Foram detidos os autores do assassinato do político da oposição Darius Fourouhar e da sua esposa, bem como do de dois escritores leigos, mas o inquérito, mantido em segredo, ainda não foi concluído. Tendo defendido insistentemente que a identidade dos criminosos fosse revelada e que o processo fosse tornado público, Kadivar foi condenado pelo temido “tribunal dos clérigos”, em abril passado, a 18 meses de prisão.
Os membros conservadores do clero qualificam seus adversários como “revisionistas”, um termo que pretende ser injurioso. Mas os dissidentes respondem que o Ijtihad (o esforço de interpretação da palavra santa) decorre de uma prática reconhecida e encorajada pelo Islã xiita, que é a confissão largamente majoritária no Irã. O Mojtahed tem até mesmo o direito de fazer julgamentos inovadores uma vez que, em princípio, a jurisprudência islâmica não é rígida. Em certos casos, este privilégio levou à justificação da separação entre o Estado e a religião, a uma laicidade de fato, quando não de direito. Numerosos especialistas em jurisprudência islâmica, teólogos e filósofos deram esse passo, sem todavia admiti-lo explicitamente, para não ficarem expostos às intempéries do aparelho repressivo. O conceito de laicidade, ignorado pelos livros sagrados e sem tradução na língua persa, é considerado pelo poder instalado como a negação simultânea do Islã, da Constituição da República Islâmica e da própria revolução.
O xeque Mohamed Shabistari — um mojtahed reconhecido e respeitado em todo o mundo muçulmano, professor de filosofia islâmica na Universidade de Teerã — é classificado pelos seus censores como “liberal”. Grande, esbelto no seu manto eclesiástico, com um turbante branco coroando uma face de traços harmoniosos, colar de barba branca cuidadosamente aparada, óculos de escamas, o teólogo exprime-se selecionando criteriosamente as palavras: “No Islã, não há nenhuma forma constrangedora de instituições estatais. Tanto pode ser legítimo um governo que se inspire nos valores supremos do Islã, sobretudo num país profundamente crente e tradicional como o nosso, como pode um Estado islâmico ser, aos olhos dos textos sagrados, um contrasenso. A instituição do Velayat Faguih decorre, portanto, do domínio da política e não da religião. Nossa Constituição, à qual adiro por dever cívico, justapõe os direitos divinos e os deveres dos cidadãos. Esta mistura dos gêneros está na origem de muitos dos nossos problemas. Um dia, será preciso sairmos dessa contradição, adaptando-nos às exigências da modernidade”.
É a abertura para uma das palavras-chaves do debate que apaixona a opinião pública. O filósofo muçulmano Abdel Kerim Souroush (também ele influente no seio do clero e da sociedade civil e cujas idéias, como se diz de modo lapidar, “estão no poder” desde a eleição do presidente Mohamed Khatami) é um audacioso renovador, porque se afasta decididamente dos textos sagrados, precisamente em nome da modernidade. “É preciso que cessemos de nos enganar com pretensa ideia de que o Islã contém ensinamentos que estão em conformidade com todas as demandas de uma sociedade moderna, como a democracia ou os direitos humanos. A religião do Profeta determina sobretudo as obrigações dos crentes, enquanto a democracia garante os direitos dos cidadãos. Cabe a nós, intelectuais do terceiro mundo, torná-las compatíveis”.
Como? “Tentando simplesmente imaginar quais seriam as posições do Profeta se ele tivesse que voltar à Terra e viver entre os nossos contemporâneos. Ele saberia distinguir entre os princípios fundamentais do Corão, muito pouco numerosos, e a enorme quantidade de julgamentos conjunturais que há 14 séculos correspondiam a uma sociedade muito diferente da nossa”. Desde então, explica o autor a título de exemplo, caducaram as instituições do direito divino (o Velayat Faguih), as sanções penais “islâmicas”, a condenação à morte dos apóstatas (alusão ao caso de Salman Rushdie, entre outros), a desigualdade entre o homem e a mulher, as discriminações que atingem os não-muçulmanos (os dhimmis) no seio de um Estado muçulmano.
Ainda há pouco, Abdel Kerim Souroush avançava cuidadosamente no domínio religioso e recusava-se a penetrar no espaço político. Não é estranho, portanto que lhe tenha sido retirada a cadeira de filosofia na universidade, que já não possa usar da palavra em público sem ser fisicamente agredido pelos hezbollahi, que jamais ouse aparecer na cidade sem ser de carro e acompanhado, e que encare mesmo a eventualidade de emigrar? Razões há, no entanto, para que ele se sinta satisfeito: é um autor de sucesso, sendo a tiragem média dos seus livros duas ou três vezes maior que a de outras obras editadas; e, mais do que no resto do país, seus livros têm sido lidos na cidade santa de Qom, onde ele conta com numerosos adeptos entre o baixo clero e os seminaristas.
Mais democracia, e mais repressão
As liberdades públicas, e sobretudo a da imprensa, registraram um crescimento sem precedentes desde a ascensão à presidência de Mohamed Khatami, que delas fez seu principal cavalo de batalha. A repressão exercida pelo Estado sob direcção do “Faguih” Aiatolá Khamenei agravou-se nas mesmas proporções. O primeiro aparece como chefe da oposição liberal face ao líder dos conservadores. Esta “coabitação à iraniana”, onde o que está em jogo é o poder supremo e talvez o próprio futuro da República Islâmica, delineia-se como espécie de guerrilha, como uma guerra de posições em que as interpretações contraditórias do Islã são apenas um dos aspectos. Os meios de comunicação constituem a arena central dos confrontos. Enfrentando as emissoras de rádio, a televisão, e inúmeras publicações, controladas pelos conservadores, militam agora por um “aggiornamento” numerosos jornais e revistas.
Ainda que evitem tocar explicitamente em temas especialmente delicados e, sobretudo, tidos como secundários para o debate em curso — como a proibição do consumo de álcool ou o uso obrigatório do véu pelas mulheres — , os jornalistas defendem corajosamente os princípios que foram tema central da campanha eleitoral do novo presidente: o Estado de direito, as liberdades públicas, os direitos das pessoas, o pluralismo, a legalização de todos os partidos que reconhecem a Constituição (mesmo que contestem algumas das suas disposições), o funcionamento do sistema do Velayat Faguih (a figura do Faguih, infalível como um papa, permanece, no entanto, inatingida). A imprensa reformista de todos as tendências — entre as quais estão Sobhe Emrouz e Khordad, próximos da Presidência da República, Salaam (órgão da esquerda islâmica), Nachat e Kian (esquerda independente), Zanan (feminista) e Hamshahri (direita modernista) — publica os textos e as declarações dos teólogos “revisionistas” e também daqueles que, embora conservadores enquanto religiosos, são favoráveis às liberdades.
A resposta do poder a estes desafios assumiu diversas formas: eliminação de publicações, que logo reaparecem com novos nomes, detenção de jornalistas e cronistas, que voltam à carga assim que são libertados, campanhas de intimidação nos meios de comunicação, agressões físicas, ameaças de morte anônimas ou proferidas por organizações fantasmas e, por fim, assassinatos cuja autoria o ministério das informações se viu forçado a atribuir a alguns dos seus agentes — que teriam agido por conta própria.
“A era dos assassinatos acabou”, exclamou Mohamed Khatami, num discurso recente; e o eco de suas palavras ressoa nas do seu ministro da informação, Mohajerani, que incansavelmente tem repetido: “A eliminação da censura é irreversível”. De fato, ele autorizou numerosas obras literárias e cinematográficas política ou moralmente “incorretas”, com exceção das que incluíam cenas eróticas. Reconheceu, antes da aguardada legalização, a Associação dos Escritores Iranianos, claramente leiga e de esquerda, fora da lei tanto no tempo da monarquia como no da República. Acusado diante do Parlamento de atividades “anti-islâmicas”, por pouco escapou da destituição do ministério em abril de 1999: uma pequena minoria de deputados, temendo certamente a reprovação popular, votou contra a moção de censura.
A espada brandida pelo Senhor
Na arena de confrontação, a instituição judicial ocupa um lugar muito especial. Como é parte do domínio reservado do Faguih, escapa ao controle dos poderes Legislativo e Executivo. “A espada do justiceiro está nas mãos dos nossos adversários”, queixa-se amargamente Mohamed Atrianfar, diretor do Hamshahri, o jornal diário de maior tiragem. Uma espada realmente temível, tanto mais por que empunhada pelo Senhor. “A justiça é de essência divina”, explica Assadollah Badamchian, um dos mais influentes dirigentes da ala conservadora. “A legitimidade da justiça não provém do povo, mas do Islã”, complementa o aiatolá Mohamed Yazdi, chefe da instituição judicial. Quanto às leis, muitas delas são tão ambíguas que permitem todas as manipulações. A liberdade de expressão, por exemplo, é garantida sob condição de “não ofender o Islã”, ou se não for “utilizada para semear a confusão nos espíritos”.
A multiplicidade de legislações em vigor e de tribunais de exceção encarregados de aplicá-las oferece múltiplas cordas ao arco do justiceiro. A oposição considera que o “tribunal dos clérigos” e os “tribunais revolucionários” pertencem a um passado enterrado. Não é essa, obviamente, a opinião dos detentores do poder. “Contrariamente ao que julgam essas pessoas, nossa revolução é permanente” — explica o dr. Hassan Ghafoorifaard, membro da presidência do Parlamento, próximo dos conservadores — “e precisamos desses tribunais para prosseguir no combate”. Que combate e contra quem? “Temos o dever de lutar contra os inimigos internos e externos da república, notadamente contra a invasão cultural do Ocidente”, responde sem pestanejar aquele físico nuclear, formado nos Estados Unidos, que além disso ocupa (ossos da coabitação!) o lugar de conselheiro para assuntos de alta tecnologia junto do presidente Khatami; de quem é, esclarece, ao mesmo tempo adversário, possível rival nas próximas eleições presidenciais e, no entanto, “amigo de longa data”.
“A situação atual é insuportável”, declara indignado Saeed Hajjarian, político de futuro e um dos conselheiros mais ouvidos pelo presidente da República. “No Irã, avançamos em terreno minado sem saber onde estão escondidas as cargas explosivas, enquanto em regimes semelhantes aos nossos, como o da Turquia, os cidadãos podem evitá-las porque sabem onde elas estão.”Eu preferiria mil vezes o benefício das liberdades restritas mas garantidas, do que o das grandes liberdades virtuais como as nossas”, exclama Abbas Abdi, outro dirigente da esquerda islâmica. Nossos interlocutores são membros fundadores da Frente da Participação, uma das duas organizações reformistas legalizadas. O seu objetivo prioritário é o de favorecer a eclosão de outros contrapoderes, de publicações independentes, de associações profissionais, de sindicatos livres e, sobretudo, de partidos políticos capazes de enfrentar as 5 dezenas de organizações conservadoras autorizadas sem qualquer dificuldade.
Os “nossos” partidos e “os outros”
Embora o multipartidarismo seja reconhecido pela Constituição, uma comissão cuida de reduzir singularmente seu alcance pela aplicação de uma lei que exclui as organizações com orientações “incompatíveis com o Islã”. As organizaçoes são dividas em duas categorias: os “khodi” (literalmente “os nossos”) e os “gheir khodi” (os outros). Entre os últimos estão, por exemplo, dois partidos fora da lei mas tolerados, o Movimento dos Muçulmanos Militantes e o Movimento de Libertação do Irã, respectivamente dirigidos pelo dr. Habibollah Peyman e pelo dr. Ebrahim Yazdi. Os dois têm em comum algumas características: ambos participaram da revolução e se opuseram, quando foi redigida a Constituição, ao conceito do Velayat Faguih, preferindo o de democracia; posteriormente, declararam-se fiéis à Constituição adotada — ainda que reinvindicando a adoção de emendas — o que não foi suficiente para “reabilitá-los”.
São toleradas somente as suas atividades quase clandestinas. Não lhes é permitido ter sedes, fazer reuniões públicas, ou publicar jornais; seus comunicados ou declarações não são reproduzidos pelos meios de comunicação governamentais; seus militantes são por vezes agredidos e detidos sob os mais diversos pretextos. “Continuamos submetidos a um sistema que muito se assemelha à inquisição”, explica Ebrahim Yazdi, titular do ministério do Exterior no primeiro governo da república. “Minha candidatura à Presidência da República, em Maio de 1997, foi descartada”. Assim como os demais dirigentes da oposição, ele acha que só a legalização de todos os partidos sem distinção “poderá pôr termo ao equilíbrio instável que ameaça a paz civil”.
Os poderes do Faguih
A “coabitação à iraniana” caracteriza-se principalmente por um desequilíbrio estrutural que opõe um poder absoluto a uma legitimidade popular. O presidente Mohamed Khatami foi duas vezes sufragado em plebiscito por mais de 70% dos seus concidadãos, na eleição presidencial de maio de 1997 e nas eleições locais e municipais de março de 1999. Mas é virtualmente impotente perante um Faguih dotado de prerrogativas que o dispensam de levar em conta a derrota dos seus partidários nesses dois escrutínios. Com efeito, a Constituição lhe concede, entre outros, o controle exclusivo do Poder Judiciário, do exército, dos pasdarans (os “guardiões da revolução”, guarda pretoriana do regime), de centenas de imãs da prece da sexta-feira, encarregados de difundir a boa palavra, dos meios de comunicação de massa e dos grandes diários governamentais, cujos diretores são por ele nomeados. Além disso, são de sua competência: definir e supervisionar a aplicação da política geral da República; dar o aval à eleição do presidente da República e, se necessário, destituí-lo; declarar guerra e celebrar tratados de paz. De certa forma, está acima das leis, uma vez que interpreta a vontade do Profeta e dos seus sucessores, os doze imãs sagrados; e, salvo ao Senhor, a ninguém tem contas a prestar [1].
Por outro lado, recebe uma parcela ou a totalidade dos benefícios das fundações ditas “caritativas”, que, na realidade, são “holdings” econômicas tentaculares, constituídas logo após a revolução principalmente com os bens confiscados à família imperial. Elas produzem os fundos consideráveis que o Faguih gerencia como bem entende, e que lhe permitem, em especial, financiar o clero e suas instituições — valendo-lhe como recurso suplementar para garantir que se mantenha a relação de dependência.
Levando-se em conta o manifesto desequilíbrio dessa relação de forças, os resultados da “coabitação” não podem ser considerados nem um pouco negativos para o presidente da República. Em dois anos, e vencida apenas a metade do seu mandato, Mohamed Khatami conseguiu popularizar os conceitos de Estado de direito, multipartidarismo e alternância; avalizar a extensão das liberdades públicas; entregar alguns ministérios “delicados” (como os do Interior, da Comunicação e da Cultura) a homens de sua confiança; escantear o antigo ministro da Informação, após este último ter admitido a gafe dos assassinatos políticos do outono de 1998; e obter a realização de eleições locais e municipais — o que ocorreu pela primeira vez desde a instauração da república, não obstante estarem previstas na Constituição.
Em contrapartida, não pôde reequilibrar as instituições, relançar a economia, melhorar as condições sociais, nem implantar sua estratégia de normalização das relações internacionais do Irã, em particular com os Estados Unidos. A opinião pública não o condenou por isso, haja vista a votação maciça obtida pelos seus partidários nas eleições locais. Mostrando grande maturidade, ela soube avaliar os limites do seu poder, sua honestidade intelectual, a coragem e a refinada tenacidade de um homem de convicções que deu grandes provas de fidelidade às promessas eleitorais, aparentemente modestas, mas fundamentais para o futuro democrático da república.
Uma triste figura, em contraste, faz o Faguih, aiatolá Khamenei, contestado tanto no âmbito do clero como no da população. É o que leva o diretor do diário liberal Hamshahri a dizer que “o movimento reformista é um foguete de vários estágios, e o último deles equivale a um engenho nuclear — a saber, o formidável apoio popular que nos sustenta”.
A dupla vitória dos reformistas nas eleições presidencial e municipais reflete as profundas mudanças ocorridas na sociedade: 75% dos cidadãos têm hoje menos de 34 anos, não tendo participado da revolução de 1979; cresceram na era dos satélites e da Internet (os cibercafés proliferam nas grandes cidades); anseiam por costumes modernos, europeus ou americanos, com todas as liberdades individuais que eles comportam. São assim recuperados, explica o escritor Mohamed Sadek el Husseini, os três componentes da sua cultura ancestral: “ocidental”, “nacional”, “islâmica”, tendo esta última ocultado as duas primeiras pela influência do regime de Khomeyni.
O retorno dos valores nacionais
O observador estrangeiro ficará decerto impressionado com o apego, manifestado pelos jovens, aos valores estritamente nacionais, em prejuízo da herança muçulmana [2]. São cada vez mais numerosos, por exemplo, os recém-nascidos que recebem nomes pré-islâmicos, ao mesmo tempo em que entra em queda livre o número de alunos inscritos em cursos de árabe (língua do Corão, privilegiada pelo poder). Pelo menos três fatores contribuíram para esta evolução: a acelerada urbanização, que transformou a população rural, federada pelos clãs e mesquitas, em cidadãos integrados na comunidade nacional; a guerra contra o Iraque (1980-1988), que resultou num poderoso impulso ao patriotismo; e, finalmente, o descrédito que atinge a ideologia arcaica do Estado islâmico. A incúria e as infâmias dos governantes, o enriquecimento ilícito dos potentados religiosos e comerciantes tradicionalmente aliados e a deterioração das condições sociais concorrem indiretamente para alimentar o sentimento de pertinencia nacional.
Paradoxalmente, a República Islâmica gerou ou amplificou as próprias forças que a ameaçam. Foi a política de natalidade não controlada durante vários anos que alterou sua estrutura demográfica incrementando o segmento juvenil. A vigorosa campanha de alfabetização e a universalização do ensino gratuito dividiram por quatro a taxa de analfabetismo (atualmente nos 15%), enquanto decuplicou o número de graduados em universidades (mais de quatro milhões, sem contar os dois milhões de estudantes dos cursos do ensino superior), que vêm se somar à fileira dos desempregados.
Ironia suprema, a instauração do uso obrigatório do chador, ou do lenço “islâmico”, trouxe um impulso irresistível à emancipação da mulher: permitiu a entrada maciça, nas escolas e universidades, das filhas de muitas famílias tradicionais que não autorizavam a sua escolarização na época da monarquia, quando, ao contrário, o uso do véu era proibido. As estudantes constituem mais de 50% dos efetivos universitários, contra 25%, na época do xá. “Pudicamente” vestidas nos tempos republicanos, as mulheres invadem também o mercado de trabalho, assim que se vêem precisando trazer para a renda familiar um indispensável complemento. Ao mesmo tempo, reivindicam a plena igualdade de direitos, notadamente no que diz respeito a heranças e ao divórcio, verdadeiros sacrilégios para os defensores do Islã conservador. Uma das mais significativas novidades foi a decisão das organizações feministas, islâmicas e laicas, de criar uma frente comum para defender suas causas [3]. Nas palavras de uma das militantes islâmicas, a advogada Shireen Ebadi: “Tomamos consciência de que a defesa dos Direitos do Homem passa pelo reconhecimento dos direitos da mulher”.
São assim as mulheres, sobretudo as mais jovens, as pontas-de-lança do movimento reformista. Nove delas apresentaram sua candidatura às últimas eleições presidenciais, o que, salvo engano, é um fato sem precedentes em âmbito mundial. E somos levados a crer que uma delas teria sido eleita se as candidaturas femininas não tivessem sido descartadas pelos representantes do Faguih. Uma das características do recente escrutínio municipal foi a vitória de muitas mulheres nos grandes centros urbanos, com resultados freqüentemente mais elevados do que seus colegas masculinos, como foi o caso, entre outros, da cidade sagrada de Qom, onde uma enfermeira “moderna” venceu vários concorrentes de turbante. No Conselho Municipal de Teerã há duas mulheres, uma delas a irmã de Mohsen Kadivar. Essas são notáveis evoluções numa sociedade de tradição patriarcal e que continua — outro paradoxo — profundamente marcada pelo machismo.
As próximas batalhas
As eleições legislativas de março de 2000, próxima etapa da confrontação, preocupam os dois campos. Os conservadores temem uma derrota que venha deixar nas mãos de Khatami, além da Presidência da República e dos Conselhos Municipais, também o Poder Legislativo. E os reformistas se questionam se tal perspectiva não incitaria seus adversários mais extremistas a cometer o irreparável. Alguns cenários dramáticos são delineados. “O assassinato dos 200 ou 300 intelectuais que conduzem o combate democrático” não é excluído por Akbar Ganji, jornalista de esquerda famoso pelos seus artigos denunciando o “fascismo islâmico”. Também se admite — sem muita convicção, no entanto — a possibilidade de um golpe de Estado.
O chefe de gabinete de Mohamed Khatami — e o mais fiel dos seus fiéis há mais de vinte anos, o hodjataleslam Mohamed Ali el-Abtahi — rejeita categoricamente essa hipótese. “Os soldados, no seio do exército e dos pasdarans, são gente do povo que nunca aceitará voltar-se contra o presidente e contra a legalidade que ele representa”, afirmou, antes de fazer a ressalva: “seja como for, as mudanças decorridas na sociedade, a dignidade reencontrada dos iranianos e as liberdades amplamente conquistadas pelo povo são irreversíveis”.
Se nos apoiarmos nas declarações de alguns dos mais realistas dirigentes conservadores, poderemos pensar que a razão acabará por prevalecer. “Entraremos no jogo da democracia, mesmo correndo o risco de nos tornarmos minoritários no próximo Parlamento”, assegura um deles, Hassan Ghaffoorifard. No entanto, apesar de manter um discurso semelhante, o presidente do Parlamento e candidato derrotado na última eleição presidencial, hodjataleslam Nateq Nouri, não se impede de soar o alarme: “Temos de nos manter vigilantes, porque esses supostos reformistas querem instaurar um sistema democrático e não uma democracia islâmica, uma república laica e não islâmica, como dizem”.
A acusação é apenas velada: o objetivo último dos partidários do presidente seria “deskhomeinizar” o Estado. O que é negado pelo jornalista Akbar Ganji, um dos expoentes da oposição, que tece um paralelo entre Kathami e Gorbatchev: “Nosso presidente deseja um “islã de face humana”, assim como o lider soviético quis, pela humanização, assegurar a sobrevivência do comunismo. Ao provocar seu fracasso, seus adversários involuntariamente levaram Yeltsin ao poder. Nossos conservadores tampouco compreenderam que nas mãos Khatami está a última oportunidade do Islã, que sua derrota terá como consequência a liquidação de todos os islamistas, tanto os reformistas quanto os conservadores…”
A prudência caracteriza a estratégia dos reformistas para o período que os separa das eleições legislativas. “A Constituição, incluindo o Velayat Faguih, convém-nos perfeitamente desde que aplicada honestamente”, repetem eles incansavelmente. Ou será preciso lembrar que a revisão da lei fundamental é virtualmente impossível devido aos
Eric Rouleau é jornalista, ex-embaixador da França na Tunísia e na Turquia.