No Vietnã, o partido contra o Estado
As crescentes dificuldades econômicas e a ineficácia do aparelho de Estado animam o Partido Comunista Vietnamita a retomar o comando dos negóciosPhilippe Papin
Em janeiro de 1999, Le Kha Phieu, secretário geral do Partido Comunista Vietnamita (PCV) declarava sem rodeios : “A razão principal da diminuição da atividade econômica foi a ineficácia do aparelho de Estado”. Alguns meses antes, sob o título “Uma vez mais, uma diretriz do Primeiro Ministro não é aplicada” o jornal Lao-Dong (O Trabalho) tinha publicado uma longa “Correspondência do Cidadão” na qual, depois de lembrar suas atividades revolucionárias e sua contribuição à luta do país por sua independência, uma anciã se queixava de ter sido espoliada de sua parcela de terra pelos quadros do Comitê Popular. Eleitos a cada cinco anos pelos Conselhos Populares, os Comitês constituem o executivo local (províncias, distritos e comunas).
O tema sustentado nessa campanha muito bem orquestrada dos meios de comunicação foi a luta contra as terríveis inundações que atingiram oito milhões de pessoas no centro do Vietnã : ela forneceu, no fim de 1999, a oportunidade de apontar com o dedo a imperícia dos quadros da administração pública e, em contraponto esperado, de sublinhar quanto o Partido Comunista continuava, contra ventos e marés, o último baluarte e garantia da solidariedade e da unidade nacionais. Como dique que protege tanto quanto une, o partido tira sua força do fato de ser a única instância capaz de reunir e federar [1]. As fricções opondo o aparelho de Estado ao do partido são, há um ano, cada vez um pouco mais duras, não hesitando agora o segundo em fazer tudo para desacreditar o primeiro, aliás com um certo sucesso.
Depois de mais de uma década consagrada pelo governo à abertura econômica e à condução dos negócios, o partido retorna à cena e faz uma espécie de balanço. Suas conclusões não admitem contestação : as dificuldades econômicas, o recuo recente dos investimentos estrangeiros, a pobreza galopante e as rebeliões de um mundo rural sobrecarregado de impostos devem ser inscritos no passivo de um aparelho de Estado que fracassou em modernizar o país.
Daqui em diante o partido tomará ele mesmo as iniciativas e fará com que isso se saiba. Seu secretário geral aparece regularmente na primeira página dos jornais, é ele quem recebe as delegações estrangeiras e que foi negociar em Pequim o acordo de delimitação da fronteira terrestre sino-vietnamita. É nas empresas sob o controle do partido que foram implantadas as primeiras experiências de salário por tarefa, e foi sob seu impulso direto que o processo de divisão em ações do patrimônio das empresas, em compasso de espera há dez anos, pôde assumir velocidade de corrida.
Longe de ilustrar um pretenso conflito entre “conservadores” e “renovadores”, este ponto de inflexão da política vietnamita anda na contramão das experiências de reformas do comunismo que assistimos em outros países. Compreender a vitalidade do partido e sua pretensão em encarnar a unidade nacional exige todavia um pouco de recuo, um pouco daquela distância que permite levar em conta a maneira pela qual os vietnamitas representam para eles mesmos a natureza e as condições do exercício do poder.
Uma elite ligada ao povo
Desde a implantação de uma monarquia centralizada no fim do século XV, o Estado é, no Vietnã, um ator político essencial. É verdade que a doutrina confuciana fazia do soberano o Filho do Céu, mas também fazia-o sobretudo seu representante aqui embaixo, um mediador responsável pelos seus atos e pelas catástrofes que pudessem acontecer. O poder do monarca não era, assim, absoluto, desligado de qualquer contexto, mas ao contrário, profundamente ligado a ele. A indignidade podia levar “à ruptura do mandato celeste” (cachmang, que significa precisamente “revolução”). Muito forte e atual — as recentes inundações demostraram — este vínculo entre legitimidade política e gestão secular contribuiu fortemente para modificar a natureza do poder, fazendo com que se integrassem nele as noções de Estado e de prática administrativa.
O corpo de agentes do Estado — os mandarins — era constituído na época por meio de concursos, organizados regularmente, nos quais qualquer um podia participar, sem distinção de fortuna ou de posição. Todo o sistema tirava sua força de dezenas de milhares de aldeias que cobriam o país e cada um possuía uma oportunidade real de integrar uma máquina burocrática que, sozinha, assegurava um futuro brilhante e permitia escapar do mundo penoso do trabalho rizícola. O Estado conseguia assim recrutar o melhor de uma sociedade rural que pesava na definição do poder.
É ainda hoje essa a base política e ideológica do regime. Resultado da guerra e dos delocamentos de populações depois de 1975, a imensa maioria dos quadros atuais são pessoas nascidas no campo. O secretário geral, os ministros, os presidentes dos Comitês Populares, os delegados locais e o conjunto dos funcionários sabem do que falam quando evocam o mundo rural e suas dificuldades. Às vezes objeto de ironia indevida, esta inserção do rural no poder é notável num Sudeste asiático onde a elite política e econômica, de origem urbana, é largamente desconectada da base social do país que ela deveria representar.
Mas os concursos para mandarim eram temíveis instrumentos de seleção pela cultura e pela instrução. As provas não eram sobre conhecimentos técnicos ou administrativos, mas sobre um saber acadêmico feito de composições literárias, de retórica chinesa e de poesia antiga. Longe de ser um inconveniente, esta formação desligada da realidade desempenhava um papel-chave na definição da doutrina: exigir dos futuros servidores do Estado que conhecessem perfeitamente a cultura clássica, de acesso difícil ao homem ordinário, permitia simplesmente conferir uma unidade real de pensamento a uma classe dirigente que não tinha outra coisa em comum. A aquisição de um saber comum integrava os agentes do Estado entre si — de uma ponta a outra de um país muito extenso e culturalmente muito diversificado, com um território que se estende ao longo de 3 260 km e compreende 54 etnias diferentes — que passavam a partilhar os mesmos valores e a mesma base de referências confucianas.
De origem camponesa, o poder era então legitimado pela posse de um saber clássico e capaz de federar, permitindo tornar coerente uma elite em perpétua formação. Em outros termos, a “pureza da doutrina” foi a condição de integração das classes populares nos mecanismos do poder.
Mandarins do povo
Esta situação não provocou cisão entre o mundo erudito e o mundo popular. Diferentemente da China, os mandarins vietnamitas em fim de carreira voltavam à sua aldeia natal. Lá, ensinavam a cultura clássica às gerações jovens, preparavam-nas para passar nos concursos de recrutamento da função pública e mantinham assim uma ligação muito fluida entre a base e o topo da sociedade, entre o mundo da plantação de arroz e o do pincel (instrumento essencial para desenhar os caracteres da escrita oriental, atividade de letrados). Eles contribuíam também para redefinir a paisagem cotidiana do aldeão: os monólitos, os pagodes, os diques, a casa comunal e o templo de Confúcio foram pontos de apoio e de continuidade desta cultura fundamentalmente mista.
Tal cultura foi reforçada pela política voluntarista do Estado centralizador, principalmente no domínio das crenças e práticas religiosas. Os cultos populares — freqüentemente animistas e ligados aos ritmos agrários — foram erradicados em prol de um panteão nacional oficial dedicado aos grandes generais vencedores dos chineses, aos altos dignitários e às divindades ligadas à história do país inteiro. Fiadora da unidade, e para isto, depositária da diversidade, a propaganda do Estado descia à aldeia.
Graças à formação de uma verdadeira matriz aldeã, o campo vietnamita de certa forma se “estatizou” a partir do interior. Longe de desembocar na formação de uma classe intelectual autônoma, ou do que se chamaria hoje em dia de “sociedade civil”, alternativa ao poder central, as virtudes federativas da doutrina estiveram, ao contrário, muito fortemente ligadas ao serviço do Estado. Num contexto diferente, esta bagagem carregada do poder central explica com que facilidade se impuseram, mais tarde, o culto dos soldados libertadores e a glória ao Estado comunista.
O período colonial rompeu o vínculo entre as noções que funcionavam em pares: mais que reviravoltas políticas e violências guerreiras deste século, é o brutal desaparecimento dos equilíbrios antigos (saber/poder, cidade/campo, erudito/popular) que constitui, de fato, a grande fratura do mecanismo de autoridade. Os concursos foram suprimidos, os mandarins colocados sob tutela e o letrado subitamente substituído pelo intelectual, formado nas escolas coloniais com a escrita romanizada. O poder mudava de mão, deixava o campo para se encaixar na cidade, dentro da máquina colonial, enquanto a esfera do saber era doravante mantida à margem da política. A matriz aldeã tornava-se completamente inoperante.
A divisão entre o aparelho de Estado e o do partido é uma conseqüência disso. A partir da morte de Ho Chi Minh, cuja aura havia bastado para permitir por algum tempo acumular as presidências do partido, do governo e da República, as instituições se cindiram em dois blocos distintos. O Estado e o partido figuram a partir de agora lado a lado, desde as mais altas instâncias nacionais até à menor aldeiazinha de montanha: de um lado se age, de outro se esclarece; aqui a prática do poder, ali sua doutrina. Por outro lado, a ruptura do vínculo entre saber e poder se exprime por meio de estatísticas contemporâneas: apenas um terço dos quadros de distritos e só 3,5% dos quadros das comunas possuem nível de formação universitária. Não é mais o Estado que incorpora os talentos do aldeão, mas, inversamente, é a aldeia que chega ao poderio público, de ora em diante incapaz de formar a elite destinada a assegurar o seu serviço.
Em busca do passado
Pela primeira vez em sua história, o poder central teve que descer diretamente à aldeia para ali se impor. Tornado unilateral, este movimento de alto para baixo tomou também uma forma dupla: a da burocracia (hoje há 17 mil quadros nos distritos e 220 mil nas comunas, enquanto antes havia apenas mil mandarins) e a da doutrina (uns cinqüenta membros do partido por comuna).
Cisão institucional, desdobramento do dispositivo, fratura do que era antes unido: é uma enorme ruptura em relação ao passado. Ora, pode-se ler a política atual dos dirigentes vietnamitas como uma tentativa, por outros meios e em outro contexto, de reencontrar as virtudes políticas da antiga matriz cuja temível eficácia foi mostrada pela história. Nesta estratégia, a renovação da doutrina é essencial e a política iniciada há um ano leva essa marca. Por exemplo os encorajamentos em favor da dupla filiação : um servidor perfeito que seja ao mesmo tempo quadro do Estado e membro do partido. Este é agora onipresente. Engaja-se abertamente nos grandes negócios internos, por exemplo na luta contra a corrupção — o que permite, de passagem, desacreditar o aparelho do Estado — mas também no cenário internacional.
É todavia a frente econômica que permite ao partido apresentar-se com seus melhores ornamentos. Uma das condiçõe da abertura do país, em 1986, era que o poderio público — o governo — pudesse manter-se no coração do sistema financeiro. Bem assistido pelo Estado, administrador do filão, o investimento estrangeiro — um quarto das receitas do orçamento nacional — veio então substituir a ajuda soviética e o estoque de bens de consumo sulistas herdado dos americanos, um e outro em vias de esgotamento.
Dificuldades econômicas
Mas se o desenvolvimento econômico aproveitou-se disso, é preciso sublinhá-lo, a estratégia política está fracassando. Os investimentos externos caíram de 40% (1997-1998), o crescimento perde o fôlego e o rendimento fiscal é ainda muito baixo. O Estado se empobrece: suas receitas passaram de 30% a 20% do produto interno bruto (PIB) em 1997. Pior ainda, como mais da metade da produção industrial e oito empregos em cada dez são fornecidos pelo setor privado, o aparelho de Estado perdeu o controle da economia real.
A crítica atinge ainda a natureza do desenvolvimento econômico.O sistema informal (um terço do PIB e um quarto dos empregos), útil em seu tempo, tornou-se um obstáculo à integração regional. Desde 1995, o Vietnã é membro da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ANSEA) e em 1998, reuniu-se aos vinte países membros do Forum de Cooperação Econômica da Ásia do Sudeste. Em 2003, os países da ANSEA inaugurarão um mercado alfandegário comum ao qual o Vietnã, que a ele deverá aderir três anos mais tarde, já sabe que não poderá fazer face: As importações fraudulentas vêm comprometer todas as tentativas de desenvolver uma indústria competitiva. Os produtos de contrabando custam, de fato, mais barato que os gêneros locais. Em 24 mil veículos importados em 1996, um terço foram contrabandeados e dois anos mais tarde, a fábrica de automóveis Mekong fechava as portas, enquanto a Ford e BMW enfrentavam graves dificuldades.
A economia paralela tornou os produtos vietnamitas não competitivos e a integração econômica bem arriscada. Ora, o ancoramento ao Sudeste Asiático é um imperativo político porque constitui um sólido contrapeso em relação à China, cujas “zonas francas” devolvidas ao comércio privado, são cidadelas avançadas rumo aos mares do sul. A questão econômica toca muito de perto a questão da independência nacional.
Recuo do poderio público e ameaças regionais permitiram justificar a retomada dos negócios pel