Nos bastidores da Assembleia Geral da ONU
Menos conhecida que o Conselho de Segurança, a Assembleia Geral das Nações Unidas é o único fórum universal que reúne todos os Estados do planeta. Embora não escape à lendária burocracia da ONU, ela ajuda a construir uma lei internacional progressista. E também é o teatro vivo da competição entre os atores mundiais
Na Assembleia Geral das Nações Unidas, não há Estados pequenos”, afirma Dessima Williams em seu escritório na Casa de Vidro, a sede envidraçada da ONU em Nova York. A ex-embaixadora de Granada que se tornou conselheira especial do presidente da Assembleia dá ênfase a cada palavra para ter certeza de que entendemos bem. Diante de nosso ceticismo, acrescenta: “Simplesmente porque a Carta de San Francisco [que fundou as Nações Unidas] dispõe que todos os países-membros são soberanos e iguais”. A brutal realidade das relações mundiais convidaria à circunspecção. Mesmo assim…
No dia 13 de junho de 2016, um evento que passou um tanto despercebido quebrou a rotina das sessões da Assembleia Geral. A eleição de seu presidente – para o mandato estatutário de um ano – não se desenrolou como previsto. Normalmente, os delegados escolhem por consenso o candidato da região cuja vez no revezamento chegou (ver boxe). Mas, dessa vez, foi necessário realizar uma votação formal. No fim, o cipriota Andréas Mavroyiánnis, apoiado pelos ocidentais, foi derrotado (94 votos a 90) pelo representante de um micro-Estado: Peter Thomson, embaixador de Fiji. “A eleição de Thomson é um sinal dirigido às grandes potências”, declarou um diplomata asiático. “É uma forma, em particular, de enfatizar a injustiça climática: Fiji está entre os principais afetados pelo aumento dos níveis oceânicos. Colocar seu representante à frente do órgão plenário da ONU é uma posição política.” A Assembleia Geral opera sob o princípio “um Estado, um voto”, o que deixa espaço para a lei da quantidade.
Embora seja frequentemente ofuscada pelo Conselho de Segurança – no qual, sob a autoridade dos cinco membros permanentes com poder de veto (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França), decide-se pela resolução ou pelo prolongamento de crises às vezes mortíferas –, essa instituição da ONU tem um papel essencial. A cada sessão anual, explica a professora Thérèse Gastaut, “muitos debates são repetitivos, mas no conjunto há também ideias novas, importantes, que conseguem abrir caminho e fazem da ONU uma ‘sementeira de ideias’. A Assembleia é, assim, um espaço essencial para a interação entre os Estados no que concerne a todos os temas internacionais”.1 Desarmamento, novas tecnologias, gestão de detritos espaciais, proteção da infância, redução do risco de desastres naturais etc. Muitos são os assuntos nos quais ela faz avançar o direito internacional: o órgão está na origem de mais de trezentos tratados,2 a exemplo do Acordo de Paris sobre o clima, de dezembro de 2015. Centenas de reuniões de trabalho são realizadas todos os dias em suas instalações, em Nova York e Genebra. “Ela é uma espécie de caldeirão no qual se produz o consenso mundial”, declara um jornalista credenciado.
Discursos tornados célebres
A Assembleia Geral da ONU contribui para o debate político global, abrindo espaço para a discussão de ideias importantes e para a afirmação de reivindicações fundamentais. Sua declaração de 14 de dezembro de 1960, adotada em acordo com o direito dos povos à autodeterminação (artigo 1º, parágrafo 2º, da Carta), legitimou a independência dos países colonizados. Com a descolonização, marcada pela chegada de dezenas de novos Estados, sobretudo de países africanos que durante muito tempo estiveram sob a tutela do Reino Unido, da França e de Portugal, ela se tornou o único fórum universal que reúne todos os países do mundo (193 Estados-membros e mais dois observadores, a Santa Sé e a Palestina).
Nas décadas de 1960 e 1970, ela foi palco de discursos que ficaram na memória: o do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy, em 1961, propondo negociações sobre testes atômicos aos soviéticos; o do presidente chileno Salvador Allende, em 1972, denunciando o controle exercido pelos grandes grupos industriais apoiados pelo capital ocidental sobre a vida das populações do Sul; o do representante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) Yasser Arafat, formulando a primeira grande oferta de paz a Israel, em 13 de novembro de 1974. “Hoje trago comigo um ramo de oliveira e um fuzil de combatente pela liberdade”, declarou. “Não deixem que o ramo de oliveira caia de minha mão.” Esse discurso ajudou a popularizar sua causa no mundo. No dia 22 de novembro de 1974, a Assembleia aprovou, com maioria esmagadora, o reconhecimento do direito dos palestinos à autodeterminação e à soberania. A OLP ganhou status de observador permanente nas Nações Unidas. Finalmente, em 29 de novembro de 2012, a entidade atribuiu à Palestina o status de “Estado não membro”. Sendo a adesão plena e total impossível, em razão do provável veto norte-americano, esse truque jurídico fortaleceu sua posição internacional, permitindo, por exemplo, que a Palestina acione o Tribunal Penal Internacional e assine tratados. Mais recentemente, em 2015, foi durante a sessão solene anual de setembro da Assembleia Geral que o presidente russo, Vladimir Putin, propôs criar uma ampla aliança internacional contra a Organização do Estado Islâmico, aliança que, “a exemplo da coalizão anti-hitleriana, poderia unir em suas fileiras as forças mais diversas, prontas a combater de maneira radical aqueles que, como os nazistas, semeiam o mal e o ódio”.
Não existe uma polícia mundial que seja capaz de garantir o cumprimento das resoluções da Assembleia Geral, as quais frequentemente não passam de simples petições de princípio, sem consequências práticas. No entanto, como no caso da descolonização, elas podem ser verdadeiros marcadores políticos na mudança das mentalidades e das forças geopolíticas. Essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais os países do Sul desde cedo se apropriaram dessa instituição para se afirmar. O Grupo dos 77 e a China, nascido em 1967, fala em nome de 133 países em desenvolvimento em debates econômicos e sociais. A partir de 1968, várias declarações condenaram o regime do apartheid e fizeram pressão sobre os países ocidentais que negociavam com a África do Sul. Em visita a Nova York no dia 3 de outubro de 1994, Nelson Mandela não deixou de expressar sua gratidão: “Hoje saudamos desta tribuna a Organização das Nações Unidas e seus Estados-membros, que, individual e coletivamente, uniram suas forças às das massas de nosso povo em uma luta comum que levou à nossa emancipação e repudiou as fronteiras do racismo”. Alguns textos foram vivamente contestados, como a resolução que equiparava o sionismo a uma forma de racismo, aprovada em 1975 e revogada em 1991.
Órgão nascido da Assembleia Geral, o Conselho Econômico e Social (Ecosoc) é pioneiro, na ONU, desde a década de 1960, da participação da “sociedade civil” nas discussões internacionais, até então reservada aos diplomatas delegados pelos governos. Deve-se a essa instância a criação do estatuto de ONG, que dá acesso às reuniões e às negociações organizadas pelas ONU e permite emitir pareceres, redigir relatórios e designar representantes (embora eles não tenham poder de decisão). Hoje, o termo “ONG” é parte da linguagem cotidiana. Mil e trezentas associações são credenciadas junto à ONU, que conta com serviços de ligação com a sociedade civil.3 Nos mais diversos temas, elas encontram na Assembleia Geral um lugar de expressão e promoção de suas lutas. A Cúpula dos Oceanos, organizada pela Assembleia em junho de 2017, em Nova York, é um exemplo: há mais de uma década, associações participam de discussões organizadas pela Assembleia Geral, o que deve resultar em uma revisão da Convenção sobre o Direito Marítimo.4 “As resoluções ali tomadas”, avalia o presidente Thomson, “são a prova de que a Assembleia Geral não tem nada de obsoleta e continua exercendo influência política na cena internacional.” Peggy Kalas, coordenadora da coalizão de associações High Seas Alliance, confirma: “Trabalhamos de mãos dadas com os governos. O site da Divisão de Assuntos do Oceano e da Lei Marítima reflete nossas opiniões e propostas”. Mas, se o órgão plenário dá espaço a atores privados, ele deixa aberta a espinhosa questão da representatividade dos parceiros escolhidos, já que a sociedade civil não é governada por nenhum mecanismo de legitimação eleitoral.
Em uma sociedade internacional que continua caótica, “a Assembleia Geral é”, segundo o historiador Paul Kennedy, “o que temos de mais próximo de um Parlamento da Humanidade”.5 Com seus cinco membros permanentes dotados do famoso poder de veto, o Conselho de Segurança não pode pretender desempenhar o papel de fórum global, embora seja em nome dos valores comuns estabelecidos na Carta que ele tome suas decisões sobre as crises que colocam em risco a paz do mundo. O Grupo dos 20, ou G20, com sua composição arbitrária, também não pode reivindicar tal papel. Recentemente surgido na cena internacional, o clube permanece nas mãos das grandes potências que o criaram. É verdade que países emergentes como a Índia e a África do Sul passaram a fazer parte dele, mas na base da cooptação soberana dos países ricos. Por outro lado, a Assembleia Geral da ONU “gerencia os interesses nacionais de forma equitativa”, explica Williams, a conselheira especial do presidente da Assembleia, que recorda: “O colonialismo não tem lugar na Assembleia. Nela não existem obstáculos para usarmos nosso direito à palavra. Mas, às vezes, os Estados pequenos não possuem os meios necessários para aprofundar as questões”. Em 2005, confirmando seu estatuto de “órgão prioritário”, a cúpula mundial organizada pelo secretário-geral Kofi Annan fez da instância plenária um verdadeiro “Parlamento das Nações” universal, uma espécie de G193.
“O multilateralismo não é algo que se dá por si mesmo”, observa Arnaud Guillois no escritório das Nações Unidas do Ministério dos Assuntos Estrangeiros da França. “Precisamos de ferramentas para construir o diálogo e fazer as grandes potências entenderem que elas têm interesse na discussão. Essa é a função, bastante singular, da Assembleia Geral.” A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, uma vasta reunião anual global, é produto do órgão. Em 2015, todos os países, incluindo os maiores poluidores, sentiram-se obrigados a sentar-se à mesa de negociações, muito embora a resolução final de Paris não tenha sido plenamente satisfatória. “Os Estados pequenos foram majoritários, é preciso considerar isso”, observa o presidente Thomson. “Os avanços obtidos naquele ano em termos de clima foram muito importantes. E, ao contrário do que se possa temer, a retirada norte-americana do Acordo de Paris tornou a comunidade internacional ainda mais fortemente unida em torno dos pontos mais essenciais. A decisão do presidente Donald Trump terá o efeito oposto ao que ele esperava…” Nos corredores da Casa de Vidro, alguns delegados não hesitam em expressar seu ressentimento em relação aos países ricos, que relutam em assumir suas responsabilidades com os do Sul.
Os debates e decisões relacionados ao desenvolvimento ilustram o alcance e os limites da Assembleia. Em setembro de 2000, a Declaração do Milênio abriu o campo dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que devem coordenar o esforço internacional de combate à pobreza. Os primeiros resultados parecem significativos: o número de pessoas vivendo em extrema pobreza caiu de 1,9 bilhão para 840 milhões, ao passo que a população mundial cresceu de 5,3 bilhões para 7,5 bilhões. Eles parecem indiscutíveis em termos de melhoria da saúde, da educação, da alimentação e do acesso a serviços essenciais.6 Mas esse balanço revela-se altamente variável em cada continente e não mede o aumento das desigualdades entre os países e em seu interior. É por isso que em 2015 os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio foram redirecionados para incluir a dimensão climática, universalizar os objetivos e se aproximar das “realidades em campo”. Eles agora são representados por dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (luta contra a pobreza, fome zero, educação de qualidade, igualdade de gênero etc.). Um exemplo de sua importância política: durante três anos, setenta países negociaram sua definição; 8 milhões de pessoas responderam a uma pesquisa preliminar. A Agenda 2030, que sintetiza o trabalho a ser feito para alcançá-los, é apoiada pela China, que o vê como um passo rumo a uma “parceria global mais equilibrada” e, segundo ela, necessária.7
E as instituições financeiras?
No entanto, estamos bem longe das ambições da Nova Ordem Econômica Internacional. Em 1974, a Assembleia Geral aprovou uma ressonante resolução apelando a uma partilha da riqueza em escala mundial e a uma mudança de estratégia econômica liderada pelas Nações Unidas: estabilização dos preços das commodities, soberania em relação à riqueza nacional, melhoria dos termos de troca… A Nova Ordem Econômica Internacional fracassou em razão de dois choques de petróleo, da explosão da dívida dos países do Sul e da má vontade das grandes potências. Seu apagamento também reflete uma mudança nas relações de forças ideológicas que vai além da Assembleia, o enfraquecimento do terceiro-mundismo e, talvez, o confuso jogo participativo das ONGs, que quando se sentam à mesa de negociações podem se mostrar mais conciliadoras.
A ideologia liberal impôs-se a partir da década de 1980, por meio do “Consenso de Washington”. Como observa o economista Pierre Jacquemot, “a grande transformação esperada [por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável] não é apoiada por uma análise clara das razões profundas que estão na origem das desigualdades que eles pretendem eliminar: o comércio desigual, a financeirização exponencial, a perda da biodiversidade”.8 Além disso, eles não escapam do aspecto tecnocrático das organizações modernas, com sua paixão por siglas obscuras para os mortais comuns, sua quantificação minuciosa e seu “monitoramento e avaliação” embebidos de preocupações puramente contábeis. Uma forma de “burocracia” apropriou-se da Assembleia Geral, assim como de muitos corpos deliberativos, constata Noam Chomsky, que diz observar a mesma situação no Congresso dos Estados Unidos.
Entre os pontos cegos do sistema institucional global estão as instituições financeiras internacionais: o Banco Mundial e o FMI desenvolveram-se à margem da ONU após a Conferência de Bretton Woods, em 1944, enquanto as Nações Unidas nasciam alguns meses depois, em San Francisco. Ao contrário das agências e instituições especializadas (Organização Mundial da Saúde, Alto Comissariado para Refugiados etc.), bem como dos programas (para o desenvolvimento, o meio ambiente etc.), as instituições financeiras não seguem as regras comuns do sistema da ONU. Elas assumem um funcionamento censitário que confere poder de decisão aos países ricos, tendo sempre recusado a supervisão do Ecosoc. Com elas, sempre é preciso discutir e negociar. Esse é o propósito das “conferências de primavera” organizadas pelo Ecosoc desde 1998, que permitem uma coordenação que respeita o papel de todos.
Campanha de comunicação? Permanecendo autônomas, as instituições financeiras internacionais esforçam-se para melhorar suas relações com o sistema da ONU.9 O presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, veio à Assembleia Geral em maio para discutir o financiamento dos Objetivos de Desenvolvimento. Diagnóstico confirmado pelo representante permanente da França, François Delattre, o qual considera que “a deficiência estrutural é compensada pelo voluntarismo das pessoas”. Thomson aproveita todas as prerrogativas de presidente da Assembleia para incitar os Estados a colocar a mão no bolso. “Somos gratos ao presidente”, confirma David Donahue, representante da República da Irlanda, “por dedicar tanta energia aos objetivos e fazer deles um eixo de trabalho tão central.” Com um mandato de apenas um ano, é necessário garantir a continuidade do trabalho por meio de um bom relacionamento com o novo secretário-geral, António Guterres, que ficará no cargo por cinco anos.
Em termos concretos, explica Thomson, “todos precisam ter consciência do precipício em direção ao qual a ausência do desenvolvimento sustentável nos empurra” e colocar na mesa os recursos necessários para promovê-lo. “Quem tem de pagar são os Estados. A Assembleia só pode definir direções e destacar desafios. Cabe a mim deixar a meu sucessor alguns pontos de apoio para continuar o trabalho.” Como não conta com meios coercitivos, a instância plenária tem como papel principal organizar uma espécie de pressão social para incentivar os Estados, que continuam sendo soberanos, a mudar suas posições. “Esse é o desafio, por exemplo, das discussões sobre os direitos das minorias sexuais”, observa Delattre. “É preciso alcançar um consenso internacional.” Países como a Arábia Saudita, diversas vezes sancionada por violações aos direitos fundamentais, são obrigados a apresentar relatórios ao Conselho de Direitos Humanos, oferecendo armas aos ativistas e às associações que trabalham pela mudança de regime. Mas às vezes se chega às raias do absurdo, como quando a Arábia Saudita conseguiu ser eleita para a Comissão dos Direitos da Mulher, no dia 2 de maio de 2017…
As Nações Unidas ocupam as colunas dos jornais por causa de sua inimaginável burocracia e dos excessos dos membros de suas forças de paz10 com mais frequência do que por causa do trabalho diário que realizam em um grande número de setores. “Enquanto o Conselho de Segurança chama atenção, pode-se dizer que a Assembleia Geral é o rosto oculto da ONU, o coração do reator”, resume Delattre, que lembra a posição da França: apoiar o quadro multilateral do sistema das Nações Unidas. Ela é a caixa de ressonância dos grandes desafios planetários.
Embora tenha sido o Conselho de Segurança que se apropriou da luta contra o terrorismo, sobre as ruínas ainda fumegantes do World Trade Center, foi a Assembleia que organizou o primeiro debate internacional sobre o assunto, em 1972. Em setembro de 2006, ela aprovou uma estratégia global que não propõe uma definição comum de terrorismo, dada a falta de consenso sobre o uso da violência por parte dos palestinos nos territórios ocupados por Israel. O texto recomenda que se considere o que constitui o substrato do terrorismo: conflitos, exclusão política, marginalização socioeconômica etc. Na prática, ele fornece balizas para iniciativas antiterroristas nacionais e regionais, embora algumas leis liberticidas adotadas pelos Estados contradigam os compromissos assumidos em Nova York. Deve-se notar, no entanto, que é na Assembleia que os palestinos, acusados por Israel de “terrorismo”, puderam expor em praça pública a violência à qual são submetidos.
Nos últimos anos, os governos atribuíram cada vez mais tarefas à presidência da Assembleia, incluindo a organização de reuniões de alto nível e a nomeação de “facilitadores” em algumas crises, como a dos refugiados, iniciada em 2015. Membro do gabinete do presidente, o diplomata grego Ioannis Vrailas acredita que isso corresponde a uma “tendência de fundo” que reconhece o trabalho do órgão plenário e sua capacidade de relacionar as dimensões plurais de cada questão. Desse modo, destaca o diplomata que também já foi embaixador adjunto da União Europeia na ONU, “o desenvolvimento é uma ferramenta de prevenção de conflitos”. A experiência da Assembleia permite coordenar o trabalho de organismos especializados em saúde, desenvolvimento, meio ambiente etc.
Domesticar os desejos de poder
Em 2016, a eleição de Guterres para o cargo de secretário-geral da ONU conferiu-lhe um papel inédito. Tradicionalmente, os delegados contentam-se em aprovar sem votação a recomendação do Conselho de Segurança. Dessa vez, no entanto, muitas delegações reivindicaram um processo mais aberto e transparente. Os candidatos foram, portanto, ouvidos em público, enquanto o presidente da Assembleia negociou com o Conselho de Segurança a redação da resolução final. Para Vrailas, essa novidade reflete a “necessidade de inovação e adaptação das estruturas da ONU aos desafios de nosso tempo”. Para além dessa exigência, no fim das contas banal, o fortalecimento do papel da Assembleia traduz também o enfraquecimento do consenso entre as grandes potências em um contexto de tensões sobre a crise síria. “Ao contornar ou violar o direito internacional, as intervenções ocidentais no Kosovo [1999] e na Líbia [2011] causaram uma crise de confiança entre os cinco membros permanentes quanto às regras que regem o uso da força”, explica Richard Atwood, do International Crisis Group.
Da mesma forma, no dia 9 de dezembro de 2016, a Assembleia Geral, em consequência da paralisia do Conselho de Segurança, adotou uma resolução convidando os Estados a respeitarem o direito internacional humanitário na Síria, sobretudo com a permissão de acesso a organismos de socorro à população. Esse tipo de intervenção é extremamente rara, sendo a manutenção da paz em situações específicas uma das principais competências do Conselho de Segurança.11
Único órgão representativo do conjunto do planeta, a Assembleia Geral não constitui, no entanto, um Parlamento mundial, no sentido de que eleições poderiam conferir-lhe uma legitimidade comparável à do Parlamento de um Estado democrático. Um objetivo desse tipo é certamente irrealista, considerando-se a heterogeneidade da sociedade internacional. Por outro lado, ela é um lugar único, por sua capacidade de refletir a mudança das relações globais (eleição-surpresa de Thomson, mobilização dos pequenos Estados e da China etc.) e por seus valores, oriundos da Carta de San Francisco: domesticar os desejos de poder a serviço da segurança coletiva. Em um momento no qual a redistribuição das cartas no jogo geopolítico provoca tensões, ela é, apesar de suas imperfeições, o único fórum propício à construção de uma ordem internacional progressista.
Um fórum mundial
O Capítulo IV da Carta de San Francisco torna a Assembleia Geral o órgão político deliberativo da ONU. Segundo seu artigo 10º, ela “pode discutir qualquer questão ou assunto no âmbito da presente Carta ou relativo aos poderes e funções de qualquer um dos órgãos previstos na presente Carta”. Isso significa que suas competências são amplas. A única reserva é que ela não pode lidar com “uma disputa ou situação” que esteja sendo tratada pelo Conselho de Segurança (artigo 12). No início de cada sessão anual, em setembro, organiza-se um debate, envolvendo muitos chefes de Estado e de governo, inclusive o do país anfitrião, os Estados Unidos. Durante esse período, o foco da mídia volta-se para essa instituição pouco conhecida da ONU.
Única instância plenária na qual se reúnem os 193 países-membros, a Assembleia Geral baseia-se no princípio da igualdade jurídica entre os Estados. Todos têm um voto, embora as delegações nacionais possam incluir até cinco delegados. Numericamente, a voz de um cidadão de Liechtenstein pesa 40 mil vezes mais que a de um chinês! As decisões sobre questões importantes (orçamento) são tomadas por maioria de dois terços; as demais, por maioria simples. As resoluções da Assembleia não são vinculativas e, ao contrário daquelas adotadas pelo Conselho de Segurança em virtude do Capítulo VII, elas não podem ser acompanhadas de medidas coercivas, mas constituem marcadores políticos para a sociedade internacional que a elas se refere, além de servirem de ponto de apoio para os Estados e associações nas relações de forças internacionais.
A Assembleia Geral vota o orçamento da ONU (quinta comissão) e a admissão de novos membros (os últimos foram a Suíça, em 2002; Montenegro, em 2006; e Sudão do Sul, em 2011). Cabe também a ela examinar e aprovar os orçamentos dos fundos e programas (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Fundo das Nações Unidas para a Infância etc.), além de fazer recomendações sobre eles.
O órgão elege seu secretário-geral por recomendação do Conselho de Segurança. Na ordem protocolar, o presidente da Assembleia Geral é a mais alta figura da ONU. Além de assumir o papel de condutor dos trabalhos no órgão plenário, ele pode nomear mediadores e facilitadores em certas crises ou questões intensas. Ele convoca grupos de trabalho temáticos e pode servir de mediador em certas crises, como a disputa entre o Reino Unido e as Ilhas Maurício sobre o Arquipélago de Chagos.
O princípio da distribuição geográfica equitativa, consagrado na Carta de San Francisco, regula o funcionamento da Assembleia: existem cinco grupos regionais (África, Europa oriental, América Latina e Caribe, Europa ocidental “e outros Estados”, Ásia-Pacífico), entre os quais devem ser divididos os cargos e funções. (A.C.R. e R.S.)
*Anne-Cécile Robert é jornalista do Le Monde Diplomatique; e Romuald Sciora é jornalista e ensaísta franco-norte-americano, autor do documentário À la Maison de Verre – L’ONU et ses Secrétaires généraux [Na Casa de Vidro – a ONU e seus secretários-gerais].