Nos tempos da Unidade Popular
Brutalmente enterrada no fatídico 11 de setembro de 1973, os relatos daquela época marcada pela esperança de um mundo melhor são parte da “batalha pela memória” que se trava no Chile, ainda asfixiada pela amnésia provocada pela junta militar
CronologiaFranck Gaudichaud
“É quase estranho falar disso hoje, às vezes me parece que foi um sonho…” Em 1972-1973, Mario Olivares era um jovem operário metalúrgico e delegado do núcleo industrial (cordón industrial) Vicuña Mackenna. Efetivamente, ele viveu um sonho – um sonho acordado – partilhado por milhares de homens e mulheres, trabalhadores e militantes da esquerda chilena. Nessa época, Hernán Ortega, presidente da Coordenação dos Núcleos Industriais (Coordinación de los Cordones Industriales) de Santiago – novas organizações de base que surgiram como reação à grande greve patronal de outubro de 19721 -, era militante do Partido Socialista. “Para mim”, diz ele, “como para todos os chilenos, a Unidade Popular significava a aspiração a uma sociedade diferente, mais democrática, mais igualitária, permitindo que os trabalhadores atingissem um desenvolvimento pleno e inteiro não só do ponto de vista econômico, mas também daquele da realização integral do ser humano”.
O presidente Salvador Allende foi levado ao poder por uma coalizão. A “via chilena para o socialismo”, fortalecida pela dinâmica do combate dos operários, dos camponeses, dos pobladores2 não era, evidentemente, sem contradições. Aquele movimento atropelava, por exemplo, a direção da Central Única dos Trabalhadores (CUT) 3, controlada pelo Partido Comunista, principal partido operário do país e força que representava, dentro do governo, a ala mais moderada. A Central se afirmava como a correia de transmissão do executivo, em especial assumindo o “sistema de participação dos trabalhadores” no interior das empresas nacionalizadas, a “Área Social de Produção”.
“Criar, criar, poder popular”
Entretanto, a grande maioria dos trabalhadores estava fora dessa influência direta, porque sem direito de se sindicalizar e, principalmente, sem perspectiva de integração no sistema de participação allendista4. Recusando a passividade, pressionada pelo desenvolvimento do mercado negro e pelos boicotes patronais, a facção mais radical do movimento operário se organizaria de modo independente do governo. Esta dinâmica se traduziria pelo número crescente de empresas ocupadas em vista de sua nacionalização, pelo aumento do número de greves e, no campo, pelo aumento das terras expropriadas, bem além das reformas anunciadas por Salvador Allende.
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Recusando a passividade, a facção mais radical do movimento operário se organizaria de modo independente do governo, nos “núcleos industriais”
A palavra de ordem “criar, criar, poder popular” era discutida nas empresas pelos militantes da esquerda do Partido Socialista, do Movimento de Ação Popular Unitário (Mapu) e da Esquerda Cristã. Além desses partidos, que pertenciam à coalizão governamental, o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) reivindicava igualmente ser um paladino do “poder popular” 5. “Era um período muito rico, durante o qual muitos daqueles que tinham simpatia pela Unidade Popular se rebelaram contra ela e se incorporaram à organização dos núcleos industriais, lembra José Moya, que era membro do MIR e operário de uma indústria eletrônica de quase mil assalariados. “Me lembro de ter estado em assembléias em que representantes da CUT vinham discutir com os núcleos e saíam com ?o rabo entre as pernas?!”
Um poder real dos trabalhadores
No entanto, em nenhum momento, o impulso do “poder popular” surgia contra o governo, que continuava sendo o “governo do povo” para a maioria do movimento operário.
Luis Ahumada, então estudante, era um militante ativo no interior das indústrias de Santiago: “A coisa mais importante que nós promovemos através dos núcleos foi a solidariedade, de parede a parede, de fábrica a fábrica. Esta solidariedade, ?inata? entre os operários, nós contribuímos para que ela se manifestasse em termos concretos: uma fábrica solidarizava-se com as lutas de uma outra fábrica vizinha. E como conseguiram obter uma expressão popular bastante ampla, os núcleos se tornaram, na seqüência, uma referência entre a população do setor, de tal maneira que, se havia uma empresa em conflito, ela recebia também a solidariedade das organizações sociais da redondeza.”
Apesar da greve dos sindicatos de caminhoneiros e dos transportes públicos, controlados pela oposição, esses trabalhadores conseguiram fazer com que funcionassem as fábricas sob seu controle. “Saíamos para expropriar os ônibus com armas em punho, revólveres”, lembra-se Mario Olivares, militante operário do MIR, “e os levávamos para o interior das fábricas entre as mãos dos trabalhadores. Desse modo, garantíamos que a produção não parasse. Também íamos buscar os trabalhadores e os transportávamos”. Ele acrescenta com a mesma veemência que demonstrava ontem durante as assembléias de fábrica: “A gente começava a falar de um poder real dos trabalhadores […]. Talvez não tivéssemos toda a clareza do ponto de vista ideológico, mas exigíamos uma maior participação em todos os domínios e não apenas no da produção!”
A resistência dos núcleos industriais
A palavra de ordem “criar, criar, poder popular” era discutida nas empresas por militantes da esquerda do PS, do Mapu, da Esquerda Cristã e do MIR
Para Neftali Zuniga, velho operário do setor têxtil, ex-dirigente sindical da gigante Pollack e militante comunista atuante, a lembrança mais forte continua sendo, antes de tudo, a do desafio da “batalha da produção” na Área de Propriedade Social, o setor nacionalizado. O objetivo era defender o país contra o boicote e o racionamento. Ele evoca, com altivez e orgulho, os trabalhos voluntários que mobilizavam milhares de pessoas: “Que fazíamos nós, os trabalhadores conscientes? Todos os domingos, íamos […] às grandes plantações cortar milho para poder alimentar maiores quantidades de aves. E é esta a consciência política que deveríamos ter criado entre a grande população trabalhadora deste país.”
Quando, depois de outubro de 1972, Allende conseguiu retomar o controle da situação via criação de um gabinete civil-militar, a criatividade popular voltou à atividade. O papel de resistência dos núcleos industriais foi, novamente, fundamental. Surgiu também a idéia de criar uma ligação dos setores populares no interior de “comandos municipais”. Estes não tiveram tempo de se desenvolver de modo amplo, mesmo que, efetivamente, algumas coordenações tenham existido, como, por exemplo, entre o núcleo industrial Vicuña Mackenna e o comando municipal de Barrancas, formado em torno do acampamento Nueva La Habana.
Milícias populares
Em nenhum momento, o impulso do “poder popular” surgia contra o governo, que continuava sendo o “governo do povo” para a maioria do movimento operário
Na época, operário da construção, Abraham Pérez foi um dos dirigentes desse acampamento, verdadeiro vilarejo autogerido, em Santiago. “Cada quarteirão elegia livre e democraticamente um delegado”. Eles decidiam desde a administração do abastecimento até a segurança do bairro através de milícias populares ou, também, o apoio às fábricas ocupadas do núcleo vizinho. Abraham ainda vive num bairro pobre, originário de uma ocupação de terreno. No entanto, a situação mudou muito depois e ele se lembra com saudade daqueles tempos abençoados: “Havia muita participação e tudo de acordo com os moradores do bairro. Naquela época, a gente não conhecia a delinqüência. Nós nos protegíamos entre nós no acampamento; se um vizinho saía, deixava a porta aberta…”
Quando se discute esse período com Edmundo Jiles, sindicalista do núcleo Cerrillos, ele é tomado por uma forte emoção e respira profundamente: “A maioria de nós era muito jovem, mas os mais velhos sabiam passar sua experiência, sua sabedoria para, de tempos em tempos, fazer baixar o nível de adrenalina e moderar um pouco as ações. Mas eles nos apoiavam com muito entusiasmo. É por essa razão que se pôde fazer tudo isso.”
O estado-maior da sedição
Durante esse tempo, e quando, a partir dos últimos meses de 1971, o presidente norte-americano Richard Nixon deu ordem à CIA para “estrangular” a economia chilena, constituiu-se, em Antofagasta, um estado-maior da sedição reunindo a organização fascista Pátria e Liberdade, o Partido Nacional e os oficiais golpistas. O embaixador norte-americano em Santiago, Harry Schlaudeman, que participou da invasão da República Dominicana em 1965, coordenou os militares chilenos e a CIA. Até o fatídico 11 de setembro?
“Os operários me pediam armas”, lembra o ex-ministro do Trabalho, o comunista Mireya Baltra que, no dia do golpe de Estado, foi ao núcleo Vicuña Mackenna. Na mesma linha, José Moya conta como ficou esperando em sua fábrica: “Passamos toda a noite do 11 de setembro de 1973 à espera de armas que nunca chegaram. Ouvíamos tiros do lado do núcleo San Joaquín; lá eles tinham armas – pelo menos os da indústria têxtil Sumar. Nosso sonho era que, a qualquer momento, pudessem chegar armas e que iríamos fazer a mesma coisa. Mas nada aconteceu.” Ao contrário da propaganda do general Augusto Pinochet, nunca existiu nenhum exército dos “núcleos da morte” (cordones de la muerte). Na verdade, tirando alguns atos isolados de resistência, o “poder popular” se dobrou rapidamente sob o tacão de ferro da repressão.
“A gente não podia fazer nada!”
As lembranças continuam vivas, mas fragmentadas. É uma história carregada pelos que a viveram, pelo menos pelos que tiveram a chance de ainda estar vivos
“No dia do golpe de Estado, havia mortos na rua, eles os traziam mesmo de outros lugares e os jogavam aqui”, conta Carlos Mujica, assalariado da indústria metalúrgica Alusa. “E a gente não podia fazer nada! Creio que o mais duro foi o período 1973-1974. Depois, em 1975, os serviços secretos vieram me buscar na Alusa. Prenderam-me e levaram-me para a famosa Villa Grimaldi: ali, eles passavam as pessoas no “pau-de-arara”, isto é, [punham] em cima de um estrado de ferro e davam choques elétricos nas pernas… Eles sabiam que eu era delegado do setor?”
Esses relatos de uma época marcada pela esperança de um mundo melhor fazem parte da “batalha da memória” que se desenvolve atualmente no Chile. Produto da violenta amnésia a que o povo foi submetido pela junta militar (1973-1990), essa história permanece amplamente desconhecida. Sob os governos do Acordo Democrático, cuja política econômica e institucional é, sob vários aspectos, uma continuidade do regime do general Pinochet, não foi possível reconstituir a memória coletiva dilacerada. Nessas condições, as lembranças continuam vivas, mas de forma fragmentada, atomizada. Trata-se de uma história carregada fundamentalmente por aqueles que a viveram, pelo menos por aqueles que têm a chance de ainda estar vivos.
“O passado é sempre importante”, conclui, no entanto, Luis Pelliza, operário ativo no interior do movimento sindical, após 17 anos de ditadura e mais de vinte anos de neoliberalismo. “Ele faz parte de uma história que nós vivemos. É necessário conhecer a experiência de nossa derrota para compreender como vamos poder enfrentar o futuro.”
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Desde antes de outubro de 1972, tais formas de solidariedade operária existiam, e seu precedente mais importante havia sido a criação do Núcleo (Cordón) Cerrillos, em junho de 1972, em um distrito industrial de Santiago. Na seqüência, essas coordenações de caráter horizontal iriam florescer em várias regiões do país.
2 – Moradores dos bairros pobres e das favelas ou poblaciones
3 – Fundada em fevereiro de 1953, é a única grande confederação sindical do Chile.
4 – Esse direito de controle parcial da produção, em co-gestão com o Estado, per
Franck Gaudichaud é professor da Universidade de Grenoble-Alpes e Copresidente da Association France-Amérique Latine (FAL)