Nova Rota da Seda chinesa completa seis anos com mudanças à vista
Numa série de relatórios de 2018, o Banco Mundial prevê que a Rota da Seda poderá reduzir os custos mundiais de transporte em até 2,5%, o que, por sua vez, diminuiria os custos comerciais em 2,2% e aumentaria o PIB global em 2,9%. No entanto, ao mesmo tempo em que a iniciativa se expandia, nuvens negras começaram a pairar sobre alguns projetos. Críticas contra práticas trabalhistas chinesas, atrasos de obras, falta de transparência, valores excessivamente altos e, sobretudo, alto endividamento de alguns países tornaram-se corriqueiras.
No final de abril, a China deu início à segunda cúpula da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), apelidada de a nova Rota da Seda chinesa. O mega plano de Pequim de interligar diversos continentes por meio de milhares de obras de infraestrutura e investimentos de bilhões de dólares completou seis anos com muitos sucessos, mas também com alguns problemas. Ciente das dificuldades passadas e dos desafios por vir, o presidente Xi Jinping prometeu avanços no projeto, mudanças estariam à vista.
O plano chinês nasceu em 2013 com uma finalidade bastante clara: melhorar a conectividade entre países numa escala transcontinental, facilitando o comércio e investimentos e promovendo o crescimento econômico mundial. Foram definidas cinco áreas de cooperação – políticas públicas, finanças, cultura, comércio e infraestrutura –, mas desde o início foi a última que recebeu mais atenção.
Com a construção de uma rede de portos, estradas, ferrovias, gasodutos e outros projetos, o objetivo era ligar, por mar e por terra, a China com a Ásia, África e Europa. Estimativas conservadoras previam que seriam gastos US$ 1 trilhão na década seguinte, o que fez muitos analistas apelidarem a iniciativa como o Plano Marshall chinês.
O projeto atendia também a objetivos econômicos internos. Após décadas de crescimento do PIB na casa dos dois dígitos, a China passou a crescer menos e apresentava sobre-capacidade em setores como construção civil. Investir no exterior não só facilitaria seu acesso a fontes de energia, alimentos, minérios e mercados para exportação – a China, aliás, tornou-se a maior potência comercial em 2013, ultrapassando os Estados Unidos –, mas também internacionalizaria suas empresas e diversificaria seus mais de US$ 3 trilhões em reservas cambiais, dos quais quase um terço está investido em títulos da dívida norte-americana, de baixa rentabilidade.
De 2013 para cá, a BRI cresceu em volume de recursos, países participantes e importância dentro do projeto diplomático chinês, a ponto de ser incluída na constituição do país, em fins de 2017. Tornou-se também uma marca para definir diversas iniciativas chinesas nos mais diversos campos, como cooperação espacial, cibernética e polar.
A BRI parece agora estar em toda parte, expandindo-se para a América Latina e Oceania. Pisou até dentro do G7, grupo das sete maiores economias do mundo, com a recente adesão da Itália. Até o momento, 137 países e 29 organizações internacionais integram o projeto, dentro do qual já assinaram 173 acordos de cooperação com a China. Nos cálculos do Banco Mundial, a BRI engloba hoje mais de 30% do PIB global, cerca de 60% da população do planeta e 75% das reservas energéticas conhecidas. Segundo previsões da consultoria RWR, sediada em Washington, até o final de 2018, Pequim investiu 700 bilhões de yuanes (quase US$ 104 bilhões) na forma de investimentos em infraestrutura e empréstimos para governos.
O motivo de tanto crescimento é que a BRI se encaixa bem nas demandas dos países em desenvolvimento, sobretudo dos de renda média e baixa, que são a maioria dos países participantes. O Banco Asiático de Desenvolvimento estima que somente a Ásia precisa de US$ 26 trilhões de investimentos em infraestrutura até 2030, cerca de US$ 1,8 trilhão por ano, para manter o crescimento econômico, reduzir a pobreza e mitigar impactos climáticos.
Além disso, ao oferecer financiamentos com menos burocracia, a China passou a preencher uma lacuna deixada por doadores tradicionais. Nos últimos anos, organismos multilaterais ocidentais de crédito direcionaram seu portfólio de recursos para outras áreas, como educação e saúde, e passaram a exigir uma gama de requisitos de transparência e governança, impactos socioambientais e sustentabilidade financeira, cuja complexidade acabou por afastar países mais pobres. Não é sem motivo que, da lista da ONU de 47 países menos desenvolvidos do mundo, 34 fazem parte da BRI.
É bem verdade que as projeções de crescimento econômico e de outros benefícios da iniciativa chinesa também ajudaram muito na atração de novos parceiros. De fato, desde 2013, o comércio entre os países membros da BRI cresceu 21,8%, acima da média mundial.
Numa série de relatórios de 2018, o Banco Mundial prevê que a BRI poderá reduzir os custos mundiais de transporte em até 2,5%, o que, por sua vez, diminuiria os custos comerciais em 2,2% e aumentaria o PIB global em 2,9%. Até 2030, a renda global cresceria 0,7%, ajudando a tirar 8,7 milhões de pessoas da pobreza extrema e 34 milhões da pobreza moderada. Esses números seriam maiores para os países membros da BRI. A ONG norte-americana Aid Data, em pesquisa publicada em 2018, reforçou essas expectativas ao estimar que os projetos de infraestrutura chineses reduzem a desigualdade econômica dentro e entre as regiões.
No entanto, ao mesmo tempo em que a iniciativa se expandia, nuvens negras começaram a pairar sobre alguns projetos. Críticas contra práticas trabalhistas chinesas, atrasos de obras, falta de transparência, valores excessivamente altos e, sobretudo, alto endividamento de alguns países tornaram-se corriqueiras.
A China foi também acusada de não estimular a participação de empresas locais e internacionais nas obras. Análise do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de janeiro de 2018 concluiu que, em projetos financiados por Pequim, 89% das empresas envolvidas são chinesas, porcentagem que cai para 29% quando o projeto é financiado por bancos de desenvolvimento multilaterais.
Outra publicação da consultoria RWR de meados de 2018 aponta que 270 do total de 1.814 projetos colocados em prática desde 2013 apresentaram algum tipo de problema. O valor dos projetos “problemáticos” seria de quase um terço do total investido. Relatório da Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) do ano passado calcula que, em um horizonte de tempo maior, Pequim acumulou US$ 369,5 bilhões em “ativos problemáticos” no mundo desde 2005, dos quais US$ 101,8 bilhões com países parceiros da BRI.
Estudos do Financial Times e da agência de avaliação de risco Moody’s de 2018 alertaram que algumas das economias de maior risco no mundo, segundo classificação da OCDE, estavam entre as que recebiam investimentos chineses. Relatório de 2019 do Centro para Desenvolvimento Global, think tank sediado em Washington, identifica oito países da BRI que apresentam alta probabilidade de inadimplência.
Ecoando críticas sobre a crescente dívida de alguns membros da nova Rota da Seda, Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), alertou em 2018 para projetos “insustentáveis” em países com altos níveis de endividamento externo. Em documento de março deste ano em que chama a China de “rival sistêmico”, a Comissão Europeia afirma que os investimentos chineses, embora contribuam para o crescimento econômico, “negligenciam a sustentabilidade socioeconômica e financeira”.
O caso de alguns países da BRI chamou a atenção pelo valor das obras em andamento e pelo crescimento de seus débitos com Pequim. A dívida externa pública do Djibuti passou de 50% para 85% do PIB em dois anos, segundo o FMI, sendo a China seu maior credor. Está em construção no Laos uma ferrovia financiada com capital chinês e que custará mais de um terço do PIB do país ao seu término.
O Paquistão, de longe o parceiro chinês que mais recebeu recursos – que podem chegar, estima-se, a US$ 62 bilhões –, também enfrenta problemas fiscais. Cancelou recentemente algumas obras e iniciou negociações para receber um pacote de auxílio do FMI. No caso paquistanês, alguns analistas destacaram outro efeito colateral dos projetos da BRI. Embora os investimentos em infraestrutura tenham ajudado a elevar o crescimento do país a 5,8% no ano passado, segundo a agência Standard & Poor’s, também aumentaram suas compras de insumos e maquinários de construção civil. Em cinco anos, as exportações chinesas ao Paquistão cresceram 65%, assim como o déficit comercial com Pequim expandiu-se em 110%.
Sri Lanka é um dos casos que mais gerou debates, com acusações de que Pequim estaria mergulhando parceiros em “armadilhas de dívida”. Impossibilitado de pagar um crédito chinês de US$ 8 bilhões para a construção do porto de Hambantota, ele concordou em arrendá-lo para a empresa chinesa por 99 anos, em troca do pagamento da dívida.
Alguns países começaram a manifestar-se publicamente contra alguns projetos chineses. O Partido Democrático das Maldivas venceu as eleições em 2018 com um discurso explicitamente contra a BRI. Estudo de 2019 do instituto belga Bruegel revela que as Maldivas têm a pior percepção sobre a iniciativa chinesa. Na Malásia, o novo presidente descreveu alguns de seus contratos com os chineses como “novas versões de colonialismo” e “tratados desiguais” e cancelou dois projetos. Um desses, de uma ferrovia, foi retomado recentemente após negociações que reduziram seu valor. Myanmar adotou a mesma linha, renegociou o valor das obras do porto de Kyaukpyu, que passou de US$ 7,5 bilhões para US$ 1,3 bilhão.
Em meio a polêmicas e críticas com alguns projetos da BRI, Pequim sediou em fins de abril último a segunda Cúpula da Iniciativa Cinturão e Rota, o maior evento do calendário diplomático do país no ano. Trinta e sete governantes, cerca de trezentos ministros, e representantes de mais de noventa organizações internacionais e 150 países estiveram presentes, num total de 5 mil participantes estrangeiros, segundo números oficiais.
Há dois anos, diante de uma plateia com 28 líderes mundiais e representantes de 110 países, o presidente Xi Jinping anunciou recursos da ordem de US$ 124 bilhões para seu projeto: 100 bilhões de yuanes (cerca de US$ 14,5 bilhões) para o Fundo da Rota da Seda – que já dispunha de US$ 40 bilhões –, 250 bilhões (US$ 37 bilhões) ao Banco de Desenvolvimento da China, 130 bilhões (US$ 19 bilhões) ao Banco de Exportações e Importações e 60 bilhões (US$ 9 bilhões) em ajuda assistencial, além de prometer expandir os recursos das instituições financeiras nacionais em até 300 bilhões (US$ 44,5 bilhões) para atender obras da BRI. Dois anos antes, a China já tinha anunciado que injetaria US$ 62 bilhões nos seus três bancos de desenvolvimento. Em 2016, entrou em operação o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura, outra iniciativa chinesa para aumentar a conectividade na região.
O discurso de 2019 deixou de lado as cifras expressivas e adotou tom mais austero. Parecendo responder a críticas passadas, Xi Jinping prometeu política de “tolerância zero” a casos de corrupção. A China dará maior atenção à transparência e “sustentabilidade comercial e fiscal” dos projetos e incentivará a adequação das obras de infraestrutura a padrões internacionais e leis locais. Xi também convidou organismos financeiros nacionais e multilaterais a participarem mais na iniciativa.
Tocou também em pontos que ganharam destaque na atual guerra comercial com os Estados Unidos. Comprometeu-se a aumentar a proteção aos direitos de propriedade intelectual e ao meio ambiente, impedir transferências forçadas de tecnologia e manter a taxa de câmbio da moeda nacional num patamar estável.
Mesmo antes da segunda Cúpula, Xi Jinping já havia sinalizado a necessidade de mudanças na BRI. Em agosto de 2018, durante seminário para celebrar os cinco anos da iniciativa, o presidente rebateu críticas de que o plano almejaria criar um “clube da China”, enfatizou a necessidade de manter um comércio equilibrado com seus parceiros e instruiu membros do governo e do partido a melhorar a análise e mitigação de riscos. Ações no campo da educação, turismo, ciência e tecnologia, cultura, saúde, arqueologia, entre outras áreas seriam promovidas. Meses antes, em junho de 2018, pela primeira vez, o Supremo Tribunal Popular da China criou as Cortes Comerciais Internacionais em Shenzhen e Xian, com especialistas chineses e estrangeiros, para resolver conflitos mercantis transnacionais.
Após seis anos de sua criação, a nova Rota da Seda chinesa fez avanços notáveis, mas também acumulou polêmicas. A iniciativa ajudou a levar infraestrutura e investimentos necessários a muitas regiões do globo, facilitando a movimentação de mercadorias e pessoas. No entanto, críticas quanto à execução e sustentabilidade dos projetos, sua falta de transparência e os riscos de alto endividamento de alguns países parceiros expandiram-se e ganharam eco. Os chineses têm-se mostrado abertos a aprender com equívocos passados e dispostos a não cometer os mesmos no futuro. Entre erros e acertos, vão avançando. Xi Jinping deixou claro que a BRI veio para ficar.
Pedro Henrique Batista Barbosa é diplomata e doutorando em políticas internacionais na Universidade do Povo da China (Renmin University). As opiniões expressas pelo autor são pessoais.