Novas ameaças ao pluralismo da imprensa
O surgimento de informativos gratuitos na França tem provocado polêmica, mas o risco que eles representam para os jornais pagos é insignificante em relação ao representado pelo enfraquecimento do sistema de distribuiçãoMarie Bénilde
Seriam os jornais informativos, gratuitos, a vergonha da imprensa francesa? Desde o lançamento do informativo Metro, e depois de Marseille Plus, em fevereiro de 2002, o diretor-presidente do jornal Libération, Serge July, vem atacando os “jornais sem redação” e manifestando sua preocupação com a ameaça que esses “flibusteiros” representam para a profissão de jornalista. Inicialmente impressos no exterior, com uma distribuição autônoma, um número insignificante de jornalistas, explorando ao máximo as informações das agências de notícias e dependendo exclusivamente da publicidade, esses jornais foram acusados de praticar um tipo de concorrência desleal com os grandes jornais pagos.
“A diferença entre Libération (ou qualquer outro grande jornal pago) e um informativo gratuito está na relação de 250 jornalistas para 10”, explicava Serge July. “Os gratuitos parecem-se com os jornais de informação; têm o cheiro e a ?cara? do papel de jornal, mas a semelhança termina aí1.” Le Monde, por seu lado, não hesitava em falar de “dumping social e econômico” e, baseado num estudo feito por Carat Expert, avaliava “entre 5 e 7% a diminuição da circulação dos jornais pagos nas cidades onde foram lançados informativos gratuitos2“.
Na verdade, o estudo revelava que o impacto ocorria, principalmente, no primeiro ano, pois “em geral, a circulação acarreta uma queda em seu segundo ano, antes de se estabilizar3“. Aliás, esse estudo comparativo, feito em vários países, indicava que não é fácil provar uma incidência concreta sobre as vendas dos jornais pagos. Se, por um lado, os informativos gratuitos afetam marginalmente a circulação de tablóides escandalosos de grande circulação, como The Sun, na Grã-Bretanha, ou jornais “populares” moribundos, como o italiano Il Giorno, outros jornais, como La Dernière heure, da Bélgica, parecem ter lucrado com eles.
n ten
Bem ou mal, a imprensa gratuita abre uma brecha num sistema de distribuição francês que se apóia na solidariedade entre as editoras
Seria o caso de pensar, como faz Philippe Léoni, presidente da filial de informativos gratuitos Ouest France (Spir), e acionista de 20 Minutes, que “os diários gratuitos irão ajudar os jornais pagos, ao interessar um maior número de pessoas pela informação4“? Na realidade, os leitores daquele tipo de imprensa são amplamente constituídos por pessoas que não lêem um jornal diário (público jovem, feminino, pertencendo a categorias profissionais intermediárias). “Os informativos gratuitos têm por objetivo fazer o tempo passar para as pessoas que viajam em transportes coletivos e estão enfadadas, sem nada que fazer”, diz François-Régis Hutin, diretor-presidente de Ouest France.
Já em 1836, quando Emile de Girardin lançou La Presse, a preço de banana, Louis Blanc lamentou que fosse “transformado num tráfico vulgar o que é uma magistratura, quase um sacerdócio”. Reconhecia, no entanto, que esse novo tipo de imprensa “convoca à vida pública um grande número de pessoas que durante muito tempo foram mantidas afastadas devido ao preço dos jornais5“. Não seria o custo dos jornais franceses – entre outros fatores – responsável pelo fato de serem eles, entre vários países ocidentais, os de menor circulação por habitante?
Imprensa paga contra imprensa gratuita, uma dicotomia, aliás, bastante formal. Diariamente, várias dezenas de milhares de exemplares dos jornais Figaro, Monde, Libération, Echos ou La Tribune são oferecidos em aviões, hotéis, estacionamentos ou restaurantes chiques. A distribuição gratuita do Figaro (72 mil exemplares), por exemplo, é superior ao número de jornais vendidos por L?Humanité. Para fins de comercialização junto aos anunciantes, essa distribuição é contabilizada como “venda” pelo Office de la Justification de la Diffusion (OJD) 6. O comprador, no caso, seria um terceiro: uma companhia aérea ou uma cooperativa de táxi que compram os exemplares, com desconto, antes de os faturar junto à editora sob a forma de despesas operacionais.
Mais do que os informativos gratuitos, é a questão da distribuição que representa a verdadeira ameaça ao pluralismo da imprensa
Passados os primeiros instantes de estupefação com o que o jornal Libération chama “falsificações”, as editoras proprietárias de jornais pagos decidiram participar da distribuição dos informativos de circulação gratuita. Ouest France detém 50% das ações de 20 Minutes (em sociedade com o grupo norueguês Schibsted); Le Figaro e Le Parisien são sócios acionistas do semanário A Nous Paris; o grupo Hachette detém, via La Provence, 100% do informativo Marseille Plus; Le Monde garante parte da impressão do informativo Metro (de propriedade do grupo sueco Kinnevik); o jornal France Soir encarrega-se da impressão de seu concorrente 20 Minutes.
Bem ou mal, a imprensa gratuita abre uma brecha num sistema de distribuição que se apóia na solidariedade entre as editoras. Com uma distribuição feita nas proximidades das estações de metrô e de trem – fora do circuito das distribuidoras da NMPP [Nouvelles Messageries de la Presse Parisienne] – os informativos gratuitos ameaçam atingir com maior profundidade um mecanismo de distribuição que é herança do final da II Guerra. Não seria essa uma brecha benéfica?
Na realidade, desde 1947 que a Lei Bichet determina que a distribuição da imprensa se baseie no princípio da mutualização, ou rateio, dos custos, por meio de uma rede financiada pelas grandes editoras da qual se aproveitam as pequenas publicações. Em 2001, o jornal Le Parisien foi o primeiro a transgredir essa regra, conseguindo autorização para fazer sua própria distribuição fora da cidade de Paris. Num momento em que o déficit do grupo de jornais reunidos nas distribuidoras da NMPP era calculado em 30 milhões de euros (cerca de 115 milhões de reais), essa saída aumentou em 15% o rombo nas receitas vinculadas à distribuição de jornais diários na região parisiense.
Porque, mais do que os informativos gratuitos, é a questão da distribuição que representa a verdadeira ameaça ao pluralismo da imprensa. A liberalização das empresas de distribuição está na moda. Depois da água, dos correios, dos telefones e da eletricidade, por que não esperar pela privatização das distribuidoras de jornais? Rupert Murdoch reafirmou seu controle sobre a opinião pública britânica criando, em 1988, uma distribuidora de suas publicações, independente dos atacadistas. Não é difícil imaginar que as grandes editoras francesas logo irão se preocupar ao se verem forçadas a encaminhar suas publicações para um ostracismo idealizado pela “lógica do mercado”. São vários os fatores que apontam nessa direção. Em primeiro lugar, o debate sobre a “exceção cultural”, lançado em 1994, mostrou a dificuldade em preservar os bens culturais de uma integração mercantil. Os grandes canais de difusão áudio-visual já não são controlados por um interesse comum, mas por empresas privadas multinacionais: Vivendi Universal, AOL Time Warner, News Corporation, Lagardère etc.
A evolução do grupo Lagardère, que dirige as distribuidoras da NMPP com 49% do capital, permite prever um colapso do sistema cooperativo
A evolução do grupo Lagardère, que dirige as distribuidoras da NMPP com 49% do capital, permite prever um colapso do sistema cooperativo. Através de sua filial Hachette, Lagardère é, na realidade, a principal editora na França e o principal distribuidor de jornais no mundo – como provam suas revistas Relay. Que interesse poderia ele ter, em nome de contribuir com os poderes públicos, em avalizar um “serviço universal”? (Nada a ver com os direitos que teria junto às distribuidoras da NMPP, calculados em pouco mais de 45 milhões de reais, dos quais já abriu mão.)
Porém, até 2003, o grupo Lagardère está vinculado ao Estado, por contrato, nos EADS – o consórcio de aeronáutica e de defesa que comprou a Matra. Como depende de encomendas públicas e militares, não está em condições de devolver ao Estado suas responsabilidades para com a imprensa. Dentro de cinco anos (a previsão do grupo é fazer as primeiras entregas de seus Airbus A380 em 2007, quando abandonaria a indústria aeronáutica), Lagardère passaria a concentrar definitivamente seus interesses nos meios de comunicação. Nada o impedirá, então, de privilegiar seus interesses particulares, colocando o recipiente a serviço do conteúdo, segundo a ideologia da convergência – tão cara a Arnaud Lagardère, presidente da Lagardère Média e filho-herdeiro, formado pelo modelo ultraliberal norte-americano.
Antes de abandonar as distribuidoras da NMPP, no entanto, convém pôr ordem na casa por causa das editoras de revistas – a começar pela principal delas, Hachette Filipacchi Médias. É esse o espírito do Plano Sabouret de “reestruturação” que, de 1994 a 1998, diminuiu os custos de intervenção das distribuidoras da NMPP de 14% para 9% do preço de custo, enquanto um novo plano, elaborado para o período 2000-2003, tenta baixar essa retirada para 6%. Os motivos que justificam as medidas são sempre inevitáveis: sem reestruturação, o grupo de distribuidoras de Lyon poderia passar a controlar parte da atividade de seu concorrente, como demonstra a transferência dos semanários Point de Vue e Marianne para aquela cidade. A única solução para economizar? Reduzir o número de funcionários e de depósitos. No final de 2003, só existirão 200 depósitos de distribuidoras na França, disseminados pelo território – quando eram 350 em 2000. Quanto às distribuidoras da NMPP, cortaram, em quatro anos, 798 de seus 2.400 funcionários (que eram 3.300 em 1994).
As conseqüências se fariam sentir por todos os jornais diários, que precisam do serviço de um depósito nas proximidades, para garantir a reposição em banca nos dias de muita vendagem. Para compensar esse aumento no tempo de entrega, o grupo Amaury pensa criar sua própria rede, imprimindo os jornais L?Equipe e Aujourd?hui
Marie Bénilde é jornalista, autora de On achète bien les cerveaux: la publicité et les médias, Paris, Raisons d’Agir, 2007.