Novas regras para muito dinheiro
Empresas transnacionais e seus porta-vozes usam a crise financeira mundial como pretexto para manter inalteradas as leis e regulamentos que as favorecem, em prejuízo do uso soberano das reservas petrolíferas da bacia de Santos para o desenvolvimento do país
Um paradoxo marca a história do petróleo no Brasil. Quando o presidente Getúlio Vargas decretou o monopólio do Estado sobre essa riqueza mineral e criou a Petrobras, em 1953, o patrimônio que podia ser chamado de “nosso”, conforme o lema da campanha nacionalista, finalmente vitoriosa, era insignificante. As prospecções em terra, no limite da tecnologia disponível na época, deram resultados muito modestos. O país permaneceu dependente das importações de combustível por mais de meio século, até a conquista de uma relativa autonomia, graças ao esforço da Petrobras na exploração de jazidas submarinas a partir da década de 1970.
Agora, no momento em que a descoberta de gigantescas reservas petrolíferas numa camada de sal, a 7 km abaixo da superfície do mar, gera a expectativa de uma era de prosperidade sem precedentes para o Brasil, um novo paradoxo põe em perigo o sonho de utilizar esse tesouro para superar a pobreza e o atraso. As leis vigentes não oferecem a menor garantia de que a extração do petróleo do pré-sal – um volume estimado entre 30 bilhões e 80 bilhões de barris, em comparação com as reservas conhecidas no final de 2007, de 16 bilhões de barris – seja feita em benefício da sociedade brasileira.
Desde 1997, o petróleo brasileiro está parcialmente privatizado, por meio de um modelo liberal que favorece os interesses empresariais e, em especial, o capital estrangeiro. Pela Lei nº 9.478, conhecida como Lei do Petróleo, as reservas são exploradas por meio de contratos de concessão de áreas com potencial petrolífero para empresas nacionais ou estrangeiras, decididos em leilões1. Caso seja descoberto petróleo, a empresa concessionária se torna dona de todo o líquido extraído, com direito de fazer o que quiser com ele, inclusive exportá-lo. Em troca, o Estado brasileiro recebe tributos proporcionais ao valor da produção. Os percentuais cobrados no Brasil estão entre os mais baixos do mundo: um máximo de 45%, enquanto os principais países produtores, como a Venezuela, o Irã e a Noruega, ficam com cerca de 80% da receita. O petróleo brasileiro só pode ser exportado caso as necessidades de abastecimento interno já estejam atendidas, mas, para ter acesso ao combustível, o país paga às concessionárias o mesmo preço vigente no mercado internacional. Na prática, importa o produto extraído do seu próprio território. Isso é algo bem diferente do comportamento da Petrobras, que nos anos recentes procurou atrasar o repasse dos aumentos dos preços dos derivados a fim de colaborar com a política antiinflacionária do governo e de criar uma vantagem comparativa para os produtos nacionais.
Mas a própria Petrobras deixou de ser o que era até 1997. Com a Lei do Petróleo, ela passou da condição de empresa pública para a de sociedade mista, estatal e privada. Hoje em dia, cerca de 62% das ações que definem a propriedade da Petrobras – as ações preferenciais – estão em mãos particulares. Dessa parcela, quase dois terços, ou 38% do total, pertencem a investidores estrangeiros, donos das ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York desde o ano 2000. Outros 38% são propriedade estatal, e os 24% restantes das ações se encontram pulverizadas entre pequenos e grandes acionistas brasileiros – 170 mil, no total. Apesar disso, a Petrobras permanece sob controle do governo federal, que mantém 51% das ações ordinárias, aquelas que conferem poder decisório aos seus proprietários.
Esse é o pano de fundo de uma disputa intensa que envolve diferentes esferas do governo, a direção da Petrobrás, as empresas privadas e, em uma escala ainda incipiente, partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais. A discussão gira em torno de duas perguntas fundamentais: 1) Quem vai controlar as reservas recém-descobertas – o Estado ou o setor privado?; 2) Como se dará a repartição dos lucros?
O foco da disputa é o marco regulatório, ou seja, as regras legais para a exploração da camada de pré-sal na bacia (província petrolífera) de Santos. O petróleo está localizado numa faixa de 200 quilômetros de largura que se estende de Santa Catarina ao Espírito Santo, a partir de uma distância de 250 quilômetros da costa. Somente a jazida de Tupi, descoberta em novembro de 2007, contém de 5 a 8 bilhões de barris de um petróleo leve – fácil de refinar, o que aumenta seu valor. Isso equivale à totalidade das reservas do maior produtor europeu, a Noruega, e faz de Tupi o maior campo petrolífero descoberto no mundo desde 2000.
A quem será entregue esse tesouro, e sob quais regras? A decisão cabe ao governo federal. O presidente Luís Inácio Lula da Silva exibiu, na maior parte do ano, uma postura de aberta euforia diante das boas notícias, que se sucediam a cada novo campo petrolífero anunciado – depois de Tupi, vieram os campos de Carioca, Júpiter, Guará e Iara, entre outros. Lula fez questão de visitar uma das plataformas que irão explorar as reservas de pré-sal e se referiu ao petróleo recém-descoberto como “um sinal de Deus, um passaporte para o futuro”. O presidente tem deixado claro, repetidas vezes, que essa riqueza deve ser usada para ajudar o povo a se livrar da pobreza e, em especial, para aumentar os investimentos em educação2. Outra preocupação diz respeito ao efeito multiplicador dos investimentos em petróleo. A indústria naval brasileira, revigorada nos últimos anos pelas encomendas da Petrobras, previa, no final de agosto, 338 novos empreendimentos para os próximos oito anos, o que inclui petroleiros, navios-sonda e plataformas3.
A disposição declarada do presidente é rever o marco regulatório na bacia de Santos, entregando ao Estado o controle das reservas do pré-sal. “Está fora de cogitação que deixemos os lucros provenientes do petróleo nas mãos de uma meia dúzia de sociedades”, avisou Lula, em declarações que contrastam com a atitude conciliatória em relação ao capital estrangeiro que predominou em seus primeiros seis anos de governo. A retórica presidencial passou para um terreno concreto com a decisão de deixar as reservas do pré-sal de fora do leilão de áreas para concessão na bacia de Santos, marcado para 18 de dezembro – o que, na prática, esvaziou a 10ª Rodada de Licitações. As normas privatizantes em vigor, no entanto, já produziram alguns fatos consumados que, caso prevaleça a defesa do interesse nacional, terão de ser revertidos. A descoberta do campo de Tupi, por exemplo, foi feita por um consórcio entre a Petrobras, que tem 65% de participação, a empresa britânica BG – que, se a lei não for alterada, ficará com 25% dos 5 a 8 bilhões de barris lá existentes – e a portuguesa Galp Energia, com 10%.
Lobby das petroleiras
A idéia de mudança na Lei do Petróleo enfrenta a oposição das empresas, principalmente transnacionais, uma resistência que costuma vir a público por meio dos especialistas por elas contratados4. O lobby das petroleiras exerce forte influência em setores estratégicos da sociedade brasileira, como a mídia, os congressistas, pesquisadores universitários e até mesmo a Agência Nacional de Petróleo (ANP), que tem sido acusada, assim como as demais agências reguladoras, de agir mais a serviço dos interesses estrangeiros do que os do próprio país5. As empresas petroleiras já anunciaram que se dispõem a rever o esquema de distribuição dos lucros, elevando a parcela (royalties e “participações especiais”6) a ser transferida ao Estado.
Do ponto de vista do capital privado, qualquer ajuste parece aceitável, desde que o marco regulatório permaneça inalterado. O que está em jogo, acima de tudo, é o sistema de concessões dos campos petrolíferos. Esse modelo foi adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso com o argumento de que era necessário oferecer incentivos para o ingresso da iniciativa privada. Afinal, as chances de encontrar petróleo na plataforma continental brasileira eram reduzidas, os campos nessa região eram pequenos ou médios, e os preços internacionais eram pouco atraentes – menos de US$ 15 por barril de petróleo. Alegava-se também que a capacidade de investimento da Petrobras era insuficiente para levar adiante as prospecções.
Nenhum desses argumentos pode ser invocado no caso do pré-sal. O risco do investimento na exploração do petróleo na bacia de Santos foi reduzido a praticamente zero. Muitos geólogos imaginam que os diferentes campos já descobertos estão interligados, formando um único e colossal lençol petrolífero. Nesse novo cenário, a manutenção das concessões equivale a colocar à venda, para um grupo seleto de milionários, bilhetes de loteria previamente premiados. Em resumo, um crime de lesa-pátria. Quanto ao preço do petróleo, é verdade que ele está em queda, depois de atingir um recorde de US$ 145 por barril, em setembro, mas jamais despencará até os níveis aviltados da década de 1990.
O atual declínio dos preços, arrastados pelo colapso nos cassinos financeiros, é irrelevante quando a questão é situada dentro de horizontes mais amplos. O capitalismo mundial continuará a ser movido por combustíveis fósseis, uma fonte de energia em processo de gradual esgotamento, o que a torna cada vez mais valiosa. Os recursos alternativos desenvolvidos até agora, como os agrocombustíveis, são incapazes de substituir o petróleo e o gás natural, que responderão, tal como atualmente, por mais de 60% da matriz energética mundial em 2030, de acordo com as previsões da Agência Internacional de Energia (AIE)7.
Mesmo na hipótese de uma recessão duríssima nos próximos anos, o que derrubaria a cotação do petróleo abaixo dos US$ 50 estimados como piso para que a exploração do pré-sal brasileiro se torne compensadora, os preços voltarão a subir, inevitavelmente, aos primeiros sinais de recuperação econômica. Não se pode esquecer que o petróleo e o gás natural são recursos não-renováveis. Isto é, existem limites físicos para a expansão da sua oferta. Nos últimos anos, o crescimento acelerado do consumo de petróleo, que disparou num ritmo muito mais veloz que o das novas descobertas, deixou o mundo bem perto de uma situação em que a defasagem entre a demanda e a produção de combustíveis fósseis tornaria o seu custo insuportavelmente alto. Os maiores exportadores, como a Arábia Saudita, vinham extraindo petróleo no limite da sua capacidade quando a crise interrompeu a tendência de alta, no mês passado. Ao mesmo tempo, outros produtores importantes, como o México, já tinham atingido o pico da produção possível e iniciado uma curva declinante. Não é que as reservas mundiais estejam secando. As profundezas do planeta continuarão a abrigar muito petróleo nas próximas décadas. A diferença é que o óleo remanescente – como o do nosso pré-sal – é de acesso cada vez mais difícil, o que encarecerá tremendamente o seu custo.
Qualquer que seja o preço, porém, a falta de opções energéticas gerará demanda para esse combustível. O Brasil, nesse sentido, é um produtor abençoado pela sorte (como Lula não se cansa de lembrar), não só por causa das recentes descobertas, mas também porque o seu ingresso no clube dos exportadores de petróleo, previsto para acontecer num prazo de cinco a oito anos, ocorrerá num período de alta dos preços, que devem alcançar patamares bem maiores do que os registrados até agora. Durante a recessão que se avizinha, a humanidade continuará a queimar os estoques de combustíveis disponíveis, sobretudo no setor de transportes (o que não é muito inteligente), agravando a escassez. Na realidade, a crise energética que vinha se esboçando – e que, junto com a especulação financeira, empurrava os preços para cima – foi apenas adiada. Do mesmo modo, o aumento dramático das emissões de gases causadores do aquecimento global, justamente por causa da escalada no consumo dos combustíveis fósseis, será temporariamente interrompido.
Uma estratégia coerente para o pré-sal terá de se pautar por um timing que leve em conta todos esses fatores, sem se deixar influenciar pelo imediatismo do mundo das finanças. O presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, demonstrou consciência dessa necessidade ao assinalar que a aposta no pré-sal responde a expectativas de longo prazo, com um retorno esperado para meados da próxima década. “Não se pode pensar em investimentos em infra-estrutura para energia, seja ela qual for, olhando para o que vai acontecer em uma semana, ou em dois dias, no mercado”, afirmou, em entrevista ao Correio Braziliense. “Não há compatibilidade nos prazos de implementação de um projeto desse perfil com as movimentações de curtíssimo prazo que ocorrem na casa financeira.”8
A crítica de Gabrielli tem um alvo evidente: os porta-vozes do mercado petroleiro, que enfatizam as dificuldades de financiamento como pretexto para manter tudo como está, favorecendo a rede mundial de negócios da energia. Já se pode até prever que, no momento em que a cotação declinante do petróleo atingir, digamos, US$ 45 por barril, a mídia corporativa apresentará um desfile de “consultores” a defender as atuais regras do jogo como a única alternativa “sensata” nestes tempos bicudos. Tudo em nome de uma suposta garantia dos investimentos. Esse pessimismo calculado mal consegue esconder a intenção de bloquear mudanças no marco regulatório – ou, ao menos, de convencer o governo Lula a adiar qualquer decisão para um futuro indefinido. A real expectativa das forças conservadoras é que, mais adiante, um cenário político mais favorável venha assegurar os seus interesses de controle do pré-sal.
Quanto ao marco regulatório, o leque de opções apresenta dois modelos de exploração mais vantajosos para a sociedade brasileira, nos casos em que seja conveniente estabelecer parcerias com empresas estrangeiras. Uma alternativa é a partilha da produção, praticada pela China, Rússia e por países africanos. Nesse tipo de contrato, a empresa que explora o petróleo recebe uma parcela do combustível extraído como retribuição pelo risco e pelos custos. O restante fica com o Estado. Já no modelo de prestação de serviços, a companhia petrolífera é remunerada com base num percentual sobre o valor da produção, que pode ser pago em dinheiro ou em espécie. A Petrobras tem aceitado a mudança do regime de concessão para o de prestação de serviços nos seus empreendimentos em países sul-americanos que adotaram políticas de defesa da soberania energética, como a Venezuela e a Bolívia. Por que esse modelo não poderia vigorar também por aqui?
Nova estatal?
Um tema polêmico é a modalidade singular de exploração adotada na Noruega. Lá existe uma empresa petroleira mista estatal-privada, nos mesmos moldes da Petrobras – a Statoil Hydro, em que o Estado tem 62,5% do capital. Mas as reservas do país são administradas por outra empresa, a Petoro, que é 100% estatal. Essa empresa distribui as áreas de exploração entre a Statoil e companhias transnacionais, recebendo a parte que lhe cabe da produção – como acionista, sempre minoritária – em petróleo. A Noruega arrecada um imposto único de 78% sobre a produção, independentemente do preço do petróleo, e aplica esse dinheiro em fundos soberanos, depositados no exterior e utilizados apenas para despesas específicas, como o pagamento dos aposentados.
A criação de uma nova estatal petroleira no Brasil, inspirada pelo figurino norueguês, foi proposta pelo ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, com o argumento de que essa empresa, totalmente pública, assumiria a propriedade das reservas do pré-sal em nome da União e, a partir daí, estabeleceria contratos de parceria com as demais empresas, incluindo a Petrobras, com base na partilha da produção. A proposta tem sido rejeitada igualmente pelos representantes da indústria petroleira e pela maioria dos que se opõem ao atual marco regulatório. As entidades e movimentos sociais que começam a se mobilizar em defesa da soberania brasileira no pré-sal preferem a volta do monopólio da Petrobras, somada a uma mudança na sua composição acionária, com o aumento da participação da União e eventual recompra das ações – ao menos, de uma parte significativa delas –, invertendo o processo privatizante9. As organizações populares empenhadas na luta pela mudança nas regras para exploração do pré-sal estão reunidas, desde março, no Fórum Nacional contra a Privatização do Petróleo e do Gás, uma articulação nacional em que se destacam a Federação Única dos Petroleiros (FUP), a Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Essa articulação propõe que o governo federal convoque um plebiscito em que a população, no seu conjunto, possa decidir sobre o melhor meio de obter “o aproveitamento soberano desta riqueza petroleira em favor do povo brasileiro”10. Exatamente como queriam os brasileiros de outras gerações que, há seis décadas, conduziram até a vitória uma campanha com o mesmo objetivo: “O petróleo é nosso”.
*Igor Fuser é jornalista, professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e integrante da redação da revista Caros Amigos.