Novo capítulo da regularização fundiária da Amazônia
Não há um esforço real no processo de estabelecimento de uma nova governança fundiária que faça a reparação histórica de assegurar os direitos de povos e comunidades tradicionais à regularização dos territórios
Tratar da questão agrária e da regularização fundiária na Amazônia foi e continua sendo um desafio histórico. Mas em 2024, esses temas ganharam contornos próprios em razão das mudanças ocorridas no governo federal, nas políticas dos estados da Amazônia legal e da reação do setor do agronegócio no Congresso e no aumento de queimadas no bioma.
O compromisso do governo federal com os povos e comunidades tradicionais está refletido nas alterações dos ministérios com a criação de secretarias voltadas para o planejamento de políticas para esses grupos. O fortalecimento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMAMC) foi a resposta de Lula à pressão internacional, mas também da sociedade civil brasileira que demandava o reposicionamento estratégico da pasta após os tenebrosos anos de governo Bolsonaro. No entanto, por outro lado, até o momento, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar não foi igualmente fortalecido, embora continue relevante na governança de terras.

Os esforços de vários gestores e funcionários são embarreirados pela estrutura da “máquina pública”. E encaram o desafio de definição de quais áreas têm que ser regularizadas com urgência, diante de todo processo de violência no campo. Um dos casos que queremos destacar é das áreas que compõem os quase 8mil km2 da floresta de mangue amazônica, nesse momento muito ameaçadas pela extração de petróleo e gás, mais recentemente pela PEC 03/2022 (PEC de Privatização das Praias) e desde sempre pela especulação imobiliária para construção de empreendimentos de turismo predatório.
As áreas de floresta de mangue amazônica estão invisibilizadas na elaboração de políticas para a proteção territorial e desenvolvimento do potencial econômico baseado na valorização das práticas tradicionais. É o caso da Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá. Localizada no estado do Pará, ela gera em torno de R$ 13 milhões por ano somente com o extrativismo do Caranguejo-Uçá. E o potencial, segundo dados da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem), é de geração a cada ano de R$ 42 milhões a R$ 45 milhões.
Mais de 80% de todo os mangues do Brasil estão na Amazônia e, por lei, estas áreas estão protegidas como Áreas de Preservação Permanente, conforme estabelecido pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012). O uso sustentável da forma já realizada pelas comunidades tradicionais é permitido pelo artigo 8º e foi reforçado no Decreto nº 12.045/2024 que institui o Programa Nacional de Conservação e Uso Sustentável dos Manguezais do Brasil (ProManguezal). São muitas as ameaças a essas áreas, seja pela construção de grandes infraestruturas portuárias e industriais, como nos casos do Porto do Cajueiro em São Luís, empreendimentos de turismo (vide a PEC de privatização das praias), projetos industriais de carcinicultura ou ainda para especulação imobiliária, sendo de todo modo uma ameaça às populações que vêm sendo expulsas desses territórios, mesmo sendo gerado e distribuído por estas, renda monetária e contribuindo para o abastecimento alimentar das cidades, além da conservação da biodiversidade e com grande contribuição para evitar o colapso climático.
O enfrentamento aos vetores estruturantes das desigualdades regionais, sociais e étnico-raciais que incidem sobre a Amazônia tem evidenciado contradições na governança ambiental e climática para as quais chamamos atenção na preocupação de que sejam tratadas nos próximos dois anos.
Uma delas é a continuação da precarização e esvaziamento do Incra, situada agora em um contexto de fortalecimento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Como o MMAMC tem mais suporte de recursos financeiros e lidera a corrida pelo alcance de metas climáticas, a questão do ordenamento territorial como item das NDCs (contribuições nacionalmente determinadas) brasileiras passou a ser uma pauta ambiental mais do que agrária.
De certa forma, os últimos decretos e resoluções sobre destinação de florestas, como os Decretos n 12.111 e 12.046 de 2024, carregam uma forte “climatização” da pauta de destinação de terras, porém não superam os desafios históricos de desintrusão, gestão e desenvolvimento que apresentavam os assentamentos de reforma agrária e as unidades de conservação de uso sustentável.
Na esfera estadual, Maranhão e Pará têm despontado na Amazônia legal como Estados com grandes áreas de floresta, mas que priorizam a titulação individual. Os documentos fundiários possibilitam a entrada dessas áreas no mercado formal de terras. Os documentos sobre os territórios (títulos quilombolas e CCDRUS) possibilitam a entrada nos mercados de carbono, seja voluntário ou regulado.
A ausência de envolvimento dos órgãos fundiários estaduais no processo de definição das áreas de regularização fundiária, assim como da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) demonstram que não há um esforço real no processo de estabelecimento de uma nova governança fundiária que faça a reparação histórica de assegurar os direitos de povos e comunidades tradicionais à regularização desses territórios. Isso também seria a estratégia mais efetiva de proteção da biodiversidade ameaçada, com o efetivo combate às mudanças do clima e o fortalecimento de uma economia de bases sustentáveis.
As iniciativas em curso de destinação de florestas públicas de forma aceleradas e que são indicadas pelos órgãos que agora assumem um papel fundiário em detrimento do não envolvimento do Incra e a Secretaria de Patrimônio da União, sem a real possibilidade da construção de um processo participativo e atenda às demandas históricas, ganha contornos muito mais para ser uma entrega de números para cumprimento de metas durante a 30ª edição da COP do Clima no final de 2025. Sendo importante destacar aqui que os riscos apontados acima de que essas áreas sejam rapidamente absorvidas pelo mercado de terra, seja pela via convencional de utilização de todo aparato violento ou como um processo subsequente dos contratos ligados ao mercado de carbono, são perfeitamente previsíveis, tendo em vista que várias das áreas trazidas para a destinação são de domínio do agronegócio ou da mineração, inclusive compondo o Zoneamento Ecológico Econômico dos estados e as suas estratégias de mineração
A janela do financiamento climático para ordenamento territorial precisa ser usada para fortalecimento de políticas não somente de acesso à terra, mas também de permanência com autonomia. Nesse sentido, a climatização da pauta agrária concretizada na concessão de áreas públicas para projetos de conservação ou restauração florestal com vistas ao mercado de carbono possui a tendência de transferir a gestão territorial para as grandes empresas do mercado de carbono. Para evitar que esse movimento ocorra é necessário mais participação social e qualificação do planejamento do ordenamento.
A iniciativa já em curso de constituição de uma sistema de governança fundiária que tenha capilaridade suficiente para ter a participação de territórios, municípios e estados não parece ser algo que vai de fato atender aos que estão nos territórios. Isso caso o modus operandis seja o mesmo até agora colocado em prática, o qual exclui a participação ampla e qualificada, sob o pretexto de ter celeridade para garantir minimamente algumas pequenas conquistas. Conquistas essas que justamente pela deficiência do processo serão facilmente absorvidas pelos grandes negócios que precisam cada vez mais de terra para se reproduzir.
Mesmo em se efetivando a regularização dos territórios apontados na atual iniciativa que vem sendo apresentadas nos Seminários de Regularização Fundiárias (já tendo ocorrido duas edições: Nordeste e Norte), na prática sem garantia de políticas de fomento, formação, assessoria e comercialização não será possível garantir a permanência nas áreas. Assim, os números apresentados no ano que vem terão uma validade curta e rapidamente vão integrar as estatísticas de desmatamento e degradação ambiental. A consolidação de uma política de Estado de agroecologia com garantia de recursos para operar de forma massiva e garantir o apoio necessário para produzir e comercializar tendo como bases não somente a sustentabilidade ecológica, mas o protagonismo de mulheres e juventudes, é o formato que reivindicamos para o desenvolvimento dos campos, das florestas e das águas. Esse modelo, levado a partir de uma governança fundiária que resguarde as diferenças e reconheça os direitos, proporciona uma real possibilidade de reverter a crise climática e reparar injustiças históricas – como a fome, o racismo, o patriarcado e as demais formas de opressão e dominação capitalista –, consolidando assim a democracia em todo território nacional.
Pedro Martins é advogado, educador da Fase Amazônia e membro da Articulação de Agroecologia da Amazônia.
Fabio Pacheco é engenheiro agrônomo, assessor técnico da Associação Agroecológica Tijupá, membro da Campanha em Defesa do Cerrado e secretário executivo da Articulação de Agroecologia da Amazônia.