Novos dados sobre a população trans paraense e suas repercussões em antigos dilemas do direito antidiscriminatório brasileiro
O Brasil ainda não dispõe de um arcabouço jurídico-institucional capaz de viabilizar políticas sociais que assegurem à população transgênera o acesso a medidas fundamentadas na redistribuição de renda e riqueza, o que restringe a implementação de ações mais amplas para a redução da desigualdade por identidade de gênero
Em abril de 2025, o Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará publicou o relatório Trabalho, Emprego e Renda Trans, pesquisa que coletou, entre 2022 e 2024, dados sobre ocupação, renda e escolaridade de 269 pessoas transgêneras oriundas de todas as seis mesorregiões do Pará.
Dentre os dados apresentados, destaca-se que 67,25% das pessoas entrevistadas alegaram ter sofrido alguma violência no ambiente de trabalho e 59% desse mesmo grupo afirmou já ter perdido algum posto de trabalho por conta de sua identidade de gênero. A partir dos escritos do sociólogo francês Göran Therborn, vislumbra-se que a identidade de gênero, em vez indicar uma mera diferença conceitual entre pessoas cisgêneras e transgêneras, constitui uma categoria que demarca uma desigualdade em que a conformidade ou não com a cisnormatividade determina diferentes níveis de consideração social e, consequentemente, de proteção jurídica.
Inicialmente, dados relativos à discriminação e à violência perpetradas contra a população transgênera podem levar à falsa impressão de que a desigualdade em razão da identidade de gênero, conforme as categorias analíticas da filósofa política estadunidense Nancy Fraser, seria um problema exclusivamente de reconhecimento. Ou seja, poderia parecer que as diferenças entre pessoas cis e trans residem apenas nos padrões sociais de interpretação e valoração vigentes, os quais colocam a cisgeneridade como natural e moralmente superior — com a ressalva de que as pessoas trans não ocupariam uma posição específica na divisão do trabalho, tampouco constituiriam uma classe explorada economicamente.
Norteado pela compreensão de que a desigualdade por identidade de gênero seria resolvida através de políticas públicas de reconhecimento, o Pará desenhou o seu arcabouço normativo: a) desde 2007, a Constituição do Estado do Pará considera a orientação sexual como uma das discriminações constitucionalmente vedadas, categoria que, apesar de não contemplar diretamente a população trans, permitiu que propostas relativas à identidade de gênero passassem a ser regulamentadas por meio de decretos do Poder Executivo estadual; b) na esfera local, os municípios de Ananindeua e Belém garantem o direito à utilização do nome social desde 2016 e 2017, respectivamente; c) especificamente em Belém, capital do estado, a Semana da Visibilidade Trans é lei desde 2021 e, de 2024 em diante, existem normativos que preveem o Dia Municipal de Enfrentamento ao Transfeminicídio e o Protocolo de Enfrentamento à Violência contra Mulheres Trans e Travestis.

Entretanto, o relatório “Trabalho, Emprego e Renda Trans” apresenta informações que desafiam a concepção da desigualdade por identidade de gênero como um problema restrito ao reconhecimento, à medida que revela que 40% da população trans paraense possui renda familiar mensal inferior a R$ 1.200,00. Considerando-se apenas as mulheres travestis, 71% das entrevistadas não possuem nenhum tipo de formação técnica, e 58% delas recorreram à atividade sexual como fonte alternativa de renda.
À luz de dados que atestam desigualdades educacionais, de renda e mesmo que colocam certas pessoas trans em posições específicas na divisão do trabalho, infere-se que a desigualdade por identidade de gênero possui dimensões de redistribuição, ou seja, pessoas transgêneras são desprivilegiadas em virtude de seus posicionamentos desiguais na estrutura econômica, o que as desfavorece no acesso a ocupações mais bem remuneradas e as coloca em posições economicamente marginalizadas.
Quando confrontada com coletividades que são inferiorizadas tanto pela estrutura político-econômica quanto pela estrutura cultural-valorativa da sociedade, a teoria de Nancy Fraser lança mão do conceito de coletividades bivalentes, definido como grupos sociais que sofrem simultaneamente os efeitos de uma má distribuição econômica e de um não reconhecimento cultural. Assim, soluções limitadas ao reconhecimento — como os normativos existentes no estado do Pará — ou mesmo remédios redistributivos, quando aplicados isoladamente, não seriam capazes de solucionar por completo a desigualdade em razão da identidade de gênero.
Em outras palavras, o conceito de coletividades bivalentes possibilita evidenciar as dimensões econômicas da desigualdade por identidade de gênero sem que isso ignore as discriminações de viés valorativo sofridas pela população trans, compreendendo que as duas manifestações dessa desigualdade se reforçam dialeticamente no âmbito econômico, no cultural e, consequentemente, nas instituições estatais e no Direito.
No Poder Legislativo brasileiro, em quaisquer das três esferas, os esforços estão concentrados em aprovar políticas de incentivo fiscal a empresas que contratem pessoas transgêneras e programas que promovam a autonomia financeira e a preparação para o mercado de trabalho dessa população, solução também defendida pelas conclusões da pesquisa paraense.
Ainda que constituam esforços meritórios em prol de um auxílio material necessário, a leitura analítica de Fraser indica que limitar as soluções redistributivas aos programas que reforçam a diferenciação produtora de desigualdades podem, a longo prazo, fazer com que o grupo social desfavorecido seja alvo não somente da assistência pública, mas da hostilidade social decorrente da acentuação do antagonismo com o grupo social privilegiado. Em verdade, a autora destaca que mesmo as soluções de reconhecimento que defendem a valorização das identidades inferiorizadas, como é o caso dos normativos paraenses, terminam por deixar intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações de grupo subjacentes.
Em ambos os casos, as proposições legislativas constituem remédios afirmativos que buscam corrigir os resultados não equitativos dos arranjos sociais, sem corrigir o quadro social subjacente que produz essas desigualdades. Para a solução de desigualdades oriundas de coletividades bivalentes como a de identidade de gênero, Nancy Fraser defende a proposição de remédios transformadores capazes de incidir não apenas sobre os resultados não equitativos, mas também sobre o todo o processo que produz determinada injustiça. Porém, para que remédios transformadores possam ser vislumbrados no contexto brasileiro, faz-se necessário deslocar o olhar para a forma pela qual a Constituição brasileira, assim como a sua interpretação pelo Supremo Tribunal Federal, recepcionou as demandas por igualdade em identidade de gênero.
Em linhas gerais, a Constituição Federal de 1988 legitimou o direito à não discriminação, a partir do qual critérios sociais distintivos, além de não poderem ser utilizados pelo legislador em detrimento dos grupos historicamente discriminados por essas categorias, devem ser utilizados como norteadores da ação estatal em políticas de inclusão que mitiguem as desigualdades provocadas por essas distinções.
Entretanto, ausente a previsão constitucional expressa sobre como as políticas públicas antidiscriminatórias deveriam ser desenhadas no Brasil, e considerando que a discriminação pode ocorrer por ação ou omissão estatal, as medidas especificamente destinadas aos grupos excluídos foram questionadas judicialmente sob o argumento de que o ordenamento jurídico brasileiro estaria adstrito à consagração da igualdade perante a lei — entendimento rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, que defendeu a constitucionalidade de políticas públicas focalizadas nos grupos sociais historicamente discriminados.
No caso do reconhecimento da identidade de gênero, a pesquisa de Alice Resadori mapeia que o STF vem adotando duas posturas distintas e concomitantes em suas decisões. Na primeira delas, de viés afirmativo, embora a Corte reconheça direitos às pessoas trans, os julgados mobilizam discursos ainda muito centralizados nas discussões sobre sexo biológico, como foi no caso da criminalização da homotransfobia (ADO 26 e MI 4.733), na constitucionalidade do uso de banheiros conforme a identidade de gênero (RE 845.779) e no tratamento dado às pessoas trans na esfera prisional (ADPF 527). Por outro lado, o mesmo STF, em uma postura transformadora, profere decisões que afirmam a autonomia da população transgênera a partir da desestruturação dos discursos binários de gênero, como ocorreu nos julgados referentes à retificação administrativa do registro civil com base na autodeclaração (ADI 4.275 e RE 670.422) e ao tratamento dado às pessoas trans no âmbito do Sistema Único de Saúde (ADPF 787).
Assim, depreende-se que o Supremo Tribunal Federal, nos julgados relativos às pessoas transgêneras na esfera do reconhecimento, operou alguns remédios transformadores de desigualdade ao acionar a gramática da autodeterminação da identidade de gênero como fator desestruturante do binarismo que pauta o Direito brasileiro. Ainda que esses julgados coexistam com decisões meramente afirmativas, isso não deslegitima o papel do Poder Judiciário como o ente que não só materializa a constitucionalização do Direito Antidiscriminatório, mas também torna esse ramo jurídico sensível à desigualdade por identidade de gênero.
Por outro lado, os avanços judiciais não podem olvidar que as pessoas transgêneras constituem uma coletividade bivalente que demanda soluções tanto de reconhecimento quanto de redistribuição.. Infelizmente, no campo redistributivo, a professora Antonella Galindo reconhece que o discurso de “ideologia de gênero” que permeia o Poder Legislativo impede que a identidade de gênero seja um marcador social norteador de políticas públicas redistributivas, o que reforça a compreensão do constitucionalista brasileiro Antonio Maués de que o impacto de decisões judiciais na redistribuição econômica é bastante limitado.
Isso significa dizer que o Brasil ainda carece de um arcabouço jurídico-institucional que possibilite a existência de políticas sociais que permitam que a população transgênera seja contemplada por medidas pautadas na redistribuição de renda e riqueza, cenário que limita marcos mais abrangentes de redução da desigualdade por identidade de gênero.
Por outro lado, os avanços no STF em prol da materialização de garantias constitucionais sensíveis à transgeneridade, somados aos constantes esforços dos movimentos sociais e das universidades públicas brasileiras na publicação de dados sobre a população trans brasileira, oferecem um novo horizonte de possibilidades ao promover o que a professora sul-africana Sandra Fredman defende como um passo fundamental na relação entre direito antidiscriminatório e identidade de gênero: a identificação dos mecanismos pelos quais é operada a negação da existência da transgeneridade e o consequente esforço social, acadêmico, político e jurídico para o reconhecimento pleno de pessoas transgêneras como detentoras de direitos e participantes plenas da sociedade.
Paulo Henrique Araújo é bacharel em Direito, Especialista em Políticas Públicas (2024), Mestre em Direitos Humanos e Doutorando em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará, com períodos de intercâmbio acadêmico no Supremo Tribunal Federal e na Presidência da República. É servidor do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado do Pará. E-mail: [email protected]
Referências
FRASER. Nancy. Justiça Interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”. São Paulo: Boitempo, 2022.
FREDMAN, Sandra. Discrimination Law. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2022.
GALINDO, Antonella. Autodeterminação da identidade de gênero como direito fundamental das pessoas trans: uma leitura a partir do direito antidiscriminatório. In: QUINALHA, Renan; RAMOS, Emerson; BAHIA, Alexandre Melo Franco (Orgs.). Direitos LGBTI+ no Brasil: novos rumos da proteção jurídica. São Paulo: Edições SESC, 2024, p. 222-240.
MAGALHÃES, Breno Baía; SILVA, Paulo Henrique Araújo da. As demandas trans além da realidade normativa regional e nacional: a articulação entre trabalho, emprego e renda de pessoas transgêneras à luz da proteção internacional dos Direitos Humanos. In: MATOS, Saulo de; et al (Orgs.). Trabalho, Emprego e Renda Trans: estudos sobre o acesso ao mercado de trabalho de pessoas transgêneras no Estado do Pará. Belém: MC&G Editorial, 2025, p. 124-143.
MATOS, Saulo Monteiro Martinho de; et al. Trabalho, Emprego e Renda Trans no Pará: estudo sobre o acesso ao mercado de trabalho de pessoas transgêneras no estado do Pará. (Sumário Executivo). Instituto de Ciências Jurídicas. Belém: Universidade Federal do Pará, 2025.
MAUÉS, Antonio Moreira. O desenho constitucional da desigualdade. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023.
RESADORI, Alice Hertzog. Entre a inclusão conservadora e o reconhecimento afirmativo: discursos que constituem as decisões do STF sobre pessoas trans e travestis. In: QUINALHA, Renan; RAMOS, Emerson; BAHIA, Alexandre Melo Franco (Orgs.). Direitos LGBTI+ no Brasil: novos rumos da proteção jurídica. São Paulo: Edições SESC, 2024, p. 242-261.
THERBORN, Göran. The Killing Fields of Inequality. Cambridge: Polity Press, 2013.