O abandono da Universidade
A crise no ensino superior africano, majoritariamente público, tem origem nas reformas econômicas ditadas pelos organismos internacionais, que receitam redução dos salários, supressão das bolsas de estudo e demissõesAghali Abdelkader
Greves intempestivas de estudantes, anos escolares perdidos, supressão de bolsas de estudo, degradação das instalações… Desde 1990, os campi africanos entraram em crise, na medida em que o Estado, seu principal ponto de apoio, passava por uma fase de contestação democrática. Perturbados pelas instruções de “boa governança” fornecidas pelas instituições financeiras internacionais1, os novos dirigentes ignoraram o ensino superior, considerado como improdutivo.
As universidades desempenharam um papel muito importante na democratização e continuam a ser um local onde se cristaliza um desejo de mudança não saciado. Na realidade, a aspiração à renovação, demonstrada no início da década de 90, era de tal ordem que, inconsciente ou conscientemente, os alunos do ensino médio e os universitários juntaram-se à frente política, estruturada com vistas à conquista do poder2. Suas reivindicações corporativas, em geral dominadas pela exigência de uma melhoria material das condições de existência, tornaram-se reivindicações políticas.
Reflexos da crise
As reivindicações corporativas do movimento estudantil, quase sempre em torno de melhores condições de existência, tornaram-se reivindicações políticas
No dia 9 de fevereiro de 1990, por exemplo, em Niamey (Níger), uma manifestação pacífica contra as medidas de ajuste do setor da educação foi duramente reprimida e terminou com a morte de três universitários. Os manifestantes pediram então a renúncia do chefe de Estado, Ali Saibou. Seguiram-se passeatas e greves, que culminaram com o primeiro ano escolar perdido no Níger e com a conferência nacional soberana. Da mesma forma, desde 1992, na Costa do Marfim, as reivindicações democráticas dos atores da vida política, no caso a Frente Popular Marfiniana (FPI), provocaram uma agitação apoiada pelas universidades e escolas de ensino médio. Paradoxalmente, essa politização do sistema educativo a serviço da conquista democrática do poder vai romper a serenidade do mundo universitário e acarretar um desinteresse geral pela instrução.
A crise do ensino superior agravou-se, em seguida, como conseqüência de políticas de recuperação econômica e restauração da autoridade do Estado. Por toda parte na África, o ensino universitário é público. É totalmente assumido pelo Estado: o funcionamento da administração universitária, a construção das salas de aula e outros auditórios, a contratação dos professores, o equipamento dos laboratórios e bibliotecas, a alimentação e alojamento dos estudantes universitários, as bolsas de estudo etc. Também os rumos da universidade estão estreitamente dependentes dos do Estado. Ora, a crise deste último – crise de autoridade, de legitimidade e de identidade – se traduziu, nesses dez anos, por um não comprometimento, sobretudo financeiro, com as universidades.
A “praticidade cega” das elites
A falta de perspectiva impele os estudantes para o exílio ou para a delinqüência. Alguns entregam-se à prostituição, enquanto outros encontram refúgio no alcoolismo
Além disso, as reformas econômicas, geralmente ditadas pelos credores internacionais, no âmbito dos planos de ajuste estrutural, visam reduzir a massa salarial do funcionalismo e os direitos sociais, diminuir a quantidade e o valor das bolsas de estudo, a multiplicar as demissões etc. Paralelamente, essas medidas de “saneamento” vão implicar em aumentos de preços. Pois a necessidade de recriar o Estado, depois do vento de democratização, implica na redução das despesas ao estrito mínimo, ou seja, a ações capazes de gerar fundos. Tudo, a partir de então, se insere na lógica do lucro e do ganho rápido. E alguns setores, como as universidades, seriam considerados como não prioritários para os investimentos do Estado, já bastante aleatórios.
As autoridades, muito ocupadas em recuperar economicamente o Estado democrático, duvidam da eficiência do ensino universitário. Provavelmente também desconfiam dele. Na verdade, aquilo que o cientista político senegalês Sou Pathé Gueye denomina lindamente como a “praticidade cega” pressupõe a desconfiança em relação àqueles que, no término de seus cursos, têm apenas uma formação geral. A universidade surge, então, como depositário de todos os males. Em sua paixão cega pelo desenvolvimento econômico, o Estado, principal provedor de empregos, não tem mais nada a propor aos egressos da universidade. Sua preferência, embora relativa, vai para os que saem das escolas profissionalizantes.
Manifestações e confrontos
A crise do sistema educacional nos últimos dez anos revela uma evidência: há um vínculo entre a desconstrução do Estado autoritário africano e a crise do saber em geral
Para dar novamente vida e sentido à sua presença nos campi e nas salas de aula, os universitários multiplicaram as plataformas de reivindicações. No Níger, as greves intempestivas de estudantes (1995, 1996, 2000, 2001) e de professores (1998) deterioraram ainda mais as relações entre a universidade e o poder público. Essas relações são bastante difíceis, pois a universidade é acusada pelo Estado de ser o bastião das forças hostis aos detentores do poder. Para eles, “as universidades tornam-se muitas vezes, focos de contestação. As autoridades têm cada vez mais dificuldades em controlar os campi instalados de forma imprudente na década de 60. Na verdade, não havia dúvidas de que grandes concentrações de universitários incentivariam a agitação3“.
Divididos entre partidos políticos movidos exclusivamente pela lógica da conquista do poder, os universitários não deixam, na maioria das vezes, de expressar ruidosamente suas convicções políticas. Disso resultam confrontos entre universitários que acabam, em geral, por provocar o fechamento dos campi e dos restaurantes universitários, e o retorno dos estudantes para suas casas. Em Burkina Fasso, em maio de 2000, os campi de Uagadugu e de Bobo Diulasso foram fechados em conseqüência de manifestações estudantis, violentamente reprimidas, que pediam justiça por causa do assassinato do jornalista Norbert Zongo.
Exílio e delinqüência
A situação das universidades se deteriora por toda parte: sucessão de anos escolares perdidos (1900, 1993, 1995, 2000 no Níger, 2000 na Costa do Marfim), degradação das infra-estruturas, fuga de cérebros, queda de nível, desvalorização dos diplomas, envelhecimento dos universitários que, por causa dos anos escolares perdidos e da repetência, estão, aos 30 anos, entre o segundo e o terceiro ano de faculdade, excesso de alunos nos primeiros anos dos cursos… Em janeiro de 2002, por exemplo, os estudantes da universidade Xeque Anta Diop, de Dacar (Nigéria), desencadearam uma greve de várias semanas para obter a rematrícula de colegas que perderam seus direitos e foram jubilados, em razão de múltiplas repetências4.
Nota-se um fenômeno de migração dos estudantes que têm meios para as universidades sub-regionais, menos agitadas. Um sentimento de perda domina então os universitários sem pontos de referência. A falta de perspectivas de sua condição de vida os impele para o exílio ou para a delinqüência. Estudantes entregam-se à prostituição, por exemplo, enquanto outros encontram refúgio no alcoolismo. Os mais corajosos exilam-se em países limítrofes, principalmente na Costa do Marfim, para aí continuarem seus estudos, se possível nas grandes escolas especializadas.
O desmanche do Estado e a crise do saber
Quanto aos professores, se em certos países – como a Costa do Marfim, o Senegal e Burkina Fasso – sua situação é relativamente aceitável, no Níger eles vegetam numa situação lamentável. Isso explica sua permeabilidade a todos os tipos de propostas e de expedientes: professores universitários dedicam-se ao comércio – determinado professor é motorista de táxi, à noite -, são assessores dos ministérios ou dão aulas como interinos em escolas de ensino médio.
A crise do sistema educacional nos últimos dez anos revela uma evidência: há um vínculo entre a desconstrução do Estado autoritário africano e a crise do saber em geral. Na realidade, essa desconstrução segue uma lógica implacável que não poupa nenhum setor do Estado. E as políticas de ajuste estrutural agravam a situação ao reduzir as verbas do poder público. (Trad.: Regina Salgado Campos)
1 Ler, de Bernard Cassen, “Em Nice, a Europa diz não”, Monde diplomatiquezembro de 2000.
2 Ler, de Comi M