O abismo entre a imagem e o real
Nas próximas eleições legislativas, o governo do rei Mohammed VI se verá questionado por uma juventude frustrada – promessas traídas, desesperança, desemprego, corrupção e abuso de poder – e por um islamismo forte, organizado e reprimidoJohn P. Entelis
O relatório sobre o desenvolvimento humano nos países árabes patrocinado pelas Nações Unidas foi divulgado no dia 2 de julho de 2002. Redigido por cerca de trinta intelectuais representando diferentes países e setores, apresenta uma avaliação dura, nunca antes publicada nas condições que predominam nas sociedades árabes. O texto se preocupa, principalmente, em explicar as insuficiências específicas da região, chegando à conclusão de que as grandes deficiências das sociedades árabes residem na ausência de liberdade política, na opressão das mulheres e no isolamento intelectual que asfixia a criatividade.
Apesar das riquezas em petróleo de algumas áreas da região, o conjunto do mundo árabe continua economicamente subdesenvolvido, se comparado com outras partes do mundo bem menos favorecidas. A produtividade, por exemplo, baixou a níveis apenas ligeiramente superiores aos da África subsaariana, devastada pela fome e pelas epidemias. Só uma parte mínima da renda nacional é destinada à ciência e à tecnologia, enquanto os intelectuais de praticamente todos os países árabes se sentem obrigados a fugir desse ambiente político e social sufocante, para não dizer repressivo.
A “modernização adaptadora”
A produtividade no mundo árabe despencou a níveis apenas ligeiramente superiores aos da África subsaariana, devastada pela fome e pelas epidemias
A conclusão mais dramática a que chega o relatório diz respeito às mulheres, sufocadas em todas as esferas da vida ativa, com 50% de analfabetas e uma taxa de mortalidade por parto que equivale ao dobro da taxa da América Latina e quatro vezes a da Ásia Oriental.
Apesar das críticas acerbas e do tom geralmente pessimista, o relatório apresenta um certo número de conclusões positivas, inclusive a respeito das recentes reformas democráticas ocorridas no Marrocos e dos sucessos obtidos pelas organizações de mulheres marroquinas na luta contra os tabus tradicionais1. O que não surpreende aos que acompanham de perto os acontecimentos no Marrocos. O país, tanto sob o reinado de Hassan II (morto em 1999) quanto sob o de seu filho Mohammed VI, projetou a imagem de uma nação moderna e pró-ocidental, combinando, de maneira flexível, a cultura tradicional muçulmana com as necessidades da sociedade profana num movimento que costuma ser chamado de “modernização adaptadora”. Os contatos precoces estabelecidos secretamente com Israel, motivados em parte pelo papel bastante peculiar desempenhado pelos judeus marroquinos, contribuíram para fixar uma imagem de tolerância e de moderação. Contribuem, para essa imagem de país “civilizado”, o fato de estar situado próximo à Europa e sua condição de atração turística, jamais desmentida.
Desenvolvimento social e escravidão
O Marrocos projetou uma imagem moderada, combinando a cultura muçulmana e as necessidades sociais no que costuma ser chamado de “modernização adaptadora”
Em resumo, diferentemente de seus vizinhos árabes do Magreb e do Machrek, o Marrocos conseguiu construir uma imagem de progresso e de harmonia social que o imunizaria contra os radicalismos e extremismos do fundamentalismo islâmico vividos por seu vizinho, a Argélia, e por outras partes do mundo árabe-muçulmano. O fato de o rei ser, ao mesmo tempo, chefe secular e religioso (“comandante dos fiéis”) contribui igualmente para firmar a legitimidade no compromisso, na cooperação, no consenso e na rejeição ao confronto violento.
Neste contexto de confiança, as eleições legislativas deste mês são vistas por muita gente como uma simples continuação da “democratização” em curso, da qual participam todos os partidos… exceto o mais representativo das aspirações políticas, sociais e econômicas populares, Al-Adl wa Al-Ihsan (Justiça e Caridade). O partido foi declarado ilegal e seu chefe espiritual e político, Abdelessan Yassine, confinado em sua residência.
Em que medida a imagem que o Marrocos construiu de si mesmo corresponde à realidade? O que se deve pensar da fuga em massa de marroquinos para a Europa e outros lugares, à procura de um espaço de trabalho e de liberdade2? Como entender o grande número de marroquinos que seriam, supostamente, membros da Al Qaida, incluindo-se Zacarias Moussaoui, francês de origem marroquina, acusado de haver participado do atentado de 11 de setembro de 2001 e cujo processo está em curso nos Estados Unidos? Ou o papel de Abdelghani Mzoudi, que há pouco tempo dividia seu quarto com Mohamed Atta, um dos que desviaram os aviões contra o World Trade Center e que, recentemente, foi preso em Hamburgo? O que dizer da descoberta, em junho de 2001, de um complô da Al Qaida no Marrocos? E a quantas anda o profundo ódio pelos Estados Unidos e pelo Ocidente, revelado pela enorme manifestação popular de 7 de abril de 2002, em que a solidariedade para com os palestinos forneceu, às autoridades, a oportunidade de permitirem que as massas exprimissem sua cólera imensa contra um mundo cujas forças conspiram para oprimi-las? Como conciliar a imagem positiva do desenvolvimento social marroquino com a realidade das mulheres maltratadas, das crianças trabalhadoras, da escravidão doméstica que, freqüentemente, se estende a meninas de seis e sete anos, ou com o analfabetismo da maioria dos marroquinos?
“Alternância consensual”
O fato de o rei ser chefe secular e religioso contribui igualmente para legitimar o compromisso, a cooperação e a rejeição ao confronto violento
Será que se pode, realmente, classificar como democrático um regime que continua a ser governado por um monarca absoluto que determina, sempre em última instância, quem terá o quê, quando e como, e isso apesar da existência de contra-poderes? Enfim, será que se pode chamar de verdadeiramente democrático um sistema em que um movimento autenticamente de oposição e não-violento, que reflete as aspirações políticas das massas, é impedido de participar de eleições que se dizem livres, como ocorre, hoje, com o movimento do xeque Yassine?
Para se compreender o abismo entre a imagem e a realidade no Marrocos, é preciso começar pela análise das diferenças entre gerações que surgiram no país no decorrer das duas últimas décadas. A atual geração de jovens adultos enfrentou uma série de promessas traídas, de esperanças ilusórias e irreais, de incertezas culturais e de manipulações políticas. A corrupção e os favores ilícitos abusivos são onipresentes nos níveis mais altos da autoridade política, criando um modelo que todas as camadas com menos poder procuram imitar.
Apesar de alguns sinais de democratização gradual e de “alternância” política – o atual governo designa-se a si mesmo como o “governo da alternância consensual” – a classe dirigente continua a promover a cultura do cinismo, do desprezo e da corrupção. Coisa que não pode deixar de influenciar as atitudes e o comportamento político das camadas populares médias, para quem a instrução é apenas um meio de fazer prevalecer seus interesses individuais, melhorar seu status e seus privilégios materiais. Os que não têm acesso à instrução secundária ou superior – necessária para se ter sucesso no mercado global de trabalho, em que a concorrência é cada vez mais acirrada – só dispõem de duas saídas: deixar o país ou se lançar na economia informal e tornar-se um marginal.
Convicção política, vontade e ativismo
O partido islamita mais representativo das aspirações populares foi declarado ilegal e seu líder, Abdelessan Yassine, confinado em sua residência
A única exceção neste clima de apatia política e de cinismo são os islamitas, cujos representantes podem ser encontrados entre os mais e os menos instruídos. A orientação islamita -definida como um ativismo político que procura modificar o Estado e a sociedade segundo a ótica do Islã – constitui, no Marrocos, a primeira ruptura séria com o passado. Ao contrário de todas as outras orientações ideológicas ou políticas – nacionalismo, socialismo ou comunismo -, o islamismo rejeita grande parte dos valores defendidos pelas elites, inclusive o biculturalismo, o bilingüismo, o laicismo, a ocidentalização e o “sultanismo”.
Diferentemente das gerações anteriores, os islamitas têm uma visão ao mesmo tempo instrumental e afetiva da política. A mensagem expressa pelo xeque Yassine é clara: a política serve para articular as aspirações populares de uma maneira socialmente coerente e culturalmente sensível. Os islamitas formam um grupo de indivíduos que transcende as fronteiras entre gerações, entre sexos e entre regiões; seu discurso e seu programa constituem um desafio ao status quo político. Mesmo não sendo a maioria dos jovens adultos da sociedade, os islamitas dão provas de uma convicção política, de uma vontade e de um ativismo tão grandes, que fazem com que sejam respeitados e mesmo temidos. Definiram a noção de engajamento em termos tais, que ela passou a ser referência para os demais. Embora os detalhes de seu programa se mostrem imprecisos, seu potencial de mobilização é real e impressionante.
Imagem de benevolência paterna
Como conciliar a imagem positiva de desenvolvimento social com a realidade das mulheres maltratadas, a escravidão doméstica e o analfabetismo?
Essa orientação política seria ainda mais difundida se o regime não tivesse concebido estratégias para contê-la. Mas, em seus esforços para destruir a expressão política islamita, as elites também destruíram a política em geral, o que explica o cinismo que reina por toda a parte – e resumido de maneira surpreendente numa pesquisa publicada em julho de 1998, por Le Journal (Rabat), a qual revela que apenas 3,1% dos marroquinos confiam nos dirigentes políticos e 3,9% na polícia! 3. Quase quatro anos depois, o mesmo sentimento se manifesta em outra pesquisa que mostra que, em cada dez pessoas ouvidas, nove são incapazes de identificar, pela sigla ou pela orientação ideológica, os partidos políticos atuais4.
O único partido islamita autorizado a participar das eleições (Al-Tawhid wa Al-Islah – Unidade e Reforma) e seu atual dirigente, Abdallah Benkirane, não impõem o mesmo respeito que Al-Adl wa Al-Ihsan, do xeque Yassine, e não têm o mesmo apoio popular. Assim como seus colegas magrebinos, o xeque Yassine, apesar de seus 74 anos de idade, emana uma “aura espiritual”. Da mesma forma que Abassi Madani, na Argélia, dirigente da Frente Islâmica da Salvação (FIS), que se encontra na prisão, e Rachid Ghannouchi, na Tunísia, dirigente do Movimento da Tendência Islâmica, atualmente no exílio, sua “barba louca” e seus “olhos cintilantes” lembram mais a benevolência paterna que o fanatismo religioso5.
A “democracia islâmica”
Para se compreender o abismo entre a imagem e a realidade, é preciso analisar as diferenças entre gerações que surgiram durante as duas últimas décadas
O xeque Yassine tornou-se conhecido a partir de 1974, graças a uma carta aberta endereçada a Hassan II, intitulada “Islã ou o Dilúvio?”, em que advertia o rei de que ele conheceria a cólera de Deus, se não se arrependesse e não enveredasse pelo caminho da virtude. Em 1981, Yassine publicou (em francês) La Révolution à l?heure de l?Islam, descrito por ele como um “livro de apelo” e também como um “livro de combate”. Trata-se, escreveu ele no prefácio, de “islamizar a modernidade e não de modernizar o Islã”. O “grande desafio” é “superar a jahiliyya6, um mundo governado pela ignorância, violência e egoísmo; um mundo sem nenhum princípio espiritual, qualquer que seja”. Nesta visão, as sociedades jahil não são muçulmanas, mas, ao contrário, estão submetidas à dominação do Ocidente, cuja influência excessiva sobre os povos islâmicos explica o sofrimento, o atraso e a opressão que sofrem7.
Para ele, as sociedades jahil devem ser substituídas por regimes islâmicos que implantariam a “democracia islâmica”. Tal democracia introduziria um sistema governado “pelos sábios e não pelos espertos”. As novas regras se baseariam em três pilares: restauração da justiça pela lei; restabelecimento da moralidade pela educação; renascimento do hisba (poder de exercer o controle). Democracia islâmica significa representação (eleições em cada etapa), responsabilidade, controle e, portanto, sanção. Participação política e governo da maioria são a regra. Só se pode combater a jahiliyya com a djihad; mas djihad é ação, não é violência. Menos que declarar guerra ao inimigo, trata-se de apoiar ativamente “a instrução e a ação política até que as idéias e os hábitos jahiliyya sejam completamente dominados”.
Islamismo popular, a esperança de mudança
Os jovens com instrução secundária ou superior só dispõem de duas saídas: deixar o país ou se lançar na economia informal, tornando-se marginais
Privados de uma rede de mesquitas para divulgar sua mensagem, os discípulos do xeque Yassine utilizam o boca-a-boca, as fitas de vídeo, a Internet, revistas e jornais de circulação restrita, bem como as comunidades muçulmanas no exterior para propagar suas idéias. Sua presença é sentida até nos Estados Unidos, onde os estudantes marroquinos, numa universidade como a de Iowa, estão ativamente engajados na promoção das idéias e dos artigos do xeque.
Ao mesmo tempo em que aumenta a distância entre a imagem e a realidade no Marrocos, existem riscos de erupção de violência política. As condições que levam as pessoas à ação violenta estão reunidas: a imensidão dos problemas econômicos, uma profunda insatisfação entre os jovens desempregados miseráveis das grandes cidades, a ausência da esperança – tanto para os que têm diploma do curso secundário quanto para de curso superior – de encontrar um emprego que seja adequadamente remunerado e que corresponda às suas qualificações. Além disso, os desafios culturais e éticos colocados pela onipresença do Ocidente, pelo turismo, espetáculos, filmes, televisão, música e literatura suscitam igualmente questões perturbadoras para os conservadores, os tradicionalistas e os fiéis do país.
Em todos esses domínios, o islamismo popular – cuja mensagem é tão política e ético-cultural quanto religiosa – oferece a muitos uma esperança de mudança. Continuará influenciando a maneira de pensar dos jovens e dos pobres das cidades, tanto pelo discurso religioso quanto pelos serviços prestados nas áreas de emprego, habitação, assistência médica de emergência, alimentação barata e apoio escolar. À medida que esses esforços populares são freados ou sabotados por um Estado manipulador, opções mais radicais podem surgir, apoiadas ideologicamente e dirigidas politicamente por movimentos do tipo da Al Qaida ou de outros filhos do islamismo com tendências semelhantes.
(Trad.: Marinilzes Mello)
1 – The New York Times, 4 de julho de 2002.
2 – Ler, de Pierre Vermeren, “Sonhos e pesadelos europeus”, Le Monde diplomatique, junho de 2002.
3 – Ler “Morocco”, Economic Intelligence Unit, Londres, quarto trimestre de 1998.
4 – Le Monde, 3 de dezembro de 2001.
5 – Ler, de Henry Munson Jr., Religion and Power in Morocco, ed. Yale University Press, New Haven,