O absurdo estatuto do Banco Central
Para fazer parte da união monetária, é necessário se subordinar ao masoquismo macro-econômico conservador, dogmático, anti-democrático e auto-imposto sobre as economias da zona do euro e que não pode enfrentar os problemas resultantes da supremacia do dólarJohn Grahl
Nos países membros da União Européia a alternância de diferentes partidos políticos a frente dos governos freqüentemente faz com que diversas iniciativas e legislações fracassem ou sejam anuladas. Já na própria União, entretanto, o passado vem se tornando uma espécie de garantia adquirida a ser reafirmada permanentemente e protegida de todas as críticas. Um exemplo: o poder centralizado sobre a política monetária confiado a um Banco Central Europeu (BCE) que escapa a qualquer controle político.
Bem antes que esse sistema entrasse em vigor, suas falhas foram apontadas por diversos especialistas de todas as orientações políticas. De acordo com eles, a estrutura do BCE era profundamente anti-democrática a medida em que privava as autoridades públicas eleitas, tanto em nível nacional como as da própria União, de intervir sobre as políticas macro-econômicas. Eles apontavam ainda que as prioridades e as metas da instituição eram desequilibradas visto que sua atuação era orientada ao controle de preços, a despeito dos efeitos que isso pudesse causar em termos de desemprego, dificuldades financeiras ou da desorganização do sistema produtivo.
Quanto às políticas orçamentárias, submetidas ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, elas deveriam obedecer a critérios que limitavam o montante da dívida pública, ainda que isso significasse sacrificar outros objetivos. Esperava-se, a principio, que os métodos do BCE, copia exata dos empregados pelo Banco Central Alemão em circunstâncias totalmente diferentes, oferecessem garantias de eficácia, mesmo que houvesse muitas evidências provando o contrario. Um exemplo disso é a insistência dogmática sobre o valor dos agregados monetários como guias que devem conduzir a gestão do dinheiro da União uma vez que esses indicadores, julgados antes sem importância, haviam sido abandonados há cerca de uma década por outros bancos centrais. Seis anos de experiência de união monetária confirmaram que tais criticas tinham fundamento. Entretanto, o dispositivo permanece quase sagrado para a Europa Oficial.
Alta taxa de desemprego
A política macro-econômica praticada nos Estados Unidos não negligencia a estabilidade de preços, mas se preocupa igualmente com o nível de produção e de emprego
Ao longo dos últimos quatro anos, as taxas de crescimento anual médio da União Européia foi de 1,5%, isto é, inferior à registrada no fim dos anos 1990 e apenas metade da taxa projetada pela Estratégia de Lisboa. O nível da atividade econômica sofreu uma elevação que foi suficiente apenas para estabilizar a taxa de desemprego por volta dos 15%, mas não para aproximá-la dos 7,4% a 8,1% projetados para o período de 2001 à 2004. Ainda que os novos países membros registrem taxa de crescimento um pouco superior; a de desemprego se mostra ainda mais elevada: 14,4% nos últimos quatro anos.
A resposta invariável do BCE a estes problemas foi de pedir mais “reformas estruturais”, maior “flexibilidade de preços e salários” e maior “mobilidade da mão de obra”. Hoje, após a derrota nos plebiscitos da Holanda e da França e diante da crescente dificuldade de culpar a ameaça inflacionista, o perigo da globalizacão serve de justificativa para as mesmas medidas: não regulamentação, pressão sobre os desempregados e deslocamento de empresas do setor público e privado. No entanto, em escala global, as economias dos países da União vem se comportando muito bem. Em 2004, a dinâmica exportadora sustentou o rápido aumento da produção. Por outro lado, os mercados internos, especialmente no segmento de bens materiais, estagnaram ou se retraíram.
Se a busca obstinada de flexibilidade, a qual constitui a essência das políticas econômicas européias há mais de duas décadas, tivesse permitido resolver a questão do desemprego, este seria um obstáculo já ultrapassado. A persistência das altas taxas de desempregados combinada a medidas liberais que afetam o mercado de trabalho reduziram fortemente a fatia representada pelos salários no produto interno bruto nacional da União: de 73, 4% em 1962 à 69,2% nos anos 90 e chegando a atingir 68% em 2004. O enorme aumento de benefícios que compõem esses números – entre um quarto e um terço do total – reforçado por uma fiscalização favorável ao capital, se revelou incapaz de atrair os investimentos esperados: ao longo dos quatro primeiros anos desta década, os investimentos nos 25 mercados que compõem a União aumentaram apenas 0,5%, sendo que chegaram a baixar na zona do euro (- 0, 2% em média). O ano de 2004 foi o primeiro em que se pôde observar um aumento desses investimentos (+ 3,2%).
Deferência servil
O alto nível de desemprego existente na Alemanha, na França ou na Itália convenceu os britânicos que vale mais a pena ficar fora da zona do euro e não se submeter as suas regras
Em diversos aspectos de sua política econômica, os responsáveis da União demonstram uma deferência relativamente servil em relação aos Estados Unidos. Toda a Agenda de Lisboa se inspira na crença inocente de uma “nova economia” cuja origem está no boom acionário norte-americano. Tentativas insistentes de duplicar mercados de trabalho pretensamente flexíveis, promoção do capital de risco, imitação das estruturas das empresas: é com uma exuberância irracional que os dirigentes europeus, tanto em nível nacional quanto os da União, quiseram imitar os Estados Unidos.
O estatuto e as missões do Sistema de Reserva Federal Americano mantém, no entanto, um contraste marcante com aqueles do BCE, com seus olhos fechados ao projeto constitucional. A Reserva Federal é apenas uma agência governamental, dentre várias outras, cuja ação se submete às decisões do Congresso. Ela deve se ocupar de, a longo prazo, “manter o crescimento dos agregados monetários e de crédito favorecendo o potencial de aumento da produção de maneira a promover efetivamente os objetivos de nível máximo de emprego, estabilidade de preços e taxas de juros moderadas”.
O contraste entre as duas instituições tem consideráveis implicações sobre as políticas macro-econômicas. A que é praticada nos Estados Unidos não negligencia a estabilidade de preços, mas se preocupa igualmente com o nível de produção e de emprego. Em longos períodos de recessão ou de crescimento de desemprego, os instrumentos macro-econômicos são utilizados para reaquecer as atividades a exemplo dos estimulantes orçamentários do presidente Ronald Reagan no início dos anos 80, da baixa nas taxas de juros dos anos 90 ou da baixa dos impostos da gestão de Bush. Criticáveis sob diversos aspectos; essas políticas foram eficazes para elevar a taxas de atividade e de emprego, superiores as da Europa há mais de 20 anos.
A rejeição britânica
A enorme expansão da zona do euro que seria causada pela participação de Londres facilitaria enormemente a condução de uma política monetária européia
Trata-se até mesmo de uma política social: seria possível dizer que o crescimento faz parte do modelo social americano, ou ainda que o crescimento é uma espécie de substituto de políticas sociais. Os americanos podem viver ou morrer no mercado, mas ao menos exigem que ele funcione. A observação da sua experiência faz com que tomemos consciência da dupla irresponsabilidade dos decisores políticos europeus: uma pressão contínua é exercida para reduzir os indicadores de desemprego e para restringir os direitos dos desempregados e, ao mesmo tempo, nenhuma medida macro-econômica é tomada para criar empregos.
Seria difícil encontrar uma questão política sobre a qual os britânicos sejam tão unânimes quanto a rejeição ao euro. Mesmo que seu país faça parte da minoria mais determinada a defender a formação da União, praticamente nenhum britânico advoga a favor da entrada na união monetária. Uma simples comparação com a performance macro-econômica dos países da zona do euro fecha o debate. O regime macro-econômico atual dos britânicos é considerado muito mais flexível e pragmático em termos de políticas orçamentária e monetária. A Comissão já repreendeu Londres diversas vezes por violar as normas do Pacto de Estabilidade, mas o alto nível de desemprego existente na Alemanha, na França ou na Itália convenceu os britânicos que vale mais a pena ficar fora da zona do euro e não se submeter as suas regras.
A ausência do Reino Unido da zona do euro impõe um problema a união monetária pois significa que os mercados financeiros britânicos, vastos e altamente líquidos, fazem um uso bastante limitado da moeda européia. Afinal, a autonomia de todo o sistema monetário depende em grande parte do tamanho e da eficácia de seu sistema financeiro. Assim, a enorme expansão da zona do euro que seria causada pela participação de Londres facilitaria enormemente a condução de uma política monetária européia e compensaria ou limitaria o impacto das perturbações vindas do exterior como, por exemplo, as mudanças da política americana. Se os dirigentes da zona do euro de fato de preocupassem com o futuro, eles se dedicariam a rever profundamente os procedimentos e conteúdos das decisões do BCE, de maneira a promover o emprego e a atividade econômica.
Sacrifícios inexplicáveis
A persistência da estagnação e a obsessão doentia por equilíbrio contribuem para enfraquecer o euro a medida em que há cada vez menos ativos europeus disponíveis
O longo período de preparação entre o tratado de Maastricht, em 92, e a introdução da moeda única, em 99, causou sérios desgastes em vários países e sobretudo nos que fazem parte da zona do euro: o respeito aos critérios de convergência absolutamente arbitrários impostos pelas finanças públicas e pelas taxas de juros e de câmbio resultou em políticas macro-economicas restritivas e a um aumento do desemprego. A razão de ser desses sacrifícios nunca foi esclarecida -tratava-se de impor uma estabilização dolorosa a moedas destinadas a sair de circulação.
O tratamento reservado aos novos estados membros da União é ainda mais ilógico: ao contrário do franco e do marco, moedas da França e da Alemanha absorvidas no euro, o zloty polonês, o forint húngaro etc vão simplesmente desaparecer. O peso monetário combinado desses países é tão pouco que sua situação econômica terá pouquíssima influência sobre a zona do euro, da qual passarão a ser parte.
Na verdade, a integração técnica de mercados de crédito a curto prazo, necessária a sua participação na união monetária, já foi realizada. Um longo período de observação será imposto a estes países, assim como os critérios arbitrários de taxas de inflação, taxas de câmbio e de dívida pública. Para fazer parte da união monetária, é necessário se subordinar ao masoquismo macro-econômico. Ao mesmo tempo, o problema maior dos novos integrantes da união monetária – a fixação de taxas de conversão com o euro favorecendo os altos níveis de exportação e a criação de empregos -é negligenciado.
Obsessão doentia
Se a rejeição do tratado constitucional europeu re-colocar o atual regime macro-econômico no centro das discussões, ela representará um avanço para a construção européia
Lançado em 1999 valendo 1,16 dólar, o euro baixou até 82 centavos de dólar em 2001 por causa dos fluxos de capitais para os Estados Unidos ligados à “bolha acionária” que estimulavam a moeda norte-americana. Em seguida, a explosão desta bolha e enormes escândalos financeiros do tipo Enron lançaram o dólar abaixo e catapultaram o euro a alturas nunca antes atingidas. Na economia mundial, o crescimento e o desenvolvimento são elementos tão importantes quanto a estabilidade de preços e o equilíbrio orçamentário na determinação da paridade do câmbio. Um dólar fraco contribui para isolar a Europa das perturbações externas, sobretudo do aumento do preço do petróleo, e também para multiplicar as possibilidades de expansão de emprego e de atividade.
Na maior parte dos lugares do mundo, os investidores ficariam felizes de possuir ativos em euros. Não tirar proveito dessas oportunidades tem um custo elevado. A persistência da estagnação e a obsessão doentia por equilíbrio contribuem para enfraquecer o euro a medida em que há cada vez menos ativos europeus disponíveis, isto é, cada vez menos razões para se investir nas economias européias.
Da maneira como foi concebida, há quase 40 anos, a união monetária consistia num projeto inovador e otimista: uma moeda comum iria diminuir os contrastes e, em particular, aqueles resultantes da supremacia do dólar. A concretização deste projeto sob uma forma conservadora, dogmática e anti-d