O acelerado desmonte do Estado
O avanço das políticas neoliberais no governo Raffarin coloca a França entre os países com atestado de bom comportamento na OCDE ? redução nas aposentadorias, cortes nos salários, flexibilização dos direitos trabalhistas. E enriquecimento de quem vive na ciranda financeiraMartine Bulard
Ao ler os comentaristas, poder-se-ia ter a impressão de que os negócios da França são geridos com uma bonomia negligente. Fala-se de um governo “hesitante”, de ministros “inconvenientes”, de um poder “à deriva”. É uma ilusão: com uma determinação infalível – que não exclui desvios e contornos – o governo de Jean-Pierre Raffarin atacou o que resta do modelo social francês.
Em 700 dias no poder, que balanço! Recuo do direito à aposentadoria; volta do controle da Justiça, com a lei Perben 2; diminuição das indenizações do seguro desemprego; aumento das isenções fiscais para os altos rendimentos; redução das taxas de reembolso dos cuidados médicos; diminuição das verbas para a pesquisa e a educação; preparação de uma “reforma” da Seguridade Social inspirada na das aposentadorias; desmantelamento programado da legislação do trabalho… São medidas perfeitamente coerentes: elas visam os pobres (em condições ainda mais precárias) e os ricos (sempre mais garantidos).
Aos pobres, cortes
As medidas neoliberais visam os pobres (em condições ainda mais precárias) e os ricos (sempre mais garantidos)
Apesar da franqueza evidente do primeiro-ministro, a brutalidade das decisões lembra
que uma das características da elite é seu desprezo pelos cidadãos comuns. O ministro da
economia Francis Mer não afirmou que: “Aqueles que ganham muito dinheiro o merecem:
trazem para a sociedade um valor superior àqueles que ganham menos1 ?”
Esses “merecedores” demonstram sobretudo seus dons de predadores: os patrões das 40 maiores empresas concederam a si mesmos, entre 2000 e 2002, um aumento de salário de 84%! Sem falar nas ações preferenciais e outros benefícios… Obtiveram uma redução significativa do imposto de renda, já que dois terços dessa redução beneficiam os 10% dos lares mais ricos.
Por outro lado, o governo e sua maioria suprimiram o seguro de “mãe sozinha”, que beneficiava 40 mil pessoas entre as mais desfavorecidas. Atualmente uma em cada seis crianças vive numa família pobre, por causa do desemprego dos pais, mas também por causa da “insuficiência das transferências destinadas às crianças”, segundo relatório recente2 do Conselho de emprego, renda, coesão social (CERC).
Ao mercado, tudo
Atualmente uma em cada seis crianças vive numa família pobre, por causa do desemprego dos pais
Além disso, o governo empreendeu um programa de remodelagem completa da sociedade, aplaudido pelo alto patronato3 . Trata-se de fazer tábula rasa das proteções sociais e de entregar ao mercado tudo o que, ao longo das lutas, dele escapara. Uma tarefa ainda mais difícil, na medida em que, na França como em muitos países vizinhos, o edifício social está baseado no trabalho e nos assalariados.
Essa transformação acompanha a nova fase da valorização do capital, cujo espaço geográfico se amplia para o planeta e o espaço tempo se reduz à última sessão da bolsa de valores, o que mata no nascedouro toda e qualquer ambição industrial ou tecnológica e provoca reestruturações permanentes. Os “planos sociais” para conveniência da bolsa proliferam. Daí a vontade de incentivar as reestruturações aceleradas, enquanto, em 2003, pela primeira vez nos últimos dez anos, a França mais suprimiu do que criou empregos.
“A proteção do emprego faz o desemprego”, garante-nos a vulgata neoliberal. Há mais de 20 anos, o dogma é aplicado, por pressão de instituições pretensamente neutras, como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Desde 1989, esta última indicava a “rigidez do mercado de trabalho francês”, razão pela qual os direitos foram jogados no lixo, ora por governos de esquerda, ora pelos de direita. Sem com isso regulamentar nada, pelo contrário. Assim sendo, suprimiu-se a autorização administrativa de demissão, atacou-se o contrato por tempo indeterminado (atualmente, cerca de 80% das contratações se fazem por tempo determinado), impôs-se o tempo parcial para as mulheres, suspendeu-se o controle do substituto (até 40% do pessoal de determinados grupos). Inventaram-se os horários móveis, a contagem anual do tempo de serviço e a flexibilização generalizada…
Sem emprego e sem seguro
O governo faz tábula rasa das proteções sociais e entrega ao mercado tudo o que, ao longo das lutas, dele escapara
Esse programa lembra estranhamente as “sessenta recomendações” 4 imperativas fixadas pela OCDE em 1994, assim formuladas: “Rever as disposições relativas à seguridade do emprego, aumentar a flexibilidade do tempo de serviço a curto prazo e por prazo indeterminado (…), agilizar as despesas com o desemprego, favorecer os contratos amigáveis entre trabalhadores e empregadores” etc. 5 A cada ano, a OCDE transforma-se em juiz. Parabeniza a Bélgica que, a partir de 1993, “tornou mais duras as condições de concessão de seguro desemprego”, depois os Países Baixos em 1996, depois a França em 1999. Em 2002, os pontos positivos vão para a Alemanha, a Bélgica, a Espanha e a Suécia, que “flexibilizaram as regulamentações aplicáveis ao contrato por tempo determinado e às agências de trabalho temporário”.
Durante certo tempo discriminada (sobretudo por causa das 35 horas de trabalho semanal), a França juntou-se ao batalhão dos alunos-modelo, de maneira singular com a expulsão de desempregados do sistema de indenização6 (180 mil em 1o de janeiro de 2004) – que não é suficiente, no entanto, para impedir o aumento do número dos sem-emprego. As vítimas vêem-se acusadas de desonestidade, ameaçadas de punição. O relatório Marimbert sobre a privatização da Agência Nacional para o Emprego denuncia “as dificuldades crônicas” em verificar se os desempregados procuram de fato um emprego, enquanto o Tribunal de Contas lamenta “a falta de empenho dos controles da procura por emprego” e “a baixa taxa de punição” 7 . O modelo é a Alemanha de Gerhard Schröder, que duplicou, entre novembro de 2002 e novembro de 2003, o número de seguros desemprego suspensos por causa de “não procura efetiva” de emprego.
É provável que alguns passem por entre as malhas da rede e se beneficiem com o sistema de seguro desemprego. Mas, na França, o que choca é sobretudo o nível recorde de supressões administrativas: 225 408 em 2000, 395 007 em 20038 . Tanto que só 48% dos desempregados recebem seguro desemprego. O governo pretende, no entanto, acelerar as exclusões. Os desempregados atingidos pela diminuição do abono especial de solidariedade (ASS) vão se tornar “sem direitos”. No máximo, vão receber a renda mínima de inserção (RMI), em breve corrigida para menos sob a forma de renda mínima de atividade (RMA).
Trabalho precarizado
A França juntou-se aos alunos-modelo da OCDE, com a expulsão de desempregados do sistema de indenização
Suspeitos de viverem como privilegiados – com um pouco mais de 13 euros por dia! – os “eremistas”, que viraram “eremastas”, devem aceitar qualquer emprego sub-remunerado, sem nem mesmo ter direito aos benefícios garantidos aos assalariados (não contribuem para a aposentadoria, por exemplo). Essa RMA vai cair do céu para um empregador que disporá de um assalariado, muitas vezes especializado (27% dos beneficiários da RMI têm curso médio completo e até mais), com dois terços pagos pela coletividade e sem direitos trabalhistas, ou quase. Os grandes pontífices do liberalismo chamam isso de “flexibilização das políticas de emprego”.
Uma vez precarizados os assalariados mais frágeis, é preciso atacar os que não o são ainda. Em nome da igualdade de tratamento com “os trabalhadores temporários”, a OCDE exige “uma liberalização da legislação em matéria de proteção do emprego para os trabalhadores permanentes” 9 (leia-se: os contratados por tempo indeterminado e os funcionários públicos). Alguns intelectuais em boas relações com o governo popularizam esses temas, que às vezes a mídia se diverte em contrapor. Atacando a “França que decai”, Nicolas Baverez garante que os franceses “fizeram a escolha do crescimento lento e do desemprego para evitar a reforma do Estado-Providência” 10 , a ser feita urgentemente. Negando qualquer idéia de declínio, Jacques Marseille chega a uma conclusão similar: “O desemprego não está ligado ao crescimento, mas à ação de três pobres coitados: o Estado, os sindicatos e a Educação Nacional”. E ele conclama logicamente a derrubar “a fortaleza dos assalariados estatutários” 11 .
Também é este o objetivo de Chirac e Raffarin. Assim como para a aposentadoria ou a seguridade social, eles preparam o terreno com um relatório, o de Michel de Virville. Esse ex-diretor geral da Renault, bem conhecido na Bélgica pelo fechamento abrupto da fábrica de Vilvoorde em 1997, propõe um supercontrato por duração determinada de cinco anos para os executivos, a criação de um “direito de pedágio das demissões” (uma espécie de taxa por empreitada que exonera os empregadores de todo e qualquer plano social e outro recurso), a limitação dos direitos das comissões de fábrica, a marginalização dos juízes em caso de conflito, e a preeminência do acordo de empresa sobre as convenções de setor e mesmo sobre a lei. Encontra-se aqui o famoso contrato “amigável” de que falava a OCDE desde 1994. O trabalho voltaria a se tornar uma relação puramente mercantil, no âmbito de um contrato “livremente” acertado entre o empregador todo poderoso e o assalariado desfavorecido – uma versão moderna da fábula da raposa “livre” no galinheiro “livre”, já denunciada por Karl Marx.
Privatização do Estado
Uma vez precarizados os assalariados mais frágeis, é preciso atacar os que não o são ainda, como os funcionários públicos
Essa fragilização programada dos direitos coletivos é acompanhada por uma redução do campo dos serviços públicos, que trariam uma certa proteção. Depois da privatização de uma parte das aposentadorias, o governo gostaria de transferir toda uma parte do seguro saúde para as companhias de seguro. A pesquisa pública é deixada de lado, enquanto aumentam os auxílios ao setor privado. Para sobreviver, o ensino superior é obrigado a passar o chapéu para fundos privados. No entanto, os estragos da privatização do transporte ferroviário no Reino Unido ou da eletricidade nos Estados Unidos, o insucesso dos fundos de pensão norte-americanos – que solicitam de agora em diante o auxílio público federal12 – não deveriam levar a uma mudança de orientação?
Contrariamente às aparências, os entusiastas do liberalismo nada têm contra o Estado… se este servir de muleta para o capital. Aqueles que denunciam as despesas públicas abstêm-se de lembrar que os incentivos ao investimento, ao emprego ou à exportação representam mais de 100 bilhões de euros que escapam de qualquer controle. O que espera, portanto, o Tribunal de Contas, tão preocupado com o custo da indenização dos desempregados, para denunciar esse escândalo permanente?
Pois esses fundos públicos não criam empregos nem reforçam a indústria ou os serviços, e promovem menos ainda um novo tipo de desenvolvimento: 70% dos recursos dos grupos franceses desaparecem em dividendos, em juros e em aplicações financeiras. Em 2000, eles compraram ativos no exterior a preço de ouro, a ponto de propulsar a França à colocação de segundo investidor mundial. Como explica o economista Claude Picart num estudo muito oficial13 , disso resulta “uma transferência (de recursos) da França para o exterior, sobretudo para os Estados Unidos. Isso se traduz por um aumento dos dividendos depositados pela base produtiva (…) e pode, portanto, levar a uma política mais restritiva (salários, investimento)”. Dito de forma mais direta, os assalariados e os desempregados pagam as operações financeiras das multinacionais no exterior. Depois de uma pausa por causa da anemia da bolsa, essas aquisições-fusões, que consomem muito dinheiro sem criar um centavo de riquezas suplementares, recomeçaram com mais intensidade , como a operação Aventis-Sanofi. Para fazer essa guerra das OPA, o que poderia ser chamado de “internacional financeira” precisa de assalariados tão “fluidas” quanto o capital, tendo na mira uma nova degringolada da massa salarial.
Caminho da reação
Os entusiastas do liberalismo nada têm contra o Estado… se este servir de muleta para o capital
A totalidade é acompanhada por um sistema repressivo ainda mais pernicioso na medida em que parece funcionar em proveito dos mais frágeis, enquanto favorece os fortes. A defesa da escola serve de pretexto para Nicolas Sarkosy propor a presença de um policial nos colégios e liceus, enquanto são suprimidos cargos de professores e de vigilantes. A chantagem com o emprego faz chegar a repressão sindical que vai da demissão dos assalariados e representantes sindicais até os processos contra militantes14 . Quando o Estado social recua, o Estado penal avança.
Mas os assalariados não têm como vocação abandonar sua cidadania na porta da empresa. E o poder público não é destinado a transferir suas prerrogativas aos proprietários do capital, como fez desde o início dos anos 1980. Talvez seria hora de remanejar um contrato social coletivo, de inventar regras, em âmbito francês, europeu e mundial, para se opor à onipotência do mercado e tirar dele setores inteiros da atividade humana (cultura, educação, patentes, água…).
Evidentemente, o movimento social ainda está atônito por não ter conseguido fazer com que governo recuasse na questão das aposentadorias. Continua enfraquecido por uma esquerda que não aprendeu nada com seus insucessos de ontem e que se revela incapaz de apresentar a menor alternativa. Os sindicatos permanecem divididos. As greves que acontecem aqui e ali continuam voltadas para a empresa, e terminam com mais ou menos sucesso. Não são, por isso, inúteis. Além de servirem para limitar os estragos, permitem aos que as conduzem (re)conquistar uma dignidade pessoal e coletiva. Ao dizer “não”, os assalariados e os desempregados contribuem também para lançar pistas para um projeto de reformas radicais na medida do estado de urgência social da França (e da Europa).
(Trad. Regina Salgado Campos)
1 – France 2, 15 de setembro de 2003.
2 – “Les enfants pauvres en France”. Rapport n.4, fevereiro de 2004, La Documentation française. Um quarto das crianças pobres vive em famílias de imigrantes.
3 – Ernest-Antoine Seillères, entrevista coletiva, 13 de janeiro de 2004.
4 – “La stratégie de l?OCDE pour l?emploi”, OCDE, Paris, 1994.
5 – Ler de Serge Halimi, Le grand bond en arrière, Fayard, 2004, e de Jacques Nikonoff, “Le défi social”, Manière de Voir, n. 66, novembro-dezembro de 2002.
6 – Com o apoio de sindicatos, sobretudo da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT).
7 – Jean Marimbert, “Le rapprochement des services de l?emploi”, janeiro de 2004, www.travail.gouv.fr e “Le contrôle des demandeurs d?emploi”, janeiro de 2004, www .ccomptes.fr
8 – Ministério do Trbalho e CGT-Desempregados. Com as supressões em razão da ausência ao controle dos solicitantes, o número multiplicou-se por 2,5.
9 – “Performance récente du marché du travail et réformes structurelles”, OCDE, Paris, 2002. Ler também “Unemployment and labour marcket institutions: why reforms pays off “, FMI, Washington, 2003.
10 – La France qui tombe, Edition Perrin, Paris, 2003.
11 – La guerre des 2 France, Plon, Paris, 2003. E entrevista em Marianne, 2 de février de 2004, Paris.
12 – David Finkel, “Over 50 and a slave to health insurance”, Washington Post, 13-19 de outubro de 2003.
13 – “Internationali
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).