O Acordo de Escazú: promessa de um novo regionalismo sustentável?
A falta de transparência e a corrupção em instituições públicas e privadas também alimentam os crimes com efeitos negativos sobre o meio ambiente, como fraudes em licitações e licenças ambientais
A cooperação regional na América Latina e Caribe anda em baixa, com organizações intergovernamentais, tais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Mercosul, praticamente paralisadas ou atuando muito aquém das suas capacidades devido a divergências políticas entre Estados-membros e à falta de recursos. No entanto, mesmo diante de um contexto de retrocessos, uma iniciativa promissora ganha espaço na agenda latino-americana. O Acordo Regional sobre o Acesso à Informação, à Participação Pública e o Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais, também conhecido como Acordo de Escazú, foi adotado em 2018 na Costa Rica com o intuito de garantir o direito das gerações presentes e futuras a um meio ambiente saudável e ao desenvolvimento sustentável. Se o Brasil ratificar o acordo e a sociedade civil latinoamericana se mobilizar em torno da iniciativa, Escazú tem potencial para dar novo fôlego à luta por justiça socioambiental e pela ação climática na região.
Escazú tem sua origem na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, realizada no Rio de Janeiro. O acordo é legalmente vinculante e prevê mecanismos voltados ao fortalecimento da democracia ambiental por meio da expansão de capacidades e da participação pública nos processos decisórios ambientais, além de prever incentivos e facilitação do acesso à informação ambiental por grupos em situação de vulnerabilidade.
Desde o início do processo de redação, além dos países da região, Escazú contou com a participação de órgãos das Nações Unidas e de representantes da sociedade civil para fornecer insumos ao conteúdo do acordo. As negociações produziram obrigações progressivas e específicas, tais como medidas para garantir um ambiente seguro para a atuação de defensores do meio ambiente através da prevenção, investigação e punição legal de quem os ataca. Dessa forma, Escazú poderá amenizar os obstáculos associados à luta pelos direitos humanos e ambientais na região, que se refletem em elevados índices de violência e assassinatos de ativistas ambientais e climáticos.
Esses desafios têm se aprofundado no Brasil nos últimos anos. O relatório publicado em 2020 pela ONG Global Witness, “Defender o amanhã: A crise climática e as ameaças contra os defensores do meio ambiente e da terra”, aponta um número recorde no número de ativistas assassinados em 2019 no mundo, colocando o Brasil em terceiro lugar, com 24 mortos—dentre os quais 10 indígenas. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2020, foram registrados 18 assassinatos em conflitos no campo. Para citar apenas um exemplo da impunidade em torno de tais crimes, em janeiro de 2021, Fernando dos Santos Araújo, um camponês negro e único sobrevivente da “Chacina de Pau D’Arco”, como ficou conhecido o massacre de dez trabalhadores rurais durante uma ação policial na Fazenda Santa Lúcia, no sudeste do Pará, em 2017, foi executado a tira-queima mesmo após integrar o programa federal de proteção a testemunhas.
A violência contra defensores se insere em um contexto em que o Brasil vivencia um número recorde de focos de queimadas em uma década e o maior pico de desmatamento na Amazônia nos últimos 12 anos. Ao mesmo tempo que os espaços de participação cívica na formulação de políticas públicas são reduzidos, o governo promove o sucateamento das instituições públicas, inclusive os órgãos de fiscalização ambiental, tais como IBAMA e ICMBio, e apoia tentativas de silenciar a sociedade civil que trabalha por uma visão mais sustentável do desenvolvimento e pela promoção do bem-estar e da justiça. As comunidades locais e os defensores ambientais na linha de frente são os que mais sofrem com esse desmonte.
A falta de transparência e a corrupção em instituições públicas e privadas também alimentam os crimes com efeitos negativos sobre o meio ambiente, como fraudes em licitações e licenças ambientais. Para a ONG Transparência Internacional, ao promover a produção e acesso à informação e incentivar a criação de práticas de governança mais participativas e transparentes, o acordo de Escazú também fortaleceria capacidades no combate à corrupção em questões ambientais.
Um grande desafio, no entanto, diz respeito ao enfrentamento às narrativas negacionistas em relação à ciência e às mudanças climáticas. Somado a um discurso de defesa da soberania nacional que enfraquece a cooperação internacional, inclusive na sua dimensão regional, o negacionismo adotado por governantes brasileiros pode pôr em xeque a tentativa de construir alternativas sustentáveis representada por Escazú.
Embora o acordo tenha sido assinado pelo Brasil durante a gestão do ex-Presidente Temer, até agora o atual governo não deu sinais de avanços concretos para a sua ratificação. Talvez porque promove exatamente o que o acordo busca combater: a falta de transparência, a redução da participação da sociedade civil, a criminalização de ativistas e cortes orçamentários robustos para órgãos ambientais, como aqueles previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, que dificultam a atuação estatal no combate aos crimes ambientais e na promoção de práticas sustentáveis.
Cabe aos atores latinoamericanos e caribenhos, sobretudo da sociedade civil e do setor privado, mobilizar uma rede transnacional que pressione para que os governos da região, inclusive o brasileiro, adotem medidas para garantir a justiça ambiental e climática, inclusive por meio da cooperação internacional, para a qual o Acordo de Escazú oferece uma oportunidade rara.
Gabrielle Alves é pesquisadora na Plataforma CIPÓ, um instituto independente dedicado a estudos sobre clima, governança e paz.