O avanço dos maoístas
Desde 1996, uma insurreição armada do tipo maoísta vem ampliando seu controle sobre uma parte considerável do país, sob a sombra dos dois gigantes, China e Índia, e embaralhando mais as cartas do jogo político da região do HimalaiaJean-Luc Racine
O Nepal enfrenta, desde 1996, uma insurreição dirigida pelo Partido Comunista Nepalês-Maoísta (PCN-M). Por trás do destino deste reino paira também a sombra de seus vizinhos gigantes: a China, que quer reforçar as rotas que levam do Tibete ao Nepal, e a Índia, alvo dos maoístas, que tecem sua teia com partidos-irmãos indianos. Desde que os rebeldes foram declarados terroristas, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha vêm fornecendo armas e assessores militares ao regime de Katmandu. A confusa situação nepalesa perturba um pouco mais o cenário geopolítico da região do Himalaia.
No contexto de um conflito que já fez quase 8 mil mortos, a rebelião armada do tipo maoísta vem ampliando seu controle sobre uma parte considerável do Nepal. Com um atraso de uma geração, o maoísmo inspira-se, neste país, no que foi o movimento revolucionário marxista-leninista na década de 60 no Estado indiano de Bengala Ocidental. Reivindica identificar-se com o naxalismo bengali1 e, em ambos os casos, o extremismo de esquerda se radicalizou e adotou a luta armada, quando os partidos comunistas tradicionais sempre aceitaram participar do jogo eleitoral2.
Jogo político triangular
Os maoístas nepaleses passaram a participar de um jogo político triangular em que, atualmente, o governo, nomeado pelo palácio real, tem mais força do que os partidos políticos representados no Parlamento. Nesse meio tempo, alternam-se as fases de “guerra popular” e de diálogo entre o poder e os rebeldes, que obedecem a um duunvirato constituído pelo ideólogo do movimento, Baburam Bhattarai, e o presidente do partido, Pushpa Dahal, também conhecido como Prachanda, o Terrível.
Foi em 1990 que uma aliança entre o Partido do Congresso Nepalês e o Partido Comunista Nepalês impôs ao rei Birendra, por meio de um poderoso movimento de agitação popular, a instauração de uma monarquia constitucional baseada numa democracia parlamentar. Isto representou uma autêntica revolução, num país governado durante um século por uma dinastia hereditária de primeiros-ministros e, posteriormente, controlado por monarcas que proibiram os partidos políticos.
Programa de 40 pontos
O programa do PCN-M mistura reivindicações políticas, sociais e culturais e aspirações nacionalistas contra os Estados Unidos e a Índia
O Partido do Congresso Nepalês venceu as eleições seguintes, em 1991, mas o Partido Comunista Nepalês – também chamado United Marxist Leninist (UML), após ter incorporado vários grupos dissidentes – veio logo atrás e, no biênio 1994-95, chegou ao governo. A ala comunista radical, que criticava o desvio “parlamentarista” do partido, se organizou em 1995 e estruturou o Partido Comunista Nepalês-Maoísta (PCN-M) que, no ano seguinte, lançou a palavra de ordem da guerra popular. Seu programa, com 40 pontos, mistura reivindicações políticas e sociais e aspirações nacionalistas contra os “imperialistas” (norte-americanos) e os “expansionistas” (indianos). Outras reivindicações sócio-culturais defendidas pela ideologia revolucionária são a terra para quem a trabalha, a luta contra a intangibilidade e contra a discriminação de castas (86% da população nepalesa é hindu), a igualdade para as mulheres em termos de herança e a igualdade de todas as línguas existentes no Nepal (o nepali é, de longe, o idioma mais falado, mas existem dúzias de outros).
Politicamente, o PCN-M defende um Estado secular (o reino do Nepal é o único Estado oficialmente hindu do mundo), a abolição dos privilégios reais (sem se manifestar explicitamente sobre a abolição da monarquia) e uma nova Assembléia Constituinte.
Habilidade cultural revolucionária
Os maoístas começaram por se implantar em dois distritos do oeste do país, Rolpa e Rukum, onde já existia uma forte tradição de extrema-esquerda. Adotaram a estratégia de Mao que consiste em “cercar as cidades a partir do campo”, em condições naturais propícias a uma guerrilha na montanha. Dirigiram suas ações contra personalidades importantes, agiotas, dirigentes administrativos e policiais. Com muita habilidade, os revolucionários também souberam demarcar simbolicamente seu território, utilizando-se de identidades étnicas: os antropólogos salientam a forma pela qual eles souberam lidar com as culturas existentes, apresentando-se como os únicos com força capaz de canalizar para o debate público as frustrações econômicas de uma população atolada num subdesenvolvimento que obriga à emigração para a Índia, entre outros motivos para se alistarem nos célebres regimentos gurkhas3.
De sua base rural no Meio-Oeste, o movimento maoísta foi, aos poucos, ganhando terreno, combinando reivindicações populares com uma violência que chega a aterrorizar. Executando “os inimigos de classe”, a guerrilha, suas milícias e seus tribunais populares são eficientes, diante de uma polícia detestada que o rei Birendra encarregara de conduzir, sozinha, a repressão. O movimento passaria a controlar cada vez mais regiões indecisas, que ficariam sob seu governo paralelo – em 2001, pelo menos cinco, dos 75 distritos existentes no país – mantendo 25 outros sob sua influência.
Chacina da família real
Os revolucionários souberam lidar com as culturas existentes, apresentando-se como os únicos capazes de canalizar para o debate público as frustrações econômicas
No dia 1º de junho de 2001, uma chacina dizimou a família real. Por ocasião de uma refeição em família, o príncipe herdeiro Dipendra matou seus pais e seus parentes, antes de voltar a arma contra si próprio. Morreria três dias mais tarde. Seu tio Gyanendra, que não estava presente naquele dia, era o único herdeiro direito do finado rei. Embora a tese oficial atribua o ato a um “momento de loucura devido a uma desilusão amorosa”, são muitos os nepaleses que acreditam numa conspiração. Embora nunca comprovada, também é essa a tese dos maoístas, que denunciam uma conspiração contra Birendra por ser este demasiado liberal e nunca ter aceitado usar o exército para combater os guerrilheiros.
Quando o rei Gyanendra subiu ao trono, os maoístas já haviam imposto várias derrotas ao regime e ao Partido do Congresso, no poder, que demonstrava sua fraqueza, dividido sobre a política a adotar diante da insurreição e rachado por lutas internas. No dia 19 de julho de 2001, Girija Prasad Koirala, o primeiro-ministro, renunciou. Foi sucedido por outro dirigente de seu partido, Sher Bahadur Deuba. Este avaliou que os maoístas buscavam uma saída política para a crise, pois o PCN-M multiplicava os contatos com os partidos parlamentares de esquerda.
“Insurrectos” viram “terroristas”
O PCN-M e o governo concordaram com um cessar-fogo. Iniciou-se um diálogo, mas as reuniões de agosto, setembro e novembro fracassaram. O primeiro-ministro Deuba anunciou, então, reformas que abrangem alguns pontos do programa social do PCN-M, mas não pode ceder às exigências de abolir a Constituição e abrir caminho para um regime republicano. No final de novembro, os maoístas retomaram a luta: política, através de uma greve geral de três dias, e, armada, através de ações em todo o país e atentados dirigidos diretamente aos militares – que o rei Gyanendra, ao contrário de seu finado irmão, decidira envolver na repressão.
Por recomendação do gabinete, o rei proclamou o estado de urgência em 26 de novembro de 2001. Eram conseqüências do 11 de setembro: os “insurrectos” se haviam tornado “terroristas” que o exército procurava eliminar, com o apoio de assessores norte-americanos, após a breve visita de Colin Powell, secretário de Estado, a Katmandu, em 18 de janeiro de 2002. Este ofereceu armamento leve e financiamento ao governo.
Ofensiva guerrilheira
Conseqüência do 11 de setembro: os “insurrectos” tornava-se “terroristas” que o exército procurava eliminar, com o apoio de assessores norte-americanos
Por exigência do primeiro-ministro, o estado de urgência, que fora proclamado por três meses, foi prorrogado. Sher Bahadur Deuba, o primeiro-ministro, foi expulso do Partido do Congresso Nepalês por Girija Prasad Koirala, que receava um aumento do poder real. Paralelamente, duas propostas de cessar-fogo feitas pelo líder maoísta foram rejeitadas e o exército intensificou as operações. Pela primeira vez, o “camarada Prachanda” sugeriu a organização de uma rodada de negociações com os partidos políticos, o palácio real e o exército, maneira de reconhecer que o rei tinha um papel a desempenhar.
No dia 4 de outubro de 2002, o rei demitiu Deuba, suspendeu as eleições – previstas para novembro – e constituiu um governo “apolítico”, dirigido por Lokendra Bahadur Chand e composto por membros da “sociedade civil” e políticos cuidadosamente escolhidos de forma a dividir as forças parlamentares. Ao mesmo tempo que criticavam a demissão de Deuba e falavam em retomar o diálogo, os maoístas intensificaram suas operações num número crescente de distritos: no final de 2002, estavam implantados em 55 dos 75 distritos existentes. As forças políticas se dividiram. O Partido Comunista, que se opunha à exigência maoísta de uma Assembléia Constituinte, defendia reformas constitucionais graduais, enquanto Girija Prasad Koirala continuava exigindo o retorno da Assembléia dissolvida pelo rei.
Atoleiro das forças pró-parlamentaares
No final de janeiro de 2003, os maoístas declararam um novo cessar-fogo. Enquanto as forças pró-parlamentares não saíam do atoleiro, representantes do rei retomavam o diálogo com os guerrilheiros, que continuavam seu trabalho político nos distritos em que se haviam implantado. No mês de março, ambas as partes adotaram um “código de bom comportamento”, o que representa uma vitória para os maoístas, que demonstram habilidade política. Em princípio, o acordo restringia a violência de ambos os lados. Na prática, reduzia a margem de manobra do exército e dava uma certa legitimidade ao poder do PCN-M e a seu braço armado, o Exército Popular de Libertação. Paralelamente, os maoístas exigiam a participação de todas as forças políticas no processo de paz e de reformas, assim como uma iniciativa junto aos grupos sociais desfavorecidos – sem mencionar a abolição da monarquia.
Em maio de 2003, sentindo o risco de uma marginalização, os partidos políticos lançaram um movimento de agitação de massa. A renúncia do primeiro-ministro, Lokendra Bahadur Chand, no dia 30 de maio – “para facilitar a reconciliação nacional” – não passou de mais um sinal da confusão política que prevalecia.
É verdade que a pressão maoísta representa, por si só, um problema que o rei Birendra permitiu que se desenvolvesse. Seu sucessor, mais atuante, manipula a insurreição para marginalizar as forças políticas que defendem um regime parlamentar – e que desconfiam que o rei queira restabelecer um regime autoritário. Mas a força dos maoístas revela uma crise mais grave, estrutural, que lhes dá um apoio significativo, para além do controle dos distritos pelas milícias e do terror da “guerra popular”.
Os riscos para a Índia e a China
A força dos maoístas revela uma crise mais grave, estrutural, que lhes dá um apoio significativo, para além do controle dos distritos e do terror da “guerra popular”
A denúncia das desigualdades, a exigência do respeito pelas pluralidades e o nacionalismo de um projeto econômico bastante anti-indiano repercutem de uma forma que explicaria, em parte, o fortalecimento do movimento. No momento, é difícil dizer se os maoístas esperam pela hora propícia para tentar uma revolução radical ou se irão se satisfazer em integrar as estruturas do poder, o que lhes permitiria levar adiante alguns aspectos de seu programa de 40 pontos.
No meio tempo, as chancelarias vivem um clima de apreensão. Pequim fez questão de se distanciar do movimento, acusado de denegrir o nome de Mao Tse-tung. A China não pode ficar feliz de ver assessores militares norte-americanos no Nepal: a partir do 11 de setembro de 2001, a presença norte-americana foi reforçada na Ásia Central, no Afeganistão e no Paquistão, ao mesmo tempo que os exércitos indiano e norte-americano passaram a multiplicar manobras conjuntas. Quanto à Índia – freqüentemente acusada, em Katmandu, de deixar os maoístas usarem seu território e até de os incentivar por baixo dos panos -, é incompreensível o que teria a ganhar com uma desestabilização do Nepal, ainda mais que os maoístas do PCN-M denunciam abertamente os interesses econômicos indianos, além de poderem influenciar os movimentos maoístas que desestabilizam os Estados de Bihar e Andhra Pradesh.
Emaranhado de crises
É difícil dizer se os maoístas esperam pela hora propícia para tentar uma revolução radical ou se irão se satisfazer em integrar as estruturas do poder
Em 2002, a Índia e o Nepal renovaram seu tratado comercial de 1996, e Nova Déli salientou ao primeiro-ministro nepalês da época sua preocupação em ver agentes dos serviços secretos paquistaneses utilizarem aquele país como escala para a passagem de grupos de radicais islâmicos atuantes na Caxemira e movimentos que visam a desestabilizar o Estado indiano. Os recentes sinais de reaquecimento das relações sino-indianas deveriam permitir um clima mais tranqüilo no que se refere a uma fronteira que é contestada pelos dois países, da Caxemira à Linha Mac Mahon4, passando pelo Sikkim, ainda reivindicado por Pequim.
Todo o Himalaia é um emaranhado de crises, expostas ou camufladas – a Caxemira, o Nepal, o Tibete – rodeadas por zonas de risco: o Sinkiang chinês agitado pelas reivindicações da população uigur, que explora redes de grupos radicais islâmicos; o Nordeste indiano, em torno de Assam, com focos separatistas sob controle, mas recorrentes. Cercado pelos dois gigantes nucleares da Ásia e às voltas com uma insurreição maoísta, o Nepal parece deslocado da História que vem sendo escrita pelo pensamento político atualmente dominante. Mas vale a pena ficar atento. O século XXI pode reservar algumas surpresas.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Referência à aldeia de Naxalbari, no norte de Bengala, local em que ocorreram as primeiras operações da “guerra popular”. Os naxalistas foram esmagados após alguns anos, antes que surgissem movimentos paralelos nos Estados de Bihar e Andhra Pradesh, sem chegarem a ameaçar o poder central.
2 – Ainda existem, na Índia, alguns bolsões do que se poderia chamar naxalistas: em Bihar, Estado vizinho ao Nepal, ainda persiste o Centro Comunista Maoísta, enquanto no de Andhra Pradesh o Grupo da Guerra Popular diminuiu bastante. Em julho de 2001, ambos esses movimentos e mais o Partido Comunista Nepalês-Maoísta e seis outras organizações partidárias da Índia, do Bangladesh e do Sri Lanka, criaram uma Comissão de Coordenação dos partidos e organizações maoístas do Sul da Ásia. Nesta comissão, de caráter mais simbólico do que funcional, os três primeiros são os únicos que detêm um peso significativo.
3 – O