O bloco Vacas Profanas e a manifestação feminista no Carnaval de Olinda
A proposta de utilizar o carnaval como narrativa de protesto para a libertação de corpas femininas, nos conduz ao olhar multidirecionado a que se propõe o bloco, afinal o que é feminismo pra você que nos lê? Pra nós são feminismos, assim, no plural, tal qual a festa de momo.
A correspondência entre carnaval e militância pode ser expressa no entendimento sobre as estratégias, traçadas ao longo da história, para que minorias pudessem resistir, ou melhor, (re) existir, numa forma de mostrar suas vivências através da arte para permanecerem firmes em suas lutas e convicções, apesar de cenários de opressões.
No Brasil, não é possível dissociar carnaval de reinvindicações de populações tidas como minoritárias que são vítimas de violências, falta de políticas públicas e silenciamentos. O carnaval, através de suas mais diversas manifestações, lançam luz sobre pautas políticas invisibilizadas e, muitas vezes, questionam as estruturas de governos e de poder.
Os exemplos dessas insurgências são os mais diversos, desde os barracões de escolas de samba do eixo Rio/São Paulo e o envolvimento/identificação direto das comunidades e favelas, até as ladeiras de Olinda em Pernambuco, que com seus blocos de maracatu, frevo, caboclinhos, entre outros que ressaltam a cultura popular. Nessa conjunção de carnaval e militância, o movimento feminista tem marcado presença de maneira singular ao som do frevo pernambucano.
Se é verdade que o futuro será feminista, como defendem em palavras de ordem de muitos movimentos feministas no mundo inteiro, a construção de suas bases tem sido colocada à mesa há muitos anos, assumindo os mais diversos formatos. Atualmente, há quem defenda que atravessamos a quarta onda feminista, há quem fale da superação dessas ondas e a pluralidade de suas pautas: falar de feminismos no plural abarcando a multiplicidade de realidades as quais situam a mulher, seus corpos (e corpas, assim no feminino mesmo) e suas (re)existências no mundo. Essa é a história do bloco Vacas Profanas.
E ela será contada aqui a partir de duas “donas de divinas tetas”: Dandara, mulher negra, produtora de eventos, fundadora do bloco Vacas Profanas; e Camilla, mulher branca, antropóloga e foliã do carnaval Recife/Olinda e, consequentemente, do bloco Vacas Profanas. Mulheres que nunca conversaram pessoalmente, mas que encontram na folia e na militância suas formas de se expressar e de estar no mundo.
Dandara Pagu
Meu nome de batismo é Robeane Silva Rodrigues, morei no bairro da Mangueira em Recife/PE, sou a filha mais velha e mais preta de 11 irmãos. Minha mãe, também bem preta, viveu a maternidade de forma solo e bem sofrida. Alguns irmãos, a doença ou falta de educação levaram à morte e sobraram 8, a maioria mulheres. A primeira vez que minha mãe viu meus peitos no jornal me ligou xingando, mas quando eu apareci num programa na rede globo de televisão, tudo ficou bom e ela, pela primeira vez, falou que tinha muito orgulho de mim.
Eu sou produtora cultural, comunicadora digital, ativista antiproibicionista e feminista por tabela, né? Hoje em dia moro em São Paulo/SP e sou a idealizadora desse bloco maluco de lindo chamado Vacas Profanas.
Sou uma mulher preta retinta de santo e romântica, sabia que por muito tempo eu tinha vergonha de falar que eu era romântica? Porque eu achava que feminista não podia ser romântica, mas se a gente parte que o feminismo é a luta que ajuda a mulher ser o que ela quiser então eu posso ser romântica né?
O Bloco Vacas Profanas surgiu após uma violência policial sofrida por mim, por estar com seios à mostra no meio do carnaval. Talvez eu possa estar enganada, mas eu acho que o despertar dos feminismos para muitas manas aqui no Brasil, e posso ser mais territorialista, no nordeste, se deu a partir de 2015 que, por consciência ou não, foi o ano que aconteceu a violência comigo. No momento em que eu estava passando pela abordagem violenta, eu pude perceber o quanto nós mulheres não temos domínio sobre nossos corpos. A mídia e o marketing decidem quando e quais corpos podem aparecer de forma pública.
Vivemos a eterna cobrança de como devemos nos comportar, de como nosso corpo deve ser. Um lado é o marketing do Capital mostrado nas propagandas e o corpo “perfeito”, perfeição essa que não existe, pois em sua maioria são imagens manipuladas por computador. Do outro lado, o patriarcado determinando quais posturas vão te fazer uma mulher feliz e completa, o que vai te dar um bom marido, filhos e tudo mais.
Isso tudo não nos é perguntado, somos forçadas a todo tempo a ser “recatadas e do lar” mesmo no carnaval, momento de permissividade total. Mesmo assim, não estamos em paz. Será que se eu tivesse um corpo que corresponde às normativas eurocêntricas eu seria parada pelo polícia?
Todos esses questionamentos caíram em cima de mim de forma muito forte, então pensei: vai sair um bloco ano que vem e nesse mesmo ano, no dia da mulher, eu fiz uma semana inteira de discussão feminista falando sobre feminismo negro, mulheres no mercado de trabalho, maternidade. Em 2016, como prometido para mim mesma, saí com 7 mulheres todas vestidas de vaca, no outro ano foram 50 e hoje em 2020 já somos milhares.
No primeiro e segundo ano que a vaca desfilou, sim porque eu conto que o bloco existe desde a minha primeira saída, eu fui criticada por amigos e muitas amigas que me acompanhavam, mas não tinha “coragem” de fazer o que fiz. Acho que a ideia de coragem cabe aqui, porque a sensação de tirar uma peça de roupa em público é bem engraçada, parece que você tá pulando de um prédio, tomando veneno. Percebe como estamos presas à normativas castradoras? Quando alguém está fazendo o ato simples de mostrar o seu corpo no seu momento, por sua vontade, é muito escandaloso. Percebe que loucura o quanto estamos presas em normativas machistas e retrógradas?
Mas, para mim, o pulo do gato (que explica muito bem o crescimento do Bloco) é que eu não desisti e muitas manas me apoiaram na minha insistência, e mas que insistir o bloco fez e faz uma coisa massa, que é deixar as mulheres livres e seguras pelo menos no percurso do Bloco no carnaval. Nada é 100 por cento na vida, mas é uma coisa que eu prezo muito e as manas que vão todo ano já se ligaram nisso. Pensa comigo: se você passa o ano inteiro sendo cobrada pelo seu corpo, pela suas “obrigações” enquanto mulher, e você encontra por algumas horas um lugar onde nada disso tem poder, a potência dessa coisa crescer é muito grande, e tem sido assim com o Vacas Profanas.
Uma coisa que eu percebi é que o feminismo está ligado à urgência e vivências muito particulares. Cada mulher vai saber o que é bom pra elas. O Bloco soma na liberdade dos corpos femininos, que infelizmente não é permanente. Mas, o momento de liberdade que o bloco proporciona ajuda muito, eu sei porque já recebi muitos relatos.
Pensando enquanto mulher, preta retinta, grande, totalmente fora dos padrões, acabo voltando pro início, porque meu corpo não é um corpo aceito pela sociedade e isso foi o que motivou a criação do bloco. O Vacas Profanas soma na militância, incentivando as mulheres a não terem vergonha do seu corpo e entenderem, mesmo que às vezes a gente caia nas armadilhas sociais, é um lugar de liberdade e respeito e acho que um dos pilares que acredito junto ao feminismo: é de buscarmos liberdade e respeito dentre várias outras coisas, lógico.
Camilla Iumatti
Era segunda feira de carnaval de 2019, eu me arrumava pro bloco que, finalmente, iria conhecer, era o Vacas, como carinhosamente a gente chamava, convidando as “donas das divinas tetas” a se libertarem e exibirem seus corpos como lhes convém, “como querer caetanear” uma liberdade em construção.
Desde sua criação, todo ano eu me programava para ir, mas sempre algum imprevisto me afastava de experenciar aquilo que, pra mim, passou a ser a reconfiguração do que eu definia por militância feminista. Entre glitters e escolha do traje, a minha excitação me antecipava que eu teria uma guinada na minha percepção sobre militância feminista.
Entrei no uber vestida à caráter, deixando meus seios aparentes, seguindo o mote do bloco. Assim eu estava: peitos cobertos apenas por fita isolante em formato de ‘xis’ e uma camisa transparente por cima. Os olhares do motorista desde a minha entrada no carro, denunciavam o que eu não queria ver: meus seios expostos não me pertenciam mais a partir daquele momento. Corri de volta pra casa para pegar uma peça de biquíni que poderia ser a minha salvação dos olhares maliciosos após o bloco.
Do trajeto de casa até o ponto marcado para a concentração do bloco, me vi exposta, fui alvo de olhares e de dedos apontados, até que um senhor branco veio em minha direção e gritou fervorosamente: Carnaval é coisa de família! O constrangimento me fez sussurrar com Raissa, minha irmã e parceira de militâncias: fui amadora né? Eu deveria ter colocado o biquíni.
– A culpa não é sua, é do sistema! Ela me lembrava para me proteger e me confortar.
Ao chegar na concentração do Vacas, os peitos desnudos de outras mulheres aumentaram a minha sensação de proteção. Eu estava entre as minhas. Eu estava segura. Respirei aliviada e esperei contente a saída do bloco.
A orquestra de frevo já se preparava para sair quando escutamos os gritos de ordem: “macho pra calçada, macho pra calçada”. O constrangimento dos homens os repelia diretamente da experiência de estar entre nós. Ali era dado: eles não estariam entre as mulheres, se quisessem acompanhar o bloco, teriam que ir para a calçada. Confesso que a minha primeira impressão foi de estranhamento: como assim expulsar potenciais aliados? Acostumada a acompanhar leituras e debates sobre gênero, não binarismo e etc, o bloco me convidava a dar um passo atrás: eu gozo da liberdade que penso ter?
Fiquei confusa e segui questionando o que eu estava vivenciando, até que uma das participantes do bloco me lembrou: são homens no meio de muitas mulheres semi nuas.
– Sim, mas podem ser aliados.
– O ano passado alguns desses “aliados” entraram no bloco para passar a mão nas meninas.
Seguimos, e só mais tarde eu entenderia aquela justificativa.
Ao longo do dia de carnaval e com o bloco já finalizado, subi as ladeiras pra curtir o dia que fervia em frevo, festa e folia. Ainda que eu tivesse coberto meus seios com o biquíni que eu havia levado, minhas vestes curtas acabaram por ser interpretadas como convites às passadas de mãos em meu corpo. Foram várias. Em diversas partes. Eu me senti violada. Nas ladeiras de Olinda, fui vítima de assédio. Chorei. Me indignei. E, finalmente, entendi a justificativa daquela moça.
O problema é a estrutura machista. O que parecia ser uma cisão sexista, o apelo da divisão de sexos ganhava forma pra mim. Era o sistema me informando que meu corpo não me pertence e que ele poderia ser violado. Era pra combater isso que estávamos ali no Vacas Profanas e todas as divinas tetas que o acompanhava.
Passei um ano inteiro em que volta e meia a experiência com o bloco Vacas Profanas me vinha à tona, comentei com amigas, chamei pro debate, refleti e provoquei reflexões. Todas tinham o mesmo mote: nossos corpos nos pertencem? O meu debate agora ganhava outra dimensão, menos pueril e mais realista: Somos violadas por moralizações outras que legislam sobre nossos corpos, sexualizam, padronizam, violam e matam. Até que ponto nossos corpos são livres?
Em 2020, me organizei, convidei amigas, preparei meus trajes e, dessa vez, me precavi de não ir despida. Eu não podia confiar na estrutura machista. Ao chegar, percebi significativo aumento de participantes. Muitos eram homens. Senti vergonha em me despir, mas era pra gritar pela liberdade dos nossos corpos que estávamos ali, me despi, levei uma seringada de água nos mamilos e gritei: Macho pra calçada, ao que um coro de vozes femininas me acompanhou: “macho pra calçada”.
Blusa na mão, mulheres na rua e os gritos “macho pra calçada” nunca fizeram tanto sentido pra mim: ali, nós mulheres, éramos protagonistas, e o maior apoio dos homens era entender que não há protagonismo masculino quando nossa luta ainda está em dizer que nossos corpos atendem as nossas regras.
***
O Bloco Vacas Profanas surgiu em 2015 a partir de uma violação de uma corpa negra insurgente que não se cala diante do sistema. Ainda bem. Porque todo ano atravessa outras corpas de mulheres Cis e Trans, para provocar essa inquietude sobre o que nos viola. Somos duas mulheres com trajetórias distintas, que, apesar de nunca termos conversado pessoalmente, nos reconhecemos uma à outra no carnaval. Duas mulheres que enfrentaram violações de suas corpas, uma pela polícia, outra por homens que receberam suas vestes como convites para ultrapassar o limite do respeito, as duas encontraram no carnaval o sentido dos seus feminismos.
É sobre liberdade que estamos falando. Liberdade de ser e de estar no mundo como queremos, como somos. A proposta de utilizar o carnaval como narrativa de protesto para a libertação de corpas femininas, nos conduz ao olhar multidirecionado a que se propõe o bloco, afinal o que é feminismo pra você que nos lê? Pra nós são feminismos, assim, no plural, tal qual a festa de momo.
Foi o carnaval, com seus enredos, batuques, fantasias, apertos, dramas e danças que (re)configuramos nossa militância, é aqui que as nossas percepções e vivências convergem: subiremos as ladeiras de Olinda/PE exibindo nossas divinas tetas pra denunciar o machismo.
Camilla Iumatti é antropóloga, feminista e foliã do carnaval de Olinda. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia da UFPB e pesquisadora na área de antropologia do gênero, corpo e saúde.
Dandara Pagu é produtora de eventos e fundadora do Bloco Vacas Profanas.