O capitalismo deve ser domado
O terrorismo global, que culminou no atentado de 11 de setembro, traz as marcas anarquistas de uma revolta impotente no sentido de que é dirigido contra um inimigo que não pode, absolutamente, ser derrotadoGiovanna Borradori
G. B. – O que exatamente você entende por terrorismo? Será que se pode distinguir, de forma clara e adequada, um terrorismo nacional de um terrorismo global?
J. H. – Até certo ponto, o terrorismo dos palestinos continua sendo um pouco um terrorismo à moda antiga. Trata-se, aqui, de matar, de assassinar; o objetivo é aniquilar, de maneira cega, inimigos, inclusive mulheres e crianças. É a vida contra a vida. Ele é diferente, quanto a este aspecto, do terrorismo praticado sob a forma paramilitar da guerrilha, que determinou a fisionomia de inúmeros movimentos de libertação na segunda parte do século XX e que marca ainda hoje, por exemplo, a luta de independência dos tchetchenos. Diante disso, o terrorismo global, que culminou no atentado de 11 de setembro, traz as marcas anarquistas de uma revolta impotente no sentido de que é dirigido contra um inimigo que, nos termos pragmáticos de uma ação que obedece a uma finalidade, não pode absolutamente ser derrotado. O único efeito possível é instaurar, na população e junto aos governos, um sentimento de choque e de preocupação. De um ponto de vista técnico, a grande sensibilidade à destrutividade por parte de nossas sociedades complexas oferece oportunidades ideais para uma ruptura pontual das atividades correntes, capaz de provocar prejuízos consideráveis a baixos custos. O terrorismo global leva ao extremo dois aspectos: a ausência de objetivos realistas e a capacidade de tirar proveito da vulnerabilidade de sistemas complexos.
Terrorismo político e crime comum
G. B. – Deve-se distinguir o terrorismo dos crimes comuns e das outras formas de uso da violência?
J. H. – Sim e não. Do ponto de vista moral, não há como defender uma ação terrorista, quaisquer que sejam seus móveis e qualquer que seja a situação em que é perpetrada. Nada permite “levar em conta” finalidades que alguém se deu a si mesmo para, em seguida, justificar a morte e o sofrimento de outro. Toda morte provocada é uma morte absurda. Porém, de um ponto de vista histórico, o terrorismo entra em contextos muito diferentes daqueles a que pertencem os crimes de que trata o juiz de direito. Ao contrário do crime privado, ele merece um interesse público e requer um tipo de análise distinto da análise do crime passional. Aliás, se não fosse assim, não estaríamos realizando esta entrevista.
A diferença entre o terrorismo político e o crime comum é particularmente evidente no momento de algumas mudanças de regime que levam ao poder os terroristas de ontem e fazem deles representantes respeitados de seu país. O fato é que tal transformação política não pode ser esperada senão por terroristas que, de uma maneira geral, perseguem com realismo objetivos políticos compreensíveis e que, tendo em vista suas ações criminosas, podem tirar, da necessidade em que estavam de sair de uma situação de injustiça evidente, uma certa legitimação. Ora, não posso hoje imaginar nenhum contexto que, um dia, permitisse fazer do crime monstruoso do 11 de setembro uma ação política tão pouco compreensível e que, por qualquer razão, pudesse ser reivindicada.
Não posso imaginar nenhum contexto que permitisse fazer do crime monstruoso do 11 de setembro uma ação política que pudesse ser reivindicada
G. B. – Você acredita que foi adequado interpretar esta ação como uma declaração de guerra?
J. H. – Ainda que a palavra “guerra” esteja menos sujeita a equívocos e, de um ponto de vista moral, menos sujeita à contestação do que o discurso evocando a “cruzada”, a decisão de Bush de convocar para uma “guerra contra o terrorismo” me parece ser um erro grave, tanto do ponto de vista normativo quanto do ponto de vista pragmático. Do ponto de vista normativo, na realidade, ele eleva esses criminosos à categoria de guerreiros inimigos e, do ponto de vista pragmático, é impossível fazer a guerra – se é que se deve conservar um sentido definido para este termo – a uma “rede” muito difícil de se identificar.
A máquina de fabricar estereótipos
G. B. – Se é verdade que, em sua relação com as outras civilizações, o Ocidente deve desenvolver uma sensibilidade maior e deve se mostrar mais autocrítico, como deveria ele proceder para tal? A este respeito, você fala de “tradução” e da busca de uma “linguagem comum”. O que você entende por isso?
J. H. – Desde o 11 de setembro, não paro de me perguntar se, diante de acontecimentos de tal violência, toda a minha concepção da atividade orientada para o entendimento – aquela que desenvolvo desde a Théorie de l?agir communicationnel -, não está em vias de cair no ridículo. É verdade que, mesmo nas sociedades da OCDE, que são bastante ricas e pacíficas, também vivemos em confronto com uma certa violência estrutural – à qual, por outro lado, nos acostumamos e que é feita de desigualdades sociais humilhantes, de discriminações degradantes, de pauperização e de marginalização. Ora, à medida que nossas relações sociais são percorridas pela violência, pela atividade estratégica e pela manipulação, não deveríamos deixar escapar dois outros fatos.
Ocorre, de um lado, que as práticas que constituem nossa vida com outros, no cotidiano, fundamentam-se na base sólida de um conjunto comum de convicções, de elementos que percebemos como evidências culturais e de expectativas recíprocas. Neste contexto, coordenamos nossas ações recorrendo aos jogos da linguagem corrente e, ao mesmo tempo, apresentando exigências de validade, de uns para com os outros, que reconhecemos pelo menos de forma implícita – é o que constitui o espaço público das razões boas ou menos boas. Ora, isso explica, de outro lado, um segundo fato: quando a comunicação é perturbada, quando a compreensão não se realiza ou se realiza mal, ou quando a duplicidade ou o ardil interferem na compreensão, surgem conflitos tais que, ainda que suas conseqüências sejam suficientemente dolorosas, eles aterrissam no consultório do terapeuta ou diante do tribunal.
A espiral da violência começa por uma espiral da comunicação perturbada que, através da espiral da desconfiança recíproca incontrolada, leva à ruptura da comunicação. Se, então, a violência começa por perturbações na comunicação, após sua eclosão é possível saber o que deu errado e o que deve ser corrigido.
A decisão de Bush de convocar para uma “guerra contra o terrorismo” me parece ser um erro grave, tanto do ponto de vista normativo quanto pragmático
É um ponto de vista banal; parece-me, no entanto, que pode ser adaptado aos conflitos de que você fala. A questão, evidentemente, é mais complicada porque as nações, as formas de vida e as civilizações estão, desde o início, mais afastadas umas das outras e tendem a permanecer alheias umas às outras. Não se encontram como os membros de um círculo, de um grupo, de um partido ou de uma família, os quais só podem ser transformados em estranhos uns dos outros se a comunicação for sistematicamente deformada.
Além disso, nas relações internacionais, a intermediação do direito, cuja função é conter a violência, não desempenha, comparativamente, senão um papel secundário. E, nas relações interculturais, ela serve apenas, na melhor das hipóteses, para criar suportes institucionais visando a acompanhar formalmente as buscas de entendimento – por exemplo, a conferência de Viena sobre Direitos Humanos, organizada pelas Nações Unidas. Esses encontros formais – por mais importante que seja o debate intercultural que se realiza nas diversas instâncias a respeito da interpretação discutida dos direitos humanos – não podem, sozinhos, parar a máquina de fabricar estereótipos.
Os interesses materiais do Ocidente
Fazer com que uma mentalidade se abra é uma questão que passa principalmente pela liberalização das relações e por uma libertação objetiva da angústia e da pressão. Na prática cotidiana de comunicação, é preciso que se constitua um capital-confiança. Isto é necessário como preliminar para que as explicações racionais, e em grande escala, sejam difundidas na mídia, nas escolas e nas famílias. É preciso, também, que elas incidam sobre as premissas da cultura política envolvida.
No que nos diz respeito, a representação normativa que temos de nós mesmos em relação às outras culturas é igualmente, nesse contexto, um elemento importante. Se procurasse rever a imagem que tem de si mesmo, o Ocidente poderia, por exemplo, descobrir o que é preciso mudar em sua política para que ela possa ser percebida como um poder capaz de dar forma a uma iniciativa civilizadora. Se não se domar politicamente o capitalismo, que hoje não tem mais limites nem fronteiras, será impossível ter controle sobre a estratificação devastadora da economia mundial.
Seria necessário, pelo menos, contrabalançar, em suas conseqüências mais destrutivas – penso no aviltamento e na pauperização a que estão submetidas regiões e continentes inteiros -, a disparidade provocada pela dinâmica do desenvolvimento econômico. O que existe atrás disso não são apenas, em relação às outras culturas, a discriminação, a humilhação e a degradação. Por trás do