O centro é Lula?
Nessa disputa entre líderes populares, apenas Lula, que foi um presidente de centro-esquerda que respeitou as regras do jogo democrático, poderia realizar o concerto político com o centro
Com a decisão do Supremo Tribunal Federal que devolveu os direitos políticos ao ex-presidente Lula, muito se tem especulado sobre o cenário para 2022. O debate ganhou força com os encontros que o ex-presidente teve com diversos políticos e as recentes manifestações contra Bolsonaro.
Nesse cenário, muitos candidatos ao Planalto buscam pavimentar o caminho daquilo que chamam de “terceira via”, que representaria o “centro” numa disputa eleitoral marcada pela polarização entre Lula e Bolsonaro. No entanto, o centro político brasileiro, da esquerda à direita, está fragmentado em múltiplas lideranças, de Dória a Ciro, não existindo um núcleo gravitacional que permita a convergência de interesses e valores, muito menos com relevância política e apelo popular. Fora uma grande aliança histórica que supere essas divergências, é pouco provável o sucesso dessa empreitada.
Há outro fator decisivo na atual conjuntura. Goste-se ou não, Lula e Bolsonaro são, hoje, as duas únicas lideranças populares de expressão nacional, capazes de tocar o coração do eleitor e mobilizar multidões. Não à toa, o último Datafolha revelou que ambos rivalizam a disputa desde já. As sondagens indicam que Lula lidera a corrida eleitoral com folga. Bolsonaro, embora cada vez mais sufocado pelos erros na condução da pandemia, já mostrou, mesmo durante essa crise sanitária, que tem grande força e pode se recuperar. A força eleitoral de ambos, além de reduzir as chances de outros postulantes, torna essa potencial disputa num evento sem precedentes em nossa democracia, sempre marcada por apenas uma candidatura de forte apelo direto ao povo.
Resta saber, assim, quem teria mais condições de fazer um movimento ao centro, alargando sua base de apoio? A resposta é Lula, pois sua experiência eleitoral e no governo o credita nesse sentido. Para chegar ao poder em 2002, Lula precisou mudar e acenar para setores mais amplos da sociedade, do que são exemplos a indicação do empresário José Alencar para vice em sua chapa e a Carta ao Povo Brasileiro.
Já no governo, vestindo o figurino da social-democracia, Lula compôs com o centro e a direita, garantindo espaço para uma ampla representação da sociedade: de banqueiros a movimentos sociais, de representantes do agronegócio ao movimento ambientalista. Tampouco hesitou em dar continuidade à agenda econômica e social de seu antecessor.
Nessa disputa entre líderes populares, apenas Lula, que foi um presidente de centro-esquerda que respeitou as regras do jogo democrático, poderia realizar o concerto político com o centro. Bolsonaro, por sua vez, é um presidente de extrema-direita com fortes pendores autoritários e sem vontade ou capacidade para compor politicamente.
Lula também já demonstrou força para atingir ampla penetração eleitoral. Como o lulismo é maior que o petismo, o ex-presidente é capaz de embaralhar clivagens como esquerda-direita e alcançar setores diversos da sociedade brasileira, como inclusive ficou patente no último Datafolha, que mostrou que, mesmo em segmentos em que Bolsonaro tem grande força, como os evangélicos, Lula é competitivo, literalmente empatando o jogo.
Para além da capacidade de realizar articulações político-eleitorais, o próximo pleito também demandará dos postulantes o desafio de pacificar o país, revitalizar nossas desgastadas instituições e reduzir as tensões com as Forças Armadas, com imagem arranhada diante do fracasso no combate à pandemia. Perante os crescentes conflitos na sociedade e da crise política, Lula desponta como o político mais habilidoso para liderar a frente ampla contra Bolsonaro e recolocar o Brasil numa rota de conciliação.
Há, ainda, outro aspecto menos notado, que deve favorecer Lula no embate com Bolsonaro: a agenda de políticas públicas que estará no centro das atenções. Com a pandemia, o desemprego e a fome assolando o país, o eixo do debate deverá girar em torno do combate à fome e à desigualdade e do acesso à saúde pública, pautas historicamente identificadas com Lula.
Pautas ligadas aos costumes e a direitos coletivos e de minorias, caras à agenda contemporânea de esquerda, e também ao bolsonarismo, que apela ao conservadorismo de valores da sociedade brasileira, deverão ter menos espaço e prioridade, ao passo que discussões socioeconômicas, de cunho redistributivo, tenderão a ganhar maior destaque.
Detentor da hegemonia eleitoral na esquerda, que lhe possibilita obter concessões que nenhuma outra liderança conseguiria, e portador de biografia que lhe permite ampliar as bases de apoio ao centro e à direita, Lula é, hoje, o centro possível.
Ivan Fernandes é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e professor da UFABC.
Marcello Fragano Baird é doutor em Ciência Política pela USP e professor da ESPM e da FGV-IDE.